Da minha janela vejo o Bósforo todos os dias: divisões e correntes, agitações e marés. Tal como no homem, tal como no mundo.
quinta-feira, 30 de junho de 2016
quarta-feira, 29 de junho de 2016
Artes Entre As Letras #12 - Crítica de cinema
Sai hoje para as bancas o último número do Artes Entre As Letras, onde escrevo sobre os mais recentes filmes do Ozon, Lanthimos e Wan. Bons filmes e boas leituras.
***
Uma Nova
Amiga (2014), François Ozon ★★★★
O
modo como, nos primeiros minutos, Ozon “despacha”, de modo tão enxuto quanto fluido
e sugestivo, o passado das personagens que daí em diante acompanharemos, condensa
a essência do cinema do francês: um classicista, sim, mas alguém que domina e
gosta de brincar com a linguagem cinematográfica na sua totalidade (movimentos
de câmara, planos, enquadramentos, citações cinéfilas, marcas meta-narrativas),
razão pela qual, ao contrário de alguns, não temos problemas em ver nele um auteur por mérito próprio, não obstante
a sua sensibilidade “pop” e o facto de habitar no seio da indústria francesa.
Embora hitchockiano e chabroliano (de que é exemplo Dentro de Casa, 2012), os seus últimos dois filmes – incluindo este
– afastaram-se um pouco dessa linhagem (se bem que Psycho seja aqui claramente citado, quer no plano da cabeleira
loira vista de costas pelo espectador, quer na própria casa utilizada, a
lembrar a dos Bates); de facto, e tal como no excelente Jovem e Bela (com essa revelação tão bela quanto talentosa chamada
Marine Vacth), Ozon está em terreno eminentemente melodramático (mais próximo,
por exemplo, de um Almodóvar), o qual é explorado mediante a história de um
homem (Romain Duris, interpretação soberba) cuja morte da mulher o leva a
retirar os esqueletos (e os vestidos) do armário e afirmar a sua vontade de ser
mulher. Ozon trata do tema (deste e, inerentemente, do do Corpo, tema-maior do
seu cinema) sempre com subtileza, contenção e uma sofisticada economia de
meios, nunca oferecendo leituras simplistas ou assertivas – muito menos
moralistas ou panfletárias – sobre os dramas da identidade e orientação sexual
quer de Duris, quer da personagem interpretada não menos brilhantemente por Anaïs Demoustier, cuja eventual homossexualidade
é, por sua vez, questão tão ou mais enublada (será mesmo homossexual ou a
atracção pelo mesmo sexo se resume a uma obsessão pela amiga falecida?; mas, nesta
última hipótese, porquê a alucinação do marido com outro homem no banho?). Há
muitos e excelentes motivos (a cena de amor entre os dois, a música da cantora
de cabaret que ressoa intra-diegeticamente ao longo de todo o filme), portanto,
para continuar a acompanhar atentamente o trabalho de Ozon, cineasta que tem
conseguido construir a sua prolífica carreira sem nunca abdicar de uma
personalidade artística própria.
A
Lagosta (2015), Yorgos Lanthimos
★★★
Depois
do furor causado pelo não menos insólito Canino
(2009), o grego volta à carga com este “conto moral” sobre uma sociedade
distópica onde a conjugalidade é a norma social coercivamente imposta, sendo os
“casos desviantes” enviados para um “internamento” de 45 dias no “Hotel”, ao
fim dos quais, caso o indivíduo (no caso, Colin Farrell) não se emparelhe com
outrem, é transformado num animal (e Lanthimos bem poderia ter explorado um
pouco mais essa transformação, pois o seu filme grita “fábula” por todos os
lados). No Bosque, a “Resistência”, liderada por Léa Seydoux, combate o
“pensamento dominante” sob o signo, no extremo oposto, da rejeição absoluta do
amor e do compromisso. Lanthimos é, a par de Athina Rachel Tsangari (Attenberg, Chevalier), representante de um cinema grego mais recente caracterizado
pelo gosto pelo insólito, o humor negro e o niilismo, e esta paródia às
relações humanas, aos efeitos da tecnologia das “redes sociais” nas mesmas (a
busca obsessiva por um “aspecto em comum”, por mais absurdo ou inócuo que seja,
como sangrar do nariz, para justificar a “compatibilidade de perfis” com
outrem e assim escapar ao fatídico destino, tal e qual as redes
sociais que a toda à hora nos sugerem que nos “conectemos” com esta
ou aquela pessoa por ela ter gostos ou interesses em comum connosco) e às
convenções sociais, seguindo nessa mesma linha, não se torna nunca previsível
ou redundante, ao mesmo tempo que deixa espaço para a construção de um drama
(no sentido clássico do termo) sério e sensível que, na sua essencialidade, é o
que subjaz a toda e qualquer relação amorosa.
