"O primeiro nome de Miss Humphries era Doris. Mrs. Benton tratara-a por Doris. Passara um ano num convento de Paris antes da Guerra e falou a Charley dos lugares que conhecera, da igreja da Madeleine, do Rumpelmayer e da confeitaria vizinha da Comédie Française. Depois de jantar foram os dois tomar café no vão de uma janela por detrás de uma grande begónia escarlate que emergia de um vaso de cobre e a rapariga perguntou-lhe se ele não achava Nova York intolerável. Ela sentara-se no poial da janela e ele mantinha-se de pé, dominando-a, olhando por sobre os ombros dela, através da vidraça, para o tráfego que formigava na rua. Principiara a chover e as luzes dos carros iluminavam as marcas sinuosas dos pneus que rasgavam faixas paralelas no asfalto de Park Avenue. Charley respondeu qualquer coisa do género que, por pior que fosse, lhe agradava voltar à pátria. No fundo tentava decidir se ofenderia no caso de lhe dizer que tinha uns lindos olhos".
Dinheiro Graúdo, John dos Passos.
Sem menosprezo para ninguém, mas dizer que isto é literatura é mero pormenor de forma.
Da minha janela vejo o Bósforo todos os dias: divisões e correntes, agitações e marés. Tal como no homem, tal como no mundo.
domingo, 29 de maio de 2011
sexta-feira, 27 de maio de 2011
terça-feira, 24 de maio de 2011
oração
"oração", a banda mais bonita da cidade.
Os amigos também servem para isto: para nos mostrar coisas bonitas.
sábado, 14 de maio de 2011
povo sine nobilitate
Artigo de opinião publicado no Jornal Tribuna (nº 28/Maio 2011), papel impresso.
Este país não é para velhos nem para novos
Estou um bocado farto deste país. É o que normalmente acontece a quem gosta muito de nele viver.
Passei anos da minha juventude a ouvir que os políticos eram “todos iguais”, “vigaristas”, “malandros”. Que só havia políticos “profissionais”, “de carreira”. Políticos que cresciam como cogumelos nessas empresas de outsourcing chamadas “jotas”, que albergam, como é sabido – e com as devidas excepções, que só confirmam a regra – aqueles que nas faculdades são os piores alunos, os que chumbam, os que deixam anos para trás, os que não põe os pés na faculdade, enfim, os que são conhecidos por tudo menos pela capacidade de gestão do tempo, responsabilidade, excelência, brilhantismo. Curiosamente, tudo qualidades que um bom político deve ter.
Estou farto porque depois desse tempo todo a zumbirem-me os ouvidos, vejo como toda esta gente consegue ser muito pateta. E hipócrita.
Devo fazer, antes de mais, uma primeira declaração de interesses: Fernando Nobre não me diz nada. Bem entendido, não é meu amigo, familiar ou accionista de uma S.A. minha. Nunca trabalhei para a AMI (o que é lamentável, bem vistas as coisas) nem nunca participei em nenhuma campanha eleitoral ao seu lado (nem ao lado de ninguém). Nem quando esteve a apoiar o Bloco de Esquerda, nem quando se candidatou à Presidência da República.
Portanto, depois de anos e anos a ouvir aquela lenga-lenga, eis que surge um não-político a candidato à Presidência da República. E quem é ele? Um “jotinha”? Não. Um empresário com interesses na política? Também não. Uma figura qualquer obscura e manhosa que caiu de pára-quedas (são tantos, credo…)? Não, não e não. Soubemos então (os que ainda não sabiam) que o senhor era formado em Medicina (vá lá, não é Direito), professor universitário e fundador da AMI, organização que, como é sabido (esta ninguém tinha desculpa), se dedica a intervenções diversas no campo da solidariedade social (missões humanitárias no estrangeiro incluídas) e que o faz apelando à livre e voluntária participação de todos – o que hoje se chama de “participação cívica” (que só não está expressamente na Constituição porque já lá está muita coisa que infelizmente não é cumprida). E nós, portuguesinhos sempre duvidosos de sobrancelha erguida, lá nos encolhemos. Caraças, e agora, o que devemos pensar de um homem destes?
O pensamento dá azo a muita coisa, já o sabemos. Mas é verdadeiramente notável que os portugueses, os tais que salivam quando falam dos políticos “profissionais”, tivessem entendido o surgimento de Nobre como um “capricho” ou um “acto irreflectido”. Grande parte dos portugueses viu a entrada de Nobre na vida política (que é vida cívica, no rigor das coisas) como um passo de principiante, como alguém que entrou num domínio que não era o dele e que lhe estava, por qualquer insondável natureza das coisas, vedado. É isto que é obra: Nobre “manchou” o seu percurso, “estragou-se”, “deixou de ser quem era” porque entrou na política. Mas então não eram os políticos maus que estragavam a política? Ou a política é que é vil e estraga os homens, afinal? É melhor não pensarmos mais nisto, assustou-se o povo mirando-se ao espelho. O homem não é “para” a política, pronto.
Mas nem todos pensaram assim, felizmente. Alguns entenderam que Nobre era uma lufada de ar fresco e que, ao contrário do que os seus mais cínicos detractores disseram e dizem, tinha ideias para Portugal: na tecnologia e na criação de mercados inovadores, na exploração do nosso potencial marítimo, na lusofonia, na exploração de novos mercados asiáticos e africanos (que serão os de ponta daqui a algumas décadas, se já não o são), etc. Contra isto, os fazedores de cabeças mais mediáticos encarregaram-se de pôr o homem no lugar: Nobre era só uma personagem infantil, naif, “sem um discurso articulado” (sic) e sem “perfil” para Presidente da República. Valha-nos o “perfil” de Cavaco Silva, esse vulto carismático da República.
Mas nem todos pensaram assim, dizia, e o pobre homem teve uma percentagem atraente de votos, o que até lhe deu para pagar a campanha e tudo. Foi esgadanhado mas saiu de cabeça levantada.
O pior estava para vir depois. Aberração das aberrações: não é que o senhor teve a “lata”, o “desplante” de voltar a aparecer para nos incomodar?
Voltamos à lenga-lenga: não há ninguém “independente”, “sério e honesto”, de fora do “pântano dos partidos”. É então que Nobre, qual enfant terrible, aceita o convite do PSD para fazer parte das listas de deputados para a Assembleia da República.
Caíu o Carmo e a Trindade e até o Coppola já tinha material para fazer outro filme de culto. Da direita à esquerda, o povo bolçou sentenças: é um “traidor”, um “vira-casacas”, um “oportunista”. O homem que sempre se disse – e que o foi, de facto – independente, foi assim atacado até não haver mais cartuchos.
O que apetece dizer?
Que estou farto, a transbordar de farto. Só um país atávico e mesquinho como este, hipócrita até aos ossos, é que pode censurar o facto de Nobre ter aceite o convite do PSD. Comecemos à esquerda. A razão aqui é mais facilmente visível: entendem que o homem já apoiou listas do Bloco e que, pecado dos pecados, sempre teve uma visão “de esquerda”. Como se, a partir do momento em que temos posições sobre determinados assuntos, isso nos colasse imediatamente a um espectro político do qual não podemos sair. É esquecer, também, que Nobre sempre defendeu uma economia de mercado como a que temos e uma democracia liberal como a que nos governa, posições que, se devidamente consultadas, poderiam evitar muitos mal-entendidos. Embora, como saibamos, estas vozes sejam as mesmas para quem ainda hoje tudo o que foi de extrema-esquerda antes do 25 de Abril e hoje é socialista ou social-democrata é um vira-casacas aburguesado e para quem Fidel Castro é um homem “fiel aos seus princípios”.
À direita, a coisa ainda tem mais piada, porque menos previsível. Não o chamam de “vira-casacas” (como à esquerda) porque Nobre é, por muito que lhes custe, um homem sem clubismos ideológicos e que, chatice das chatices, aceita o mercado livre. Então, o que resta? Num passe de mágica, argumenta-se que o homem está “absolutamente impreparado” para a política, que “não tem competências (sic) para estar na política”, enfim, que é um infantil mas cândido cidadão (a quem ninguém nega o exemplo cívico, claro) que cometeu um erro perdoável e que o que tem a fazer é voltar lá para as suas coisas dos ”pobrezinhos”. É um “bom homem”, ninguém dúvida, mas não suficientemente bom para… a política. Bons são os que lá estão, deduz-se. E voltamos ao início.
Os únicos dois aspectos a lamentar nesta nova aparição de Fernando Nobre são dois. Um, culpa do PSD, que é o de o ter convidado para ser Presidente da AR, quando, como se sabe, essa tarefa implica um conhecimento de matérias jurídicas e procedimentais complexo. Outro, culpa de Nobre, é o de ter dito, numa primeira fase, que só iria para a AR se fosse para ser Presidente da AR. O que, além de revelar alguma presunção e falta de dignidade para exercer o cargo de deputado (como se este fosse um cargo “menor”), é também surpreendente, ou não soubéssemos todos como é uma “seca” estar a mandar calar os deputados quando o seu tempo de antena chega ao fim. “Tem 30 segundos para terminar, Senhor Deputado…”.
Este país não é para velhos nem para novos
Estou um bocado farto deste país. É o que normalmente acontece a quem gosta muito de nele viver.
Passei anos da minha juventude a ouvir que os políticos eram “todos iguais”, “vigaristas”, “malandros”. Que só havia políticos “profissionais”, “de carreira”. Políticos que cresciam como cogumelos nessas empresas de outsourcing chamadas “jotas”, que albergam, como é sabido – e com as devidas excepções, que só confirmam a regra – aqueles que nas faculdades são os piores alunos, os que chumbam, os que deixam anos para trás, os que não põe os pés na faculdade, enfim, os que são conhecidos por tudo menos pela capacidade de gestão do tempo, responsabilidade, excelência, brilhantismo. Curiosamente, tudo qualidades que um bom político deve ter.
Estou farto porque depois desse tempo todo a zumbirem-me os ouvidos, vejo como toda esta gente consegue ser muito pateta. E hipócrita.
Devo fazer, antes de mais, uma primeira declaração de interesses: Fernando Nobre não me diz nada. Bem entendido, não é meu amigo, familiar ou accionista de uma S.A. minha. Nunca trabalhei para a AMI (o que é lamentável, bem vistas as coisas) nem nunca participei em nenhuma campanha eleitoral ao seu lado (nem ao lado de ninguém). Nem quando esteve a apoiar o Bloco de Esquerda, nem quando se candidatou à Presidência da República.
Portanto, depois de anos e anos a ouvir aquela lenga-lenga, eis que surge um não-político a candidato à Presidência da República. E quem é ele? Um “jotinha”? Não. Um empresário com interesses na política? Também não. Uma figura qualquer obscura e manhosa que caiu de pára-quedas (são tantos, credo…)? Não, não e não. Soubemos então (os que ainda não sabiam) que o senhor era formado em Medicina (vá lá, não é Direito), professor universitário e fundador da AMI, organização que, como é sabido (esta ninguém tinha desculpa), se dedica a intervenções diversas no campo da solidariedade social (missões humanitárias no estrangeiro incluídas) e que o faz apelando à livre e voluntária participação de todos – o que hoje se chama de “participação cívica” (que só não está expressamente na Constituição porque já lá está muita coisa que infelizmente não é cumprida). E nós, portuguesinhos sempre duvidosos de sobrancelha erguida, lá nos encolhemos. Caraças, e agora, o que devemos pensar de um homem destes?
O pensamento dá azo a muita coisa, já o sabemos. Mas é verdadeiramente notável que os portugueses, os tais que salivam quando falam dos políticos “profissionais”, tivessem entendido o surgimento de Nobre como um “capricho” ou um “acto irreflectido”. Grande parte dos portugueses viu a entrada de Nobre na vida política (que é vida cívica, no rigor das coisas) como um passo de principiante, como alguém que entrou num domínio que não era o dele e que lhe estava, por qualquer insondável natureza das coisas, vedado. É isto que é obra: Nobre “manchou” o seu percurso, “estragou-se”, “deixou de ser quem era” porque entrou na política. Mas então não eram os políticos maus que estragavam a política? Ou a política é que é vil e estraga os homens, afinal? É melhor não pensarmos mais nisto, assustou-se o povo mirando-se ao espelho. O homem não é “para” a política, pronto.
