"London Bridge", TWENTY88, EP homónimo, 2016.
Da minha janela vejo o Bósforo todos os dias: divisões e correntes, agitações e marés. Tal como no homem, tal como no mundo.
terça-feira, 31 de maio de 2016
segunda-feira, 30 de maio de 2016
repetição
"Se, em vez de ser um cão, Karenine fosse um ser humano, certamente que já teria dito a Tereza há muito tempo: «Ouve lá, já estou farto de vir todos os dias com um croissant na boca. Não és capaz de me arranjar outra coisa?». Nesta frase, encontra-se resumida toda a maldição do homem. O tempo humano não anda em círculo, mas avança em linha recta. Por isso o homem não pode ser feliz: a felicidade é desejo de repetição.
Sim, é verdade, a felicidade é desejo de repetição, pensa Tereza".
Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser.
domingo, 29 de maio de 2016
sábado, 28 de maio de 2016
sexta-feira, 27 de maio de 2016
sete da manhã (2)
Mostro-me derrotado logo à primeira. Baixo a guarda em absoluto. Sem complacências, sem eufemismos, sem querer criar ilusões em nenhuma boa alma com quem falo. Pragmatismo, comodismo e prudência, três em um, fácil como ir ao supermercado.
Um homem vestido de preto toca-me no ombro e diz-me que tenho de sair. Luz do dia.
Um homem vestido de preto toca-me no ombro e diz-me que tenho de sair. Luz do dia.
quinta-feira, 26 de maio de 2016
sete da manhã
Às sete da manhã, as conversas vão quase sempre dar ao mesmo. Os gestos é que nem por isso. Restam-nos as lamentações e ser felizes com isso enquanto ouvimos a música tocar resistentemente lá em baixo.
O sol tímido, esbranquiçado, a aparecer na vidraça.
quarta-feira, 25 de maio de 2016
Artes Entre As Letras #11 - Crítica de cinema
Numa altura em que o Artes Entre As Letras se prepara para celebrar o seu sétimo aniversário em torno do cinema (dia 18 de junho no Teatro Campo Alegre), escrevo, no último número, sobre A Lei do Mercado (2015, Stéphane Brizé) e a (polémica) Palma de Ouro de Cannes 2015, Dheepan (2015, Jacques Audiard). Boas leituras.
***
A Lei do
Mercado (2015), Stéphane Brizé ★★
Talvez
a nossa desilusão com o último filme de Brizé – dele e “de” Vincent Lindon, a
tal ponto a sua gigantesca interpretação quase obriga a tomá-lo como
“co-realizador” do filme – se prenda com as elevadíssimas expectativas com que
o aguardávamos desde Cannes 2015 (onde coleccionou rasgados elogios) e com a
admiração que temos pelo trabalho de Lindon. Como quer que seja, o certo é que
o filme – tão caro a um “realismo social” historicamente colado ao cinema
francês e hoje representado por gente com os irmãos (belgas) Dardenne –,
partindo de um interessante e actualíssimo argumento sobre o drama social e
familiar do desemprego, acaba, na sua deliberada sisudez, por se tornar num
objecto árido e algo maçudo. Ironicamente, não deixa de ser também um drama sobre
o próprio facto de se estar… empregado, através de um olhar sobre a indecência
moral que a lógica puramente economicista que está contemporaneamente subjacente
ao trabalho impõe às relações humanas, de que é exemplo a incumbência atribuída
a Thierry (Lindon), segurança num supermercado, de espiar os próprios colegas de
modo a “acelerar” o seu despedimento (é o auge da perversidade do Big Brother contemporâneo: já não o
sistema a vigiar, mas a ordenar aos próprios vigiados que vigiem os seus pares,
numa lógica de “todos contra todos”, de dividir para reinar). Se aqui o filme
marca pontos, no plano formal, a aridez de que falámos é em grande parte culpa
do trabalho de montagem, responsável por cenas que, filmadas em registo quase
documental, não resistem à sua exagerada duração e não se equilibram na própria
harmonia global do filme (apenas um exemplo: qual o lugar e o sentido da longuíssima
cena de Lindon a dançar com a mulher na aula de dança?). Depois, há opções
estéticas que agudizam o problema, sobretudo uma câmara incapaz de se manter
quieta, mobilidade assaz irritante e cansativa (a lembrar, nos piores momentos,
a catrefada de séries televisivas que por aí pululam e nas quais tal mobilidade
é, por si só, assumida como um sinal de “estilo”), e a obsessão de Brizé com os
grandes (close) e muito grandes (big close) planos sobre os corpos e,
sobretudo, os rostos dos actores, planos que, se têm a virtude de evidenciar o talento
dramático de Lindon (mas nem todos os actores sabem, como Lindon, ter o rosto
em grande plano durante tanto tempo…), sufocam e atrofiam o filme. Não obstante
as suas deficiências, é um filme que importa aplaudir pelo lúcido e crítico
olhar que lança sobre os nossos tempos, sem nunca ceder, simultaneamente, a
maniqueísmos primários.
Dheepan (2015), Jacques Audiard ★★★
Controversa
Palma de Ouro em Cannes 2015, o último trabalho de Audiard revela-se um filme
muitíssimo actual, nem por isso resvalando, contudo, para o esquematismo ou a estereotipação.
Um homem (ex-guerrilheiro dos Tigres Tamil), uma mulher e uma criança, em fuga
da guerra civil no Sri Lanka, simulam ser uma família (assumindo as identidades
de pessoas mortas na guerra) para alcançar uma “terra prometida” chamada França,
mais concretamente um bairro social parisiense, palco, afinal, de outras
guerras – o caos habitacional, o tráfico de droga e as batalhas de gangs (já objecto da atenção do
realizador em Um Profeta), a
integração social, etc., embora Audiard, ao contrário do que temos lido por aí,
não registe esta realidade sob a esquemática e superficial lente do
“politicamente correcto”. A questão da “guerra” e da violência (nas suas
múltiplas declinações) é o cerne de todo o filme e a linha branca divisória que,
qual trincheira, Dheepan traça em frente à sua casa é a manifestação
sintomática da sua traumática aversão a um impulso – a violência, primária em
todos nós – que teima em persegui-lo, acabando mesmo por explodir na cena
final, tour de force dir-se-ia
inevitável para tanta tensão acumulada. O melodrama, esse, é, uma vez mais, impecavelmente
trabalhado por Audiard (na senda de Ferrugem
e Osso), particularmente na composição daquela “família” (do mesmo modo
que, a certa altura, Yalini questiona Dheepan sobre a sua relação, também o
espectador chega a acreditar naquela “história”) e da enevoada atracção entre “pai”
e “mãe”. Existem, é certo, cenas e personagens menos conseguidas (como a cena
do antigo companheiro de armas que tenta resgatar Dheepan novamente para a
guerrilha, a qual, caída do céu, não recebe qualquer seguimento); por outro
lado, o uso excessivo da banda-sonora, frequentemente a sublinhar determinada
emoção ou “ambiente” experienciado pelas personagens (e, por ricochete, a “impor”
essas mesmas emoções ao espectador), também constitui um ponto a desfavor.
Todavia, bastam dois ou três grandes momentos musicais (os coros com que o
filme encerra, por exemplo) para Audiard evidenciar a sua apurada sensibilidade
e quase nos fazer esquecer os excessos referidos.
segunda-feira, 23 de maio de 2016
Crítica - "Views" (2016)
Foi publicado o meu ensaio/crítica sobre Views, o novo álbum de Drake, que acaba por ser, também, o relato da minha experiência pessoal de rejeição inicial e posterior paixão com a sua música. Drake é, provavelmente, o mais mal-amado dos artistas da actualidade (sobretudo num certo campo mais ortodoxo do hip-hop) e, embora o rapaz não precisa de quem o defenda (longe disso), eu dou-lhe um back up de camaradagem.
Para ler no Rimas e Batidas (clicar).