The
Conjuring 2 – A Evocação (2016), James Wan ★★
Não
partilhamos do entusiasmo que alguma crítica tem votado a Wan (até mesmo no sétimo
volume da inenarrável saga Velocidade
Furiosa – sim, Wan é habilidoso, mas ainda não faz magia…), que assina aqui
a sequela do filme de 2013, também por ele realizado (ele que é igualmente o
produtor da saga de terror Saw). Não
se nega o virtuosismo e a sofisticação do australiano (nascido na Malásia) no
manuseamento da câmara e, mais abrangentemente, no domínio de toda a técnica
cinematográfica; simplesmente, isso – e o (exíguo) subtexto “político” do filme
(a importância da família, a censura da Igreja aos desvios à norma, a
“insistência” da televisão em Margaret Thatcher…) – não é suficiente para afastar
a sensação de estarmos perante apenas mais um filme de terror, no sentido de um
redutora persistência em convenções e tiques do género, que não se move um
centímetro para lá do que ele (género) pressupõe e o espectador espera (efeito
perverso, este, quando ao terror se pede justamente… imprevisibilidade). Aliás,
mesmo naquilo que é central – o terror, voilà
–, o filme, não sendo especialmente intenso, é, todo ele, um repositório de
velhos truques (luzes que se apagam, portas que se fecham, ruídos estranhos,
torneiras a pingar, etc.) cuja reprodução sucessiva, além de conferir um certo
traço caricatural ao filme, transmite ao espectador a fastidiosa sensação de
estar a entrar num carrossel e de cada noite na casa da família Hodgson – e
porquê que o terror não se manifesta de dia? Há algum primarismo nesta
dicotomia tão rigidamente assim tratada – ser mais uma metódica “volta” em que,
ao início, colocamos o cinto, depois enfrentamos a adrenalina e finalmente
descansamos – só até à próxima volta.
segunda-feira, 27 de junho de 2016
In Defense of Love
Nunca mais me esqueci, desde os tempos do primeiro ano de Direito (disciplina de Ciência Política brilhantemente leccionada por uma Professora como há poucas), do título de um livro de Ronald B. Livinson: In Defense of Plato.
Com as devidas distâncias, é o que vou tentar fazer - um "Em Defesa do Amor" (olha o que me tocou, irónico) - com o extraordinário Love do Gaspar Noé (quatro estrelas, posso adiantar) no número de Julho do Artes Entre As Letras, filme demolido por grande parte da crítica. Mas, até lá, ainda divulgarei por aqui as críticas as três filmes que fiz para o número de Junho. Em breve.
Aloys
Nada supreendentemente, o magnífico Aloys, de Tobias Nölle, venceu o prémio para melhor longa-metragem de ficção (Lince de Ouro) no FEST. Escrevi sobre o filme para o jornal do festival, texto que pode também ser lido aqui (clicar). Agora é esperar que o filme tenha exibição comercial em Portugal.
sábado, 25 de junho de 2016
fragmentos
"Fragmentos" (com Filipe Gonçalves), álbum Em Nosso Nome (2012). Sir Scratch.
"E explicar onde está, foi contigo só pode. Eu perguntei, quis saber, pareço o único que se importa. Não respondes, nem tu, nem Deus, adeus e pronto. O que era nosso ao Deus dará, ficou tudo sem dono".
FEST 2016 #3: You are the Dancing Queen / Young and Sweet / Only seventeen
O meu terceiro e último texto para o jornal do FEST é sobre o duríssimo Granny's Dancing on the Table (2015), de Hanna Sköld. Os prémios do festival são anunciados no dia 27 de Junho.
