sexta-feira, 27 de julho de 2018

com excepção dos do ecrã, sempre tive medo dos mortos. corpos ao comprido que miro só de longe. mas talvez por ver os netos, tão miúdos ainda, a olharem o avô como eu olho os do ecrã, os joelhos dos pequenos tocando serenamente a madeira do novo berço, ganhei uma força redobrada para fazer o que, vejo agora, já quis fazer antes, talvez mais com o meu tio eurico do que com o meu avô. no derradeiro momento, aproximo-me e coloco a minha mão sobre as dele, só sinto a pele, sei que um rosário as cobre mas não o sinto. a inês dirá que, curiosamente, estão frias como sempre estiveram, embora nisso nada haja de curioso. o neto mais pequeno é muito dado, abraça-se a mim com os seus bracitos quentes e morenos, jogamos uma coisa qualquer no telemóvel até que, sem eu reparar, o ambiente que, com o passar das horas, já se havia descomprimido volve-se solene novamente, silêncio. e, então, cantamos

os lírios lírios são

mais marés que marinheiros


 
 
(LP More Of The Good Life, 1981)

do you really love me / I love you more



 
(LP René & Angela, 1980)



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(LP Wall To Wall, 1981)

quinta-feira, 26 de julho de 2018

"C" é a letra entre


 
 
(LP Sedução, 1986)
 
 
"Débora lave os olhos"


quarta-feira, 25 de julho de 2018

quando eu era miúdo, nunca gostei do António. aos meus olhos, um enorme e bruto homem, distante lá dos seus dois metros de seriedade que o queixo e a boca proeminentes selavam, e que assim permanecem agora que as flores lhe refrescam os pés. rijíssimo, rigidíssimo (daqui ainda consigo ouvir o padre falar na "firmeza transmontana"), como quando vou no verão passado finalmente ao zoio (que bom que ainda o fiz a tempo de ir com ele, orgulhoso por parar o carro a cada vinte metros para falar com um conhecido da aldeia) e a sua palavra é lei no que respeita às horas das refeições, e nós, coitados, miúdos trintões que apressam os mergulhos no rio para cumprir com o estipulado. alguém que eu associava a uma outra era, tempos de gente dura, impenetrável. tinha sempre um brusquíssimo "pá" no final de cada frase, que tanto podia significar impaciência (como quando não se me acha uma frincha no estômago e ele me obriga a comer mais vitela, a melhor do mundo ou coisa parecida), como desaprovação ou descompostura. alguém, portanto, que me parecia diametralmente oposto ao pai que eu tinha em casa. só muitos anos mais tarde eu compreenderia que, por debaixo dessa armadura, se abrigava um espírito generoso, sensível, carinhoso, bom. uma noite há, também no verão passado, em que uma confusão de gente se transforma num jantar em que o filmo a tocar a guitarra num espanhol granulado (só saberei mais tarde que o namorado de não sei quem filho da prima daqueloutro fez um documentário sobre o paco de lucía) enquanto uns e outros vão comentando, com olhos de espanto, a inesperada comunhão que vai de cascais a israel, dos campos de férias ao pamplona que era de braga mas que já vive no porto há não sei quanto tempo. talvez eu deva essa percepção tardia - ou melhor, essa, enfim, revelação - ao meu encontro com um senhor em cujos filmes moram homens como o António. esse senhor chamava-se John Ford e, tal como me aconteceu com o António, só muito posteriormente é que vim a compreender os seus filmes. não sei se o António os viu, mas, caso o tenha feito, estou certo de que gostaria muito deles, quem sabe não os amasse mesmo de coração. quão estranho, vejo agora, nunca lhe ter perguntado se apreciava esses filmes pelo meio das conversas que, nos últimos anos, fomos tendo com mais frequência, tantas vezes em que me sentia a recuperar um qualquer tempo perdido, enquanto o António insistia - perdoa-me o atrevimento, Eva, mas, nesses momentos, sentia-lhe o orgulho quase de um pai num filho - em fazer-me corar em frente dos presentes, então pá e o teu filme hã, sim senhor belos textos xico já viste ó cathy, sentado muito hirto (sempre) no sofá de magrelas e brancas pernas descobertas pelos calções de banho. e nesse momento é como se a carrinha amarela que o vem pontualmente buscar à nossa rua (e é o ricardo, o antigo segurança da faculdade de direito, quem conduz, rapaz de coração franco, coincidência daquelas) o fosse levar para a praia com os colegas da escola. mas ó pá ó xico tu tens de fazer parágrafos mais curtos já te disse isto pá, pois é eu sei e olhe, António, sabe quem também me diz o mesmo sobre os parágrafos? o meu pai. tenho quase a certeza de que se riria (contidamente) quando, no corredor ao lado da sala onde refresca os pés junto das flores, o meu pai que de inglês só sabe as frases do james bond diz a um amigo seu o mistery para eu não ter ido mais ao coro? olhe é que hã olhe I lost my pio

segunda-feira, 23 de julho de 2018

O Despiste (2)

"A ficção oficial quer que um imperador romano nasça em Roma, mas foi em Itálica que eu nasci (…). A ficção tem coisas boas: prova que as decisões do espírito e da vontade transcendem as circunstâncias".
 