"(...) a par dessa heresia de cantar abundantemente, veja-se como, à semelhança da revolução feminista que mulheres como Beyoncé ou Nicki Minaj empreenderam na pop e no hip-hop (assumindo que é absolutamente legítimo a um mulher dizer, por exemplo, que quer ir para a cama com quem que lhe apetecer, tanto como a um homem é, sem que isso fira a sua dignidade), Drake virou totalmente “upside down” (...) o estereótipo do rapper macho e durão ao interpretar letras nas quais surge frequentemente como o homem rejeitado, trocado, traído, enfim, o tipo na mó de baixo a quem não chega ter muito dinheiro para recuperar um amor definitivamente perdido – letras que, pela sua sensibilidade transversal, puxaram também o público feminino para si como poucos rappers o conseguiram fazer. Se isto não é revolucionário no hip-hop e na noção de masculinidade em geral, então não sei o que revolucionário quererá dizer. Drake, no seu desmesurado egocentrismo, é uma persona artística complexa e paradoxal, a um só tempo raw e lamechas, rude e sensível, gabarolas e poético".
[Excerto]
sábado, 21 de maio de 2016
sexta-feira, 20 de maio de 2016
fui corrigido e gostei
Fui corrigido e gostei. Depois de me enviarem uma fotografia do meu amigo Fred Maluco, que já não vejo há uma carrada de tempo, acompanhada da frase "He Lives"(uma variação carpentiana muita adequada ao perfil "zombie" do Fred Maluco), fiz, num inocente esforço de abreviação, a fatídica pergunta sobre a origem da fotografia:
É do gram?
A resposta, resoluta e censória, veio de chofre: Face. E diz-se insta, não gram.
"Diz-se insta". "Não gram".
Ainda tentei fazer uma piada: "em que decreto-lei está isso definido?", perguntei. Mas o mal já estava feito, a grande Norma da Uniformização Geral havia sido transgredida, e, por isso, fiquei sem resposta. Até hoje. Naturalmente.
quinta-feira, 19 de maio de 2016
What grown folks do when they grown and they dating
"Juke Jam", Coloring Book (2016). Chance The Rapper.
"I mean it's just dancing
It's harmless as fuck
Then I put my waist through your hips
And your legs and my arms just to harness you up
Then we hit the floor
All the kiddies stop skating
To see grown folks do what grown folks do
When they grown and they dating"
quarta-feira, 18 de maio de 2016
terça-feira, 17 de maio de 2016
Gente e Pedra
"Gente e Pedra", álbum KSX2016. Keso. A minha crítica aqui (clicar).
"Se queres tirar bilhete, amigo… então vai…vai
(mas eu deixo-te um aviso)
Por todo lado a mesma merda
Gente e pedra
Gente e pedra"
domingo, 15 de maio de 2016
pragmatismo
O pragmatismo, nela, desafia a lógica convencional: é poético. Como quando, ao fim da tarde, tira os óculos de sol para prolongar um pouco mais o dia, não deixar que a luz desapareça, adiar a vontade inexorável das leis da natureza.
sexta-feira, 13 de maio de 2016
C'est la loi qui affranchit
Ontem, numa série francesa sobre os tempos do Vichysmo (RTP 2), um diálogo entre dois elementos da resistência (um homem e uma mulher) chamou-me a atenção. Discutem o futuro do país e têm, obviamente, como modelo esse paraíso na terra chamado URSS. "Lá não há exploração", assevera-lhe o homem. Ela, maravilhada e perplexa em doses iguais, pergunta: "Como não há exploração nenhuma? Não há empregadas de limpeza?".
A exploração, na cabeça desta resistente, está no simples facto de existirem empregadas de limpeza: num mundo ideal sem "exploradores e explorados", as empregadas de limpeza não podem existir (supõe-se que bombeiros, juízes, jogadores de futebol e chefs de cozinha famosos se revezem, fraternalmente, na limpeza dos domicílios dos seus concidadãos). Não interessa, pois, o concreto modo como essa profissão é exercida: se as condições salariais são justas, se o horário de trabalho é adequado (e permite o gozo da dimensão familiar, social e recreativa da vida), se o direito a férias e outro tipo de direitos e garantias laborais estão plenamente assegurados. Isto, que é o fundamental, não é relevante. O que está em causa é todo um problema de representação social, do domínio do simbólico, que diz mais do que aquilo que a autora da pergunta gostaria sobre a sua (complexada) visão estratificada (classista?) da sociedade: ao fazer essa pergunta, o que deixa implícita é a forma como, subconscientemente, considera, afinal, pouco digna a profissão de empregada de limpeza, quando o que faz dessa ou doutra profissão mais ou menos digna - digna, não "qualificada", "criativa" ou o que for - é a protecção que a lei (a tal que, entre o forte e o fraco, liberta) deve assegurar ao trabalhador.
quarta-feira, 11 de maio de 2016
He came from somewhere back in her long ago
"What A Fool Believes", álbum Minute by Minute (1978). The Doobie Brothers.
"But what a fool believes... he sees
No wise man has the power to reason away
What seems to be
Is always better than nothing
And nothing at all keeps sending him
Somewhere back in her long ago
Where he can still believe there's a place in her life
Someday, somewhere, she will return"
No wise man has the power to reason away
What seems to be
Is always better than nothing
And nothing at all keeps sending him
Somewhere back in her long ago
Where he can still believe there's a place in her life
Someday, somewhere, she will return"
terça-feira, 10 de maio de 2016
Crítica - "KSX2016" (2016)
Já tinha pré-anunciado aqui há dias e hoje foi publicada no Rimas e Batidas a minha crítica àquele que considero um dos álbuns do ano da música portuguesa (e o tempo dirá se não será mesmo o mais importante de 2016): KSX2016 (edição Biruta e Paga-lhe o Quarto), de Keso. O álbum completo pode ser ouvido e adquirido no Spotify (ou só ouvido no YouTube).
Para ler aqui (clicar).
Para ler aqui (clicar).
"KSX2016 é um disco urgente. Não só porque quebra um hiato editorial na carreira de Keso, mas também porque é o disco geracional que faltava ao Portugal do período “Troika”, o olhar crítico e reflexivo sobre os nossos últimos anos enquanto comunidade e enquanto indivíduos. A maioria dos artistas portugueses que tem cantado a crise tem-no feito a partir de um ponto de vista essencialmente interno, i.e., falando do país como ele está e de como é difícil nele (sobre)viver (caso paradigmático é, obviamente, “Parva Que Sou” dos Deolinda). Ora, nas primeiras canções de KSX2016, o olhar é de quem esteve (à data dos factos que inspiraram as canções) do “outro lado”, i.e., do português que, deparando-se com esse estado de coisas, se viu forçado a abandonar o barco, é dizer, a emigrar, relatando essa experiência na “terra prometida” que vira, afinal, pesadelo (“Saí de um ghetto para acabar num ghetto…” ouve-se, dolorosamente, em “Defeito Sério”). Como tanta gente que todos nós conhecemos do nosso círculo de familiares, amigos ou simples conhecidos (dos mais aos menos qualificados), Keso emigrou para Londres, sendo a partir dessa diáspora, mais concretamente a partir do exacto dia em que, com mais um colega, se despede da mãe no Aeroporto Sá Carneiro, que o álbum começa a um ritmo simultaneamente poderoso e comovente, furioso e tocante, raivoso e poético (o sample que se ouve a meio de “Defeito Sério” aponta bem o dedo aos culpados pelo estado do país)".
[Excerto]
segunda-feira, 9 de maio de 2016
domingo, 8 de maio de 2016
I ain't goin' nowhere soon
"Slow Groove", EP AlWasta (2016). Oddisee.
"Slow
groove
I just wanna take my time
I don't mind the wait in line
I ain't goin' nowhere soon
I just wanna take my time
I don't mind the wait in line
We ain't goin' nowhere"
sábado, 7 de maio de 2016
sexta-feira, 6 de maio de 2016
Crítica - O Revólver Entre as Flores (2011)
O meu artigo sobre O Revólver Entre as Flores, álbum de 2011 de Keso, foi republicado no Rimas e Batidas, e é um aperitivo para minha crítica que sairá muito em breve sobre o seu novo trabalho: KSX2016. Para ler aqui (clicar).
quinta-feira, 5 de maio de 2016
paganismo
Ao contrário das crianças, as mulheres nunca são as últimas a falar, nunca fazem questão de ficar com a última palavra. Uma vez tomada a resolução, calam-se, nuns casos por frieza, noutros confiando que, por magia, o silêncio fará o seu efeito bumerangue. É uma crença como qualquer outra, com a particularidade de, ao contrário das religiosas, ter uma durabilidade limitada e nela ser tácito que, caso o tempo não produza o efeito pretendido, então paciência, nada a fazer. Nesse momento, deixam, muito comodamente, de ter fé, esperando, daí em diante, por um novo deus que há-de chegar.
quarta-feira, 4 de maio de 2016
terça-feira, 3 de maio de 2016
HOKKAIDO
"Salto", EP HOKKAIDO (2016). João Tamura e Holly.
Por razões várias, nenhuma aceitável, tenho-me esquecido de referenciar aqui o recém-editado EP HOKKAIDO, o último e magnífico trabalho de João Tamura, talentoso artista cuja trabalho se dispersa pela poesia, música e fotografia. Incluí a poesia justamente para sublinhar a dimensão antes de mais literária das palavras que emprega nas suas músicas, o que faz dele não exactamente (ou exclusivamente) um rapper, mas alguém igualmente próximo de um artista de spoken word (declamador).
HOKKAIDO, que junta Tamura (letras) ao prolífico produtor Holly (irmão de DJ Ride), responsável pela sonoridade atmosférica (e não menos poética do que as palavras que se ouvem) do EP, é, até ao momento, a obra máxima de Tamura, aquela em que os seus extraordinários poemas ganham a maturidade definitiva. Para ouvir e voltar a ouvir, com tempo e os sentidos despertos. Download gratuito do EP no sítio oficial.
"quando o mar chegar e eu não souber nadar, acredita mãe, eu salto!
quando o céu cair, quando todo o chão ruir, tu tem calma mãe, eu salto!
quando ela não descer, quando tudo não crescer, olha para mim, eu salto!
quando o fim vier, eu salto... quando o fim vier, eu salto!"
quando o céu cair, quando todo o chão ruir, tu tem calma mãe, eu salto!
quando ela não descer, quando tudo não crescer, olha para mim, eu salto!
quando o fim vier, eu salto... quando o fim vier, eu salto!"
segunda-feira, 2 de maio de 2016
IndieLisboa #5: A verdade como modo de existir em Vincent Macaigne
Voltei de Lisboa e de uma semana de bons filmes (nenhum extraordinário, ainda assim), cujo ponto alto foi a descoberta de um realizador e actor chamado Vincent Macaigne.
O (apaixonado) texto com que encerro a minha cobertura do IndieLisboa é, justamente, sobre ele e pode ser lido no À pala de Walsh (clicar).
Para quem tiver interesse, os meus textos sobre o festival: [1], [2], [3], [4], [5].
Para quem tiver interesse, os meus textos sobre o festival: [1], [2], [3], [4], [5].
"Não há como dizê-lo de outra forma (a não ser pelo gozo pelo rebuscado, que não cultivo): Vincent Macaigne é um grande actor. É daqueles a quem tal adjectivação, por mais utilizada que seja, por mais banal que se torne, assentará sempre com a propriedade e o rigor que ela genuinamente possui, em qualquer momento e em qualquer lugar. Macaigne carrega essa intemporalidade na palete de recursos dramáticos que convoca, na fisicalidade do seu corpo, grande e possante (há algo de Gérard Depardieu em si…), a contrastar com a profunda fragilidade emocional das suas personangens. Tanto em Une histoire américaine (...), como em Tonnerre (...), como, ainda, em Les deux amis (...), Macaigne é o “homem na valeta”, o homem rejeitado por uma mulher, o animal ferido – o “cachorro” a quem, por vezes, só falta mesmo a língua de fora… – que se recusa a lamber as feridas. Como um miúdo que faz uma ferida no chão da escola a jogar futebol mas não resiste à tentação de voltar a jogar no dia seguinte, Macaigne não desinfecta a ferida, não lhe passa Betadine, não coloca um penso, não deixa sarar (...). A crosta – a primeira barreira protectiva – nunca chega, por isso, a formar-se, justamente porque Macaigne é avesso à cicatrização, preferindo voltar ao campo de futebol – a um “campo de batalha” chamado Amor – e fazer, numa qualquer disputa de bola, um carrinho de joelho no chão. “Sem medo!”, como se diz na gíria".
[Excerto]