Para ler também no À pala de Walsh (clicar).
"O final do filme, declaradamente aberto, coloca-nos, obviamente que noutros termos, perante o mesmo derradeiro dilema de Ingrid Bergman em Stromboli: Eini continuará ou voltará para trás? Diríamos apenas – e dizemos tudo – que o modo como a última parte do filme e, em especial, o último plano são filmados é ilustrativo da confiança – e o que depositamos numa pessoa quando nela confiamos senão a liberdade e o respeito pela sua autonomia? – que Sköld deposita na personagem e na sua força de espírito. Rimando com o filme, diríamos que, onde há fumo… há mesmo fogo".
[Excerto]
quinta-feira, 23 de junho de 2016
Curtas Vila do Conde
O Curtas Vila do Conde está de regresso, naquela que é a sua 24.ª edição. Colaborei com vários textos para o festival, os quais, por altura da exibição dos filmes, divulgarei por aqui.
A programação oficial já foi anunciada e pode ser consultada aqui.
FEST 2016 #2: o Outro é um lugar estranho
O meu segundo texto para o jornal do FEST incidiu sobre o magnífico Aloys (2016), de Tobias Nölle, filme vencedor da secção Panorama do Festival de Berlim deste ano.
Para ler também no À pala de Walsh (clicar).
"Aloys Adorn é um detective privado que, após a morte do pai (com quem trabalhava), verá a sua solitária mas tranquila vida afectada por um acontecimento marcante. É, também, alguém que faz da sua câmara de filmar a “janela indiscreta” portátil que lhe permite, mais do que realizar o seu trabalho, alimentar-se obsessivamente da vida dos outros – como um vampiro que suga o sangue vital – para suprir o enorme vazio emocional e afectivo do seu dia-a-dia. A ausência do pai será substituída por uma nova presença, solitária como ele, a qual, num jogo do gato e do rato, lhe fará o que ele está habituado a fazer aos outros, o feitiço a virar-se contra o feiticeiro".
[Excerto]
quarta-feira, 22 de junho de 2016
no jardim
Quando vou correr (disse "correr", não vestir toda uma indumentária de "running" acompanhada de headphones e de um aparelho para contabilizar o número de inspirações, expirações, batimentos cardíacos e outras informações que tais), dá-se, frequentemente, um momento pelo meio do percurso que quase sempre me interrompe a passada e exige um compasso de espera. Ao contrário do que é habitual, porém, este percalço não me causa irritação. Ainda a subir a rampa em direcção ao lago, avisto, ao longe, uma mancha branca ora imóvel, ora num movimento lento indecifrável. Vou-me aproximando cada vez mais e, a certa altura, tenho mesmo que a contornar. São os noivos e o respectivo fotógrafo a ensaiar poses para a câmara. Sentados no lago, ao lado das japoneiras, das tílias ou das palmeiras, nos banquinhos solitários ou nas escadinhas de pedra daquele jardim que, para minha felicidade, se conserva tão belo quanto recatado. Em breve, talvez dali a umas semanas, estarão rodeados de dezenas de pessoas, muitos fatos e vestidos, sorrisos, palmadinhas nas costas, palavras de incentivo de ocasião. Mas ali, naquele momento, sozinhos e sem ninguém ao redor para agradar nem convenções para cumprir, ali onde o entusiasmo do amor convive com o eterno embaraço de tirar fotografias de acordo com todo um código cénico, é como se eu tivesse um acesso secreto aos preparativos, como se estivesse na antecâmara do grande dia observando a montagem do espectáculo: as luzes, os fios, o guarda-roupa, o décor. Normalmente, vejo genuína felicidade nos seus rostos e, sentindo-me uma testemunha privilegiada dos acontecimentos, fico a pensar: quantos deles continuarão juntos depois de tudo isto? Por quanto tempo? Lembrar-se-ão desse dia em que tiraram aquelas fotografias no jardim? Não sei porquê, mas, nestes momentos, também penso na minha vida e revejo umas quantas mulheres com quem estive. Mas as minhas pernas têm de continuar a correr; correm como se eu não as controlasse, até que passarão por outros casais, agora de namorados, miúdos sem nada para fazer à tarde senão namorar com o jardim e o rio ali ao lado como companhia. Penso: não são nada diferentes dos noivos que vi há pouco.
Continuo a correr, até que há-de chegar o momento em que um ou outro pavão, que os guardas do parque têm a bondade de soltar pelo fim do dia, me aparece de repente pelo caminho. Assusto-me quase sempre e depois sorrio. Acho que correr é a solução para quase tudo. Ou para tudo mesmo.
terça-feira, 21 de junho de 2016
segunda-feira, 20 de junho de 2016
FEST 2016 #1: Amor em tempos de cólera
O FEST - Festival Novos Realizadores | Novo Cinema inicia-se hoje e decorre até dia 27 de Junho em Espinho. Colaborei com alguns textos para o jornal do festival, os quais poderão também ser lidos no À pala de Walsh.
O primeiro é sobre o documentário (se bem que matizado por uma dimensão ficcional) Alisa in Warland (2016), de Alisa Kovalenko e Liubov Durakova, em competição na secção Lince de Ouro - Longa-Metragem de Documentário. O filme passa amanhã, pelas 22h30. O meu texto para ler aqui (clicar).
"Todo este olhar documental e “macro” sobre a História colectiva de um país corre em paralelo com um tocante olhar “micro”, agora docuficcional (na senda do género híbrido em que o documentário se vem contemporaneamente transformando), sobre a história individual de amor entre Alisa e o seu namorado Stéphane (um jornalista francês correspondente na Ucrânia), modo de ilustrar como as duas “histórias” (com “H” maiúsculo e minúsculo) se influenciam e condicionam reciprocamente, e como nem sempre a urgência da História permite a subsistência das relações humanas mais íntimas (...)".
[Excerto]
sexta-feira, 17 de junho de 2016
a eternidade
Uma de dez e outra de cinco. Quinze cêntimos no total. Era o que eu tinha, não é maldade. Entreguei-lhos e, perante o rosto fechado, pedi desculpa: "Está aqui à vinda? Dou-lhe mais alguma coisa nessa altura". O rosto permaneceu fechado, mas a raiva revelou-se abertamente, shakespeareanamente:
Se eu vou estar aqui à vinda?! Olha qu'esta... E sabe a que horas é a eternidade? Han, diga lá, a que horas é a eternidade?
quinta-feira, 16 de junho de 2016
I know it's better to have loved and lost / Than never have loved at all
"Two Steps From The Blue", álbum Two Steps From The Blue (1961). Bobby Bland.
segunda-feira, 13 de junho de 2016
O amor não é cego
Tenho poucas dúvidas de que, no final declaradamente aberto de A Lagosta, filme-paródia das relações humanas e do modo como a tecnologia da "socialidade" as tem contaminado, Colin Farrell não se chega a cegar a si próprio, embora - isso já concedo - talvez diga a Rachel Weisz que sim, que o fez. E há duas, pelo menos duas, boas razões para acreditar nisso.
1. A primeira razão assenta no seguinte: o acto de infligir a si próprio a cegueira seria, apenas e só, algo estúpido e sem qualquer ligação com a comunhão, física e espiritual, que o amor supõe. Tão estúpido como o facto de, durante a parte do filme passada no Hotel, os “internados” procurarem algum “aspecto em comum”, por mais absurdo ou inócuo que seja (como sangrar do nariz), para justificar a “compatibilidade de perfis” com outrem e assim escaparem ao fatídico destino (tal e qual as redes sociais que a toda a hora nos sugerem que nos “conectemos” com esta ou aquela pessoa por ela ter gostos ou interesses em comum connosco). Essa mesma estupidez é inclusivamente “praticada” pelo próprio Farrell com Weisz no Bosque, no sentido em que se aproxima desta pelo facto de, tal como ele, também ela ter... miopia. É, aliás, “com base” nessa circunstância que se vêm a apaixonar. Depois de Weisz ficar cega, e como se já não existisse uma "razão" – um “aspecto em comum”, lá está – para estarem juntos, ele pergunta-lhe se ela sabe falar alemão, se gosta de mirtilo, etc. etc., tudo tentativas de restabelecer novamente a tal “compatibilidade” perdida (como um "ponto de acesso" de Wi-Fi que precisa de ser novamente encontrado...). Ora, é a tomada de consciência de que é, afinal, o amor genuíno aquilo que os une, e de que esse amor dispensa esse tipo de “compatibilidades” absurdas, que justificará, por isso, a desnecessidade desse acto auto-mutilador (até porque, se existem "actos de loucura" românticos com a sua razão de ser, pelo menos num plano idealista, este, servindo apenas para cumprir uma formalidade, um requisito, não é um deles). Eles não precisam disso; eles amam-se e isso é suficiente, aliás, é tudo. A sua relação está noutro patamar, muitíssimo distante quer do do Hotel, quer do do Bosque, desde logo por ser um patamar "natural", i.e., livre e desejado (e não imposto coercivamente).