 Memórias de Adriano, M. Yourcenar.
precipitado no dicionário
dos que caminham com 
os pés cravados
em massas de ar invisíveis
é elogio

donde pensas tu que 
vem a chuva
que realismo há nessa
água que subitamente cai do céu e
te obriga a recolher a uma soleira por 
onde eu ambiciono passar num dia
qualquer em que já não me lembro
do nome do gelado que comeste
quando era sol que fazia e
te digo: olá como vais
como dizemos educadamente àqueles de quem
nunca memorizámos
o gelado de que mais gostam
 
não acreditarás que também
lá em cima
os deuses repetem para
consigo mesmo
(carentes que estão dos confidentes que enviaram aos homens na terra)
é só precipitação
é só precipitação
é só precipitação

quarta-feira, 18 de julho de 2018

há momentos, cheiros, sensações do passado (da minha infância, sobretudo) a que só os filmes me permitem regressar. ou que mo permitem fazer com o maior grau de verosimilhança possível, circunstância irónica quando feitos por terceiros e retratando situações a que sou, biograficamente falando, estranho. são eles, os filmes, que mais perto me re-colocam dessas memórias. talvez porque estas, mesmo convocando outros sentidos que não apenas a visão (o olfacto, o paladar), são, ao fim ao cabo, "imagens" - por mais que nos esforcemos, não nos conseguimos lembrar, subitamente, de um determinador odor, mas a imagem do lugar onde em tempos ele nos entorpeceu conseguimos já produzi-la mentalmente, quase de imediato.
 
o cinema permite-me essa re-constituição. uma re-aproximação ideal a algumas das coisas que me são mais queridas (ou então: violentas, traumáticas), que - justamente por causa do cinema e do efeito (intelectual, sensorial, fantasmagórico, talvez por esta ordem) que foi causando em mim à medida que cresci - estão alojadas, remotamente, miticamente, em mim. se já sentia isto no acto de ver filmes, mais intensamente se me ocorreu no momento em que passei a pegar numa câmara e a ir até determinado sítio filmar este espaço concreto, enquadrar assim e não assado, fixar o chorão (o nome mais bonito de todas as árvores, talvez) do pátio do meu antigo prédio, ou os campos baldios que ficavam nas suas traseiras - se eu filmar lá uns miúdos
com as bocas enlameadas pela
polpa dos figos
a fugirem do camponês solitário que brande uma
espingarda no ar
 
volto a ver ao meu lado (imagens, novamente, uma e outra vez, sempre) o tiago grande, o hugo, o tiago pequeno,  o pedro, a catarina, o nuno, a pepi, todos a correrem e a tropeçarem até chegarmos ao muro, momento em que o medo absoluto começa lentamente a serenar, o suor no rosto muito vermelho da pepi que lhe destrambelha os óculos até à pontinha do nariz. se eu filmar, à noite, miúdos acocorados do lado de lá do muro
nos socalcos da quinta do senhor neca
utilizando à vez os binóculos
volto a ver as duas
irmãs de loiríssimos cabelos do terceiro andar que
se despem imaginariamente
para nós

oiço (mas vejo) os grilos que

sem eu saber colaboram neste filme a que, uns anos antes, um senhor dera o nome the rear window e a que, agora, eu outro vou dar. por isso é que, julgo, a "ficção" é, no princípio e no fim, re-constituição, regresso a. derradeira e compensadora forma de voltarmos - recuperarmos - a uma idade de ouro que não existe mais, que talvez nunca tenha existido. que existiu, sem dúvida.

terça-feira, 17 de julho de 2018

domingo, 15 de julho de 2018

raramente lhe tocava o formidável escolho de (censurado). acaso, patologia, destino, fortuna. um vírus persistente. banco de jardim que me torra as certezas. não pus protector; diz-me que sim, que o pôs antes de sair de casa, "prevenida" foi a palavra que utilizou, e eu penso que os óculos de sol me servem o mesmo propósito, prevenção. isso, os óculos, ela dispensa, e bem, acrescento eu, pergunta-me porquê e penso naquele poema do meu irmão, melhor, num verso, na sua melodia de encaixe tão bem burilada

foi o verde que me fez ver-te

mas não lhe digo. lindíssima quando, sentada, