terça-feira, 31 de março de 2015

"Até o hábito lhe ter embotado a sensibilidade, há para o escritor algo de desconcertante no instinto que o leva a interessar-se pelas singularidades da natureza humana de forma tão absorvente que o seu sentido de moral nada pode fazer para o impedir. O escritor tem consciência da satisfação artística que lhe dá a contemplação do mal, o que o assusta um pouco; porém, a sinceridade força-o a confessar que a sua reprovação de certas acções é muito inferior à curiosidade de conhecer as razões que as determinam. O personagem de um patife, lógico e completo, tem para o seu criador um fascínio que é uma afronta à lei e à ordem. Estou em crer que Shakespeare terá sentido ao criar Iago um prazer como nunca experimentou quando, tecendo raios de lua com a sua fantasia, imaginou Desdémona. Pode ser que o escritor satisfaça no seus vilões instintos profundamente enraizados que os usos e costumes de um mundo civilizado remeteram para os misteriosos recessos do seu subconsciente. Ao vestir de carne e osso o personagem saído da sua imaginação está a dar vida àquela parte de si mesmo que não encontra outra forma de se expressar, e o prazer que sente é um sentimento de libertação.
O escritor preocupa-se mais em saber do que em julgar".

Somerset Maugham, A lua e cinco tostões.

Conversas à Pala no Porto, 9 de Abril: Roberto Rosselini


No próximo dia 9 de Abril, inicia-se um precioso ciclo dedicado a Roberto Rossellini no Teatro Municipal do Campo Alegre. Também nesse dia decorrerá a próxima - esperemos que preciosa também (os convidados ajudam) - Conversa à Pala, que terá por objecto - já advinharam - o cinema (e o seu "cinema televisivo", convém não esquecer) do Mestre italiano. Teremos como convidados Carlos Melo Ferreira e Paulo Cunha. A Conversa inicia-se às 21h e antecede o filme (às 22h). A entrada é gratuita.

O À pala de Walsh dispõe de uma série de textos muito boa como aperitivo. Sirvam-se (clicar).

Conversas à Pala: Cineclubismo e cinefilia, dois bons irmãos (video)

O vídeo da última Conversa à Pala, que juntou os Cineclubes do Porto, Guimarães e Joane em torno do tema cineclubismo, já está disponível ali ao lado (clicar). Bom proveito.

sábado, 28 de março de 2015

na vida, só existem duas certezas


(Amour fou, 2014, Jessica Hausner)

sexta-feira, 27 de março de 2015

círculos




"Círculos", EP Palha, Paus e Pérolas (2014). Nerve.


"Circular não é assim tão diferente de andar em círculos". Bom fim de semana.

besta quadrada

 
 
Continuando a matutar sobre The Anderson Tapes, a que chamei de um não-filme e, por isso, de um filme subversivo (não há nonsense nisto), entrevi outro aspecto que me parece interessante. A videovigilância, mais do que a óbvia consequência de permitir esquadrinhar a vida de terceiros, tem esse efeito perverso de reduzir as pessoas visadas a determinado perfil. Num televisor ou monitor, por definição quadrado (ou rectangular), o visado é encaixilhado, aprisionado, formatado entre "quatro paredes"; ele é aquilo e não é mais nada ou, de outro modo, o que não está no monitor não está no mundo (para adulterar o aforismo jurídico Quod non est in actis non est in mundo). É reduzido a um número, a um "vigiado", como se a "profundidade de campo" estivesse irremediavelmente arredada do monitor, no sentido em que o que ele mostra é, inevitavelmente, superficial, carente de espessura - carente, quase diria, de "subjectividade(s)", mesmo de humanidade. Ora, é precisamente isso que acontece com Sean Connery no filme de Lumet. Depois de sair da prisão, todas as câmaras nas quais aparece - mesmo nas que não pertecem à polícia, pois o drama é também esse, o galgar da tecno-vigilância para fora dos terrenos tradicionalmente reservados à autoridade - encaixilham-no, aprisionam-no, num reducionismo que, no limite, tem no espectador (e nos polícias que o vigiam) um efeito muito particular, mesmo antes de Connery se decidir pelo assalto: Connery nunca deixará de ser um criminoso, Connery é um criminoso e não é mais nada.