2. Farrell e Weisz são duas pessoas que, perante duas "ideologias" extremas (a conjugalidade obrigatória que a norma social, personificada pela Cidade e pelo Hotel, impõe, de um lado; a rejeição absoluta do amor e do compromisso que a "Resistência" postula, do outro), não se sentem bem com nenhuma delas. São, por isso, duas pessoas que, naquele estado de coisas, mantêm uma certa lucidez e continuam a acreditar que há espaço para relações amorosas relativamente saudáveis e, enfim, equilibradas (note-se no primeiro "click", próprio da sedução e do desejo humanos, entre os dois, diametralmente oposto aos "engates" pré-programados que vigoram no Hotel: uma breve mas intensa troca de olhares no Bosque). Por isso é que ambos fogem do Hotel, primeiro, e do Bosque, mais tarde. Ora, no Hotel, há, ainda antes do seu encontro, uma cena importante: depois de Farrell se "emparelhar" com a "Mulher Insensível" e esta descobrir o embuste, ela diz-lhe, sentenciosamente (como quem clica no botão unfriend), qualquer coisa como: "Tu mentiste e uma relação não se compadece com mentiras". Resultado: o fim "automático" da relação, o castigo que Farrell terá que cumprir e, mais importante do que tudo, a afirmação imperial de um axioma - numa relação, não pode existir qualquer tipo de mentiras (que a "mentira" em causa seja referente à encenada insensibilidade de Farrell é algo que só sublinha a traço grosso a estupidez e o nonsense desse mesmo axioma).
Ora, esta sentença é proferida justamente por alguém situado num extremo, alguém radical ou ortodoxo que acredita e segue as regras daquele Hotel distópico (e que nessa ortodoxia se aproxima, em termos de insensatez e estupidez, da praticada, bem assim, pela Resistência, enfim, é a velha ideia de que "os extremos se tocam"). Mas a verdade, bem pelo contrário, é a de que todas as relações (amorosas e não só) podem e devem tolerar pequenas mentiras (o grau depende das concretas pessoas envolvidas), sob pena de se tornarem insuportáveis, irrespiráveis. Aliás, na cedência, na tolerância, na flexibilidade para com a pessoa que amamos, não vai também envolvida uma certa dose de "mentira" ou fingimento? Porque o fundamental entre Farrell e Weisz não é a totalitária equiparação de "perfis", porque o fundamental no amor não é, afinal, a absoluta "igualdade de partes", mas também porque uma relação amorosa, para resistir ao tempo e aos abanões, tem necessariamente de assimilar algumas "mentiras", é que Farrell, não se cegando, poderá (i.e., tem legitimidade para), eventualmente, dizer o contrário a Weisz. De facto, o amor deles, que é verdadeiro, conviverá bem com a eventual mentira de Farrell, pois isso não é o essencial. Aliás, bem vistas as coisas, isso, essa "mentira", é o menos importante - como o são, na esmagadora maioria das vezes, as "mentiras" que existem em qualquer relação de amor, incomensuravelmente menos relevantes do que aquilo que realmente importa e que tão difícil é, por si só, de encontrar com e noutra pessoa.