Mas nem todos pensaram assim, felizmente. Alguns entenderam que Nobre era uma lufada de ar fresco e que, ao contrário do que os seus mais cínicos detractores disseram e dizem, tinha ideias para Portugal: na tecnologia e na criação de mercados inovadores, na exploração do nosso potencial marítimo, na lusofonia, na exploração de novos mercados asiáticos e africanos (que serão os de ponta daqui a algumas décadas, se já não o são), etc. Contra isto, os fazedores de cabeças mais mediáticos encarregaram-se de pôr o homem no lugar: Nobre era só uma personagem infantil, naif, “sem um discurso articulado” (sic) e sem “perfil” para Presidente da República. Valha-nos o “perfil” de Cavaco Silva, esse vulto carismático da República.
Mas nem todos pensaram assim, dizia, e o pobre homem teve uma percentagem atraente de votos, o que até lhe deu para pagar a campanha e tudo. Foi esgadanhado mas saiu de cabeça levantada.
O pior estava para vir depois. Aberração das aberrações: não é que o senhor teve a “lata”, o “desplante” de voltar a aparecer para nos incomodar?
Voltamos à lenga-lenga: não há ninguém “independente”, “sério e honesto”, de fora do “pântano dos partidos”. É então que Nobre, qual enfant terrible, aceita o convite do PSD para fazer parte das listas de deputados para a Assembleia da República.
Caíu o Carmo e a Trindade e até o Coppola já tinha material para fazer outro filme de culto. Da direita à esquerda, o povo bolçou sentenças: é um “traidor”, um “vira-casacas”, um “oportunista”. O homem que sempre se disse – e que o foi, de facto – independente, foi assim atacado até não haver mais cartuchos.
O que apetece dizer?
Que estou farto, a transbordar de farto. Só um país atávico e mesquinho como este, hipócrita até aos ossos, é que pode censurar o facto de Nobre ter aceite o convite do PSD. Comecemos à esquerda. A razão aqui é mais facilmente visível: entendem que o homem já apoiou listas do Bloco e que, pecado dos pecados, sempre teve uma visão “de esquerda”. Como se, a partir do momento em que temos posições sobre determinados assuntos, isso nos colasse imediatamente a um espectro político do qual não podemos sair. É esquecer, também, que Nobre sempre defendeu uma economia de mercado como a que temos e uma democracia liberal como a que nos governa, posições que, se devidamente consultadas, poderiam evitar muitos mal-entendidos. Embora, como saibamos, estas vozes sejam as mesmas para quem ainda hoje tudo o que foi de extrema-esquerda antes do 25 de Abril e hoje é socialista ou social-democrata é um vira-casacas aburguesado e para quem Fidel Castro é um homem “fiel aos seus princípios”.
À direita, a coisa ainda tem mais piada, porque menos previsível. Não o chamam de “vira-casacas” (como à esquerda) porque Nobre é, por muito que lhes custe, um homem sem clubismos ideológicos e que, chatice das chatices, aceita o mercado livre. Então, o que resta? Num passe de mágica, argumenta-se que o homem está “absolutamente impreparado” para a política, que “não tem competências (sic) para estar na política”, enfim, que é um infantil mas cândido cidadão (a quem ninguém nega o exemplo cívico, claro) que cometeu um erro perdoável e que o que tem a fazer é voltar lá para as suas coisas dos ”pobrezinhos”. É um “bom homem”, ninguém dúvida, mas não suficientemente bom para… a política. Bons são os que lá estão, deduz-se. E voltamos ao início.
Os únicos dois aspectos a lamentar nesta nova aparição de Fernando Nobre são dois. Um, culpa do PSD, que é o de o ter convidado para ser Presidente da AR, quando, como se sabe, essa tarefa implica um conhecimento de matérias jurídicas e procedimentais complexo. Outro, culpa de Nobre, é o de ter dito, numa primeira fase, que só iria para a AR se fosse para ser Presidente da AR. O que, além de revelar alguma presunção e falta de dignidade para exercer o cargo de deputado (como se este fosse um cargo “menor”), é também surpreendente, ou não soubéssemos todos como é uma “seca” estar a mandar calar os deputados quando o seu tempo de antena chega ao fim. “Tem 30 segundos para terminar, Senhor Deputado…”.
domingo, 8 de maio de 2011
o entupimento
fonte: http://aindanaocomecamos.blogspot.com/2011/04/ao-pe-da-letra-133-antonio-guerreiro.html
"Jean Baudrillard, nos seus tempos áureos de cartógrafo e analista do presente, dava este exemplo da “estratégia fatal” dos objetos e da ação que, por excesso, se torna inércia: solicitada a justificar, por suspeita de fraude, as contas anuais que tinha apresentado, uma empresa americana depositou à porta da secção de finanças local um contentor cheio de papéis que, se fossem verificados como estava previsto, entupiriam por longo tempo todos os serviços da secção. A metáfora do entupimento, como sabemos muito bem, aplica-se também a outro exemplo de inércia forçada pelo excesso de mobilidade: as filas de carros parados nas ‘vias rápidas’ para entrar ou sair de uma cidade. Desta forma de entropia, as caixas de comentários dos sites dos jornais são hoje o melhor exemplo: elas foram criadas para alargar a esfera pública mediática, para criar a ágora virtual, apta a realizar as promessas mais amplas da democracia.
Mas o que acontece, afinal? Tão aberto e sem controlo é o espaço que os primeiros a aceder a ele são os que se alimentam do combustível mais forte: os enraivecidos, os despeitados, os ressentidos, os voluntariosos, os tagarelas. Esta gente toda a trocar mensagens e insultos, a disseminar ódios e opiniões, a gritar impropérios e calúnias, ocupa a ágora de maneira tão ruidosa e tão avessa ao “agir comunicacional” que afasta quem, com saber ou racionalidade argumentativa, se dispõe a intervir. A “dialética do Iluminismo”, que Adorno e Horkheimer identificaram na reversibilidade da razão moderna, encontrou aqui a sua realização extrema: uma esfera pública totalmente aberta e ilimitada, exatamente por o ser, redunda no seu contrário; a promessa ‘iluminista’ por excelência torna-se o reino das trevas; e os meios que julgávamos poderem cumprir a promessa de uma sociedade racional tornam-se os instrumentos da barbárie".
"Jean Baudrillard, nos seus tempos áureos de cartógrafo e analista do presente, dava este exemplo da “estratégia fatal” dos objetos e da ação que, por excesso, se torna inércia: solicitada a justificar, por suspeita de fraude, as contas anuais que tinha apresentado, uma empresa americana depositou à porta da secção de finanças local um contentor cheio de papéis que, se fossem verificados como estava previsto, entupiriam por longo tempo todos os serviços da secção. A metáfora do entupimento, como sabemos muito bem, aplica-se também a outro exemplo de inércia forçada pelo excesso de mobilidade: as filas de carros parados nas ‘vias rápidas’ para entrar ou sair de uma cidade. Desta forma de entropia, as caixas de comentários dos sites dos jornais são hoje o melhor exemplo: elas foram criadas para alargar a esfera pública mediática, para criar a ágora virtual, apta a realizar as promessas mais amplas da democracia.
Mas o que acontece, afinal? Tão aberto e sem controlo é o espaço que os primeiros a aceder a ele são os que se alimentam do combustível mais forte: os enraivecidos, os despeitados, os ressentidos, os voluntariosos, os tagarelas. Esta gente toda a trocar mensagens e insultos, a disseminar ódios e opiniões, a gritar impropérios e calúnias, ocupa a ágora de maneira tão ruidosa e tão avessa ao “agir comunicacional” que afasta quem, com saber ou racionalidade argumentativa, se dispõe a intervir. A “dialética do Iluminismo”, que Adorno e Horkheimer identificaram na reversibilidade da razão moderna, encontrou aqui a sua realização extrema: uma esfera pública totalmente aberta e ilimitada, exatamente por o ser, redunda no seu contrário; a promessa ‘iluminista’ por excelência torna-se o reino das trevas; e os meios que julgávamos poderem cumprir a promessa de uma sociedade racional tornam-se os instrumentos da barbárie".