quinta-feira, 26 de março de 2015

uma porcaria de um aforismo


Num programa de "entretenimento", um dos elementos do Júri, indivíduo nascido em berço de ouro e guru dos negócios (da família), explica, com ar grave e pedagógico, a um concorrente: "sabe, o mundo é um lugar agradável, o problema são algumas pessoas que o estragam". Consta que, depois de sair dos estúdios, pegou numa senatorial vassoura que por ali havia sido deixada por um vetusto inimigo da sua família e começou a varrer uns quantos para o cosmos. Caso para dizer que a "porcaria" (i.e., as pessoas que, alegadamente, "estragam" este lugar tão paradisíaco não fosse a maçada de o termos de partilhar com quem é diferente de nós) muda, mas a vassoura é a mesma.

quarta-feira, 25 de março de 2015

Walsh #25 Crítica "The Anderson Tapes" (Noutras Salas)



O À pala de Walsh fez um lifting (não tão profundo como o da Zellweger - ah, mas não, é bluff, uffa!, suspira a humanidade) e apresenta-se com nova roupagem. Aproveitando a boleia, a minha crítica a The Anderson Tapes (1971), do Sidney Lumet, também está aí (clicar). O filme passa amanhã no Cinema Passos Manuel, às 22h, pela mão da Milímetro.

Ao chegar ao prédio, Connery repara numa câmara de videovigilância e olha-a, surpreendido (talvez também porque, dez anos antes, tal não seria comum), incomodado e, sobretudo, desconfiado. Esta “desconfiança” é tudo num filme e num realizador que, ao longo da sua extensa filmografia (43 filmes), sempre “desconfiou”, sempre duvidou, da justiça e do direito [12 Angry Man (Doze Homens em Fúria, 1957); The Verdict (O Veredicto, 1982)], da polícia [Prince of the City (O Príncipe da Cidade, 1981)], enfim, da ordem instituída. (...) Note-se que Connery não está, nesse momento, a planear ou a executar qualquer assalto, pois aí, sim, a presença da câmara ser-lhe-ia naturalmente inconveniente. Não; Connery acaba de sair da prisão, está clean e apenas de visita a Ingrid, porque, como lhe diz ainda no elevador, “I haven’t been laid in over ten years”. O olhar desconfiado de Connery é, por isso, não o olhar do Connery-criminoso a registar mentalmente os obstáculos potenciais a um plano de assalto, mas o olhar do Connery-pessoa, do Connery-cidadão. Ou seja, e resumindo, o olhar desconfiado de Connery é, afinal, o olhar de Sidney Lumet, profundamente incomodado e relutante em aceitar o esquadrinhamento visual e sonoro da vida privada dos cidadãos em nome da “segurança” e do “bem estar" (...)".

(Excerto)

domingo, 22 de março de 2015

heaven's view


(The Anderson Tapes, 1971, Sidney Lumet)

sexta-feira, 20 de março de 2015

"Quando as pessoas dizem que não se importam com o que os outros possam dizer delas, estão quase sempre a enganar-se a si próprias. Geralmente isso apenas quer dizer que fazem o que lhes apetece, confiantes de que ninguém virá a saber das suas excentricidades; ou, quando muito, que só estão dispostas a agir contrariamente à opinião da maioria porque têm o apoio e a aprovação dos que lhe são mais próximos. Não é difícil ser-se original aos olhos do mundo, quando essa originalidade não passa da convencionalidade do grupo a que pertencemos. Isso gera um empolamento desmedido da auto-estima, a auto-satisfação da coragem sem os inconvenientes do perigo. Mas o desejo de aprovação é talvez o instinto mais profundamente enraizado no homem civilizado. Ninguém procura com mais afã a capa da respeitabilidade do que a mulher não convencional que se expôs às pedras e flechadas do decoro ultrajado. Não acredito nos que dizem que não ligam nenhuma à opinião dos seus semelhantes. Não passa de bravata ditada pela ignorância".

Somerset Maugham, A lua e cinco tostões.

segunda-feira, 16 de março de 2015

domingo, 15 de março de 2015




"The Way Life Used To Be", álbum Doggumentary (2011). Snoop Dogg.

estrangulamento


(Leviafan, 2014, Andrey Zvyagintsev)

Quando vão à caçada - a lembrar a do Cimino, claro -, tudo está em tensão: há vodka (muita), armas (muitas), testosterona (muita) e dois amantes clandestinos. A frase do miúdo é um achado: "Mãe, ele está a estrangulá-la", tradução confusa e ingénua para o acto sexual que nunca vemos. Isto vinha a propósito de um outro diálogo - se a memória não me atraiçoa - com o qual a referida frase batia na perfeição, conjugação a partir da qual - lembro-me na altura do meu entusiasmo - se podia fazer uma síntese (oh, as sínteses) muito interessante do filme. Mas dá-se o infeliz caso de não me recordar. 

(All That Heaven Allows, 1955, Douglas Sirk)

quinta-feira, 12 de março de 2015

Qualidade

"Repare, Sotôr, eu sou um apaixonado pelo tema da Gestão da Qualidade!", disse ele.

Gestão. Da. Qualidade. Apaixonado.

Martha



A Milímetro exibe hoje, no Passos Manuel, pelas 22h, Martha (1973). É um dos meus filmes (na origem, um telefilme) preferidos do Fassbinder e sobre o qual escrevi no À pala de Walsh (clicar para ler).
 
Martha (1973), melodrama de sabor sirkiano realizado para televisão – tivéssemos nós, em 2013, telefilmes como estes em vez de fórmulas telenovelescas adaptadas para 90 minutos… –, é um desses filmes onde o “rasto de contaminação” do nazismo aparece à superfície, por força, como habitualmente na obra de Fassbinder, do poder da metáfora. Helmut Salomon (Karlheinz Böhm) é mesmo, podemos dizê-lo, a “metáfora andante” que Fassbinder construiu, com perturbante sagacidade dramática, para representar o ideário pós-nazi e a sua “normalização” (a possível) numa sociedade democrática e tolerante. Helmut, enquanto figura metonímica desse processo normalizador, interessa-nos, pois, a partir da sua psicologia individual, isto é, da forma como se relaciona com os outros (para o caso, com a sua mulher), e na medida em que encarna os tiques que imediatamente associamos, de uma forma ou de outra, ao legado de horror nazi.
 
(Excerto)

domingo, 8 de março de 2015



(Le Samouraï, 1967, Jean-Pierre Melville]

sexta-feira, 6 de março de 2015

trapped



(All That Heaven Allows, 1955, Douglas Sirk)


(Safe, 1995, Todd Haynes)

O "clique" fez-se-me ainda antes de saber da inspiração que Haynes foi colher a Sirk para fazer o Far from Heaven (2002). Há coisas assim. Já estão lá (i.e., em nós) antes de o sabermos.



"Why Aren't You Mine?", álbum Cognitive Dissonance: Part II (2015). Raz Simone.

quinta-feira, 5 de março de 2015

all my love




"All My Love Belongs To You", álbum Eddie My Love (1957). The Teen 

As Teen Queens foram das coisas mais belas que a música já teve. Vem-me uma lágrima aos olhos quando as oiço e nem é (apenas) por aquela emoção mais lamecha que toca a todos; é pela graça, quase divina, que lhes reconheço na voz, por uma pureza inalcançável, por transportarem, a quem as ouve, no tempo, nos sabores e dissabores disto tudo, enfim, nesta vida que para aqui levamos. Ouvimo-las e, ficando a sós com as suas vozes, tudo parece ficar em perspectiva. Isto agora não interessa a ninguém (sobretudo à hora em que o escrevo), mas fica o registo. Se amanhã fizesse um filme, espetava-lhe o repertório todo delas (só ficava bem no filme do P. T. Anderson, a propósito). All my love belongs to you, Betty and Rosie.

terça-feira, 3 de março de 2015

please write me one line




"Eddie My Love", álbum Eddie My Love (1957). Teen Queens.

this girl I met

Sempre gostei da forma como, sobretudo, os americanos, quando se querem referir a alguém em concreto, utilizam o this antes. Por exemplo: "You know, this girl I met (...)". E, com uma palavrinha tão curta assim, como que se puxa essa pessoa para nós, atribui-se-lhe uma proximidade afectiva (que até pode, na verdade, nem existir), sumariza-se, sem explicitar, as suas idiossincrasias. Insinua-se toda uma história que está para trás mas mantém-se reserva sobre a mesma. Alude-se a um enredo que o interlocutor não conhece e que, muito provavelmente, não virá a conhecer. No fundo, uma elipse para continuar a falar a seguir.

segunda-feira, 2 de março de 2015



(Roma, Cidade Aberta, 1945, Roberto Rossellini)