domingo, 12 de junho de 2016
sábado, 11 de junho de 2016
Primavera
O festival Primavera é um dos lugares mais estranhos onde já tive a oportunidade de estar. Betos, "hipsters", turistas, melómanos, gente que liga tanto a música como eu a comida saudável, crianças a correr e a comer gelados, pais e avós a falar dos filhos e netos e a limparem-lhes o gelado do queixo, adolescentes e estudantes universitários, enormes casas com uma inscrição gigante a dizer "TABACO" (e a impingirem Marlboro; ainda perguntei: "Mas a senhora ganha alguma comissão?" Disse-me que não e eu mantive-me fiel ao Chesterfield), um balcão enorme que oferece flores "à Woodstock" para as meninas colocarem na cabeça, barracas de uma marca de cerveja e barracas com a inscrição "WINE HOUSE", um posto de turismo municipal, barraquinhas de todas e mais algumas tascas do Porto ("very typical, very typical") lado a lado com outros habitués mais industriais destas andanças, casas de sushi, lojas FNAC, lojas de telecomunicações com "passatempos". Ah, também há a musica (muito boa e "alternativa", consta) e os concertos: é como estar numa discoteca ao livre, com a particularidade de as conversas dos outros, inaudíveis numa discoteca, se fazerem ouvir desavergonhadamente pelo meio dos concertos. Dir-me-ão que já é assim há muito tempo com outros festivais, mas esses, pelo menos, assumem-no sem complexos e dispensam a capa do "alternativo", do "ecológico" e não sei o que mais.
É a utopia das utopias, o nada dos nadas. Um lugar que não existe, um não-lugar. Uma Disneyland barbuda e de saquinho de pano ao ombro. Viva a pós-modernidade. Façam o favor de ser felizes.
É a utopia das utopias, o nada dos nadas. Um lugar que não existe, um não-lugar. Uma Disneyland barbuda e de saquinho de pano ao ombro. Viva a pós-modernidade. Façam o favor de ser felizes.
segunda-feira, 6 de junho de 2016
Once a voice whispered inside me
"All of My Life", álbum Hit Kit (1959). Sam Cooke.
"Once a voice whispered inside me:
Wait for someone who's true
Don't love another for love is forever
And no one else will do"
1/1000
"O que procurava em todas essas mulheres? O que é que o atraía? O amor físico não é sempre a eterna repetição do mesmo?
De forma nenhuma. Há sempre uma pequena percentagem de inimaginável. Quando via uma mulher vestida, embora, evidentemente, pudesse fazer mais ou menos uma ideia de como seria depois de despida (...), restava sempre um pequeno intervalo de inimaginável entre a inexactidão da ideia e a precisão da realidade, e era precisamente essa lacuna que lhe tirava o sossego. E, depois, a busca do inimaginável não termina com a descoberta da nudez; vai para além dela: que caras fará enquanto se despe? o que dirá enquanto faz amor? em que tom suspirará? que ricto se imprimirá no seu rosto no momento da volúpia?
O que o eu tem de único encontra-se precisamente naquilo que o ser humano tem de inimaginável. Só consegue imaginar-se o que é idêntico em todos, o que é comum a todos. O «eu» individual é aquilo que se distingue do geral, e é, portanto, aquilo que não pode ser adivinhado nem calculado antecipadamente, aquilo que primeiro é preciso desvendar, descobrir, conquistar no outro.
(...) Dizendo-o por números, entre eles [os «eus»] há um milionésimo de diferente e novecentos e noventa e nove mil novecentos e noventa e nove milionésimos de semelhante.´
Tomas vivia obcecado pelo desejo de descobrir esse milionésimo e de apoderar-se dele, e esse era o sentido que dava à sua obsessão por mulheres. Não vivia obcecado pelas mulheres, vivia era obcecado pelo que cada uma delas tem de inimaginável ou, por outras palavras, vivia obcecado por esse milionésimo de diferente que faz com que uma mulher se distinga das outras".
Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser.
domingo, 5 de junho de 2016
azul-madrugada
De madrugada, uns olhos tão claros que, se perscrutados de cima para baixo, dariam vertigens. Dois pequenos oceanos pontuados por uma miríade infinita de estrelas, raios, anéis, cometas, todos em suspenso, espectrais, exactamente como se dispõem no cosmos, parecendo aguardar por algo.
Sabemos o que as vertigens trazem consigo; por isso, preocupei-me em olhá-los apenas de frente.
Sabemos o que as vertigens trazem consigo; por isso, preocupei-me em olhá-los apenas de frente.
You're my cosmic love
"Cosmic Love", álbum Man About Town (2016). Mayer Hawthorne.
"If I had a dollar
For every dream of you and me
I'd buy myself a rocket
And shoot into your galaxy
There wouldn't be no parts unknown
I'd search every uncharted zone"
sexta-feira, 3 de junho de 2016
personagens
"E, ainda uma vez mais, vejo-o tal como me apareceu no começo deste romance. À janela, a olhar para o prédio em frente do outro lado do pátio.
Foi dessa imagem que Tomas nasceu. Como já disse, as personagens não nascem de um corpo materno como os seres vivos nascem, mas de uma situação, de uma frase, de uma metáfora que contém em germe uma possibilidade humana fundamental, que o autor pensa que nunca ninguém descobrira antes dele ou então que nunca ninguém tratara de modo a dizer algo de essencial sobre ela.
Mas não se costuma dizer que um autor não pode falar senão de si próprio?
(...) As personagens do meu romance são as minhas próprias possibilidades não realizadas. É o que faz com que goste igualmente de todas elas e também com que todas elas me assustem igualmente um pouco. Todas, sem excepção, atravessaram uma fronteira que eu só contornei. O que me atrai precisamente é essa fronteira que elas atravessaram (a fronteira para lá da qual acaba o meu eu). Do outro lado, começa o mistério que o romance interroga. O romance não é uma confissão do autor, mas uma exploração do que a vida humana é nesta armadilha em que o mundo se converteu".
Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser.
quinta-feira, 2 de junho de 2016
Crónica "I wish I had someone else's face" #4: Eu sou eu e as minhas máscaras
Há dias, revi o Breakfast at Tiffany's e, tal como da primeira vez, fiquei novamente impressionado com a cena das máscaras (acima).Vai daí, a minha última crónica no À pala de Walsh, publicada ontem, fala precisamente sobre todo o "baile de máscaras" da Hepburn e companhia. Ah, também falo da Cameron Diaz e de como ela foi um dos mais deliciosos seres femininos que já pisou este chão.
Para ler aqui (clicar).
"A cena sublimadora de todo este ambiente de ocultação e dissimulação (...) dá-se por força da literalidade, sem necessidade do recurso à metáfora. Nesse maravilhoso dia em que Holly e Paul alternam na escolha de coisas para fazer que o outro nunca tenha feito (quanta beleza e juventude nisto…), decidem entrar numa loja com o propósito de roubar algum artigo, acabando por sair cada um com uma máscara no rosto sem serem descobertos (...). Ela, com uma máscara de um gato, ele, de um cão – um cão, não um rat ou um super-rat como aqueles a que a Holly-gata se refere e está habituada a perseguir. Como se, ao colocarem uma máscara “a sério” por cima da máscara social “falsa” (...), anulassem esta última, do choque entre as duas não restando máscara alguma e se repusesse, assim, a verdade (ao menos entre eles os dois…). Não por acaso, é com essas máscaras de cão e gato postas (...) que o sentimento intrinsecamente verdadeiro que os une vem, finalmente, ao de cima, o amor entre os dois cristalizado nesse beijo já dentro do prédio".
[Excerto]
quarta-feira, 1 de junho de 2016
força e (des)amor
"Faz mais ou menos o seguinte raciocínio: Não há mérito nenhum em portarmo-nos bem com os nossos semelhantes. Tereza é forçada a ser correcta com os outros habitantes da aldeia, porque senão deixaria de poder lá viver; e, até com o próprio Tomas, é obrigada a portar-se como uma esposa desvelada porque ela precisa dele. Será sempre impossível determinar com um mínimo de segurança em que medida é que as nossas relações com outrem resultam dos nossos sentimentos, do nosso amor, do nosso desamor, da nossa benevolência ou do nosso ódio, e em que medida é que estão previamente condicionadas pelas relações de força existentes entre os indivíduos.
A verdadeira bondade do homem só pode manifestar-se em toda a sua pureza e em toda a sua liberdade com aqueles que não representam força nenhuma. O verdadeiro teste moral da humanidade (o teste mais radical, aquele que por se situar a um nível tão profundo nos escapa ao olhar) são as suas relações com quem se encontra à sua mercê: isto é, com os animais. E foi aí que se deu o maior fracasso do homem, o desaire fundamental que está na origem de todos os outros".
Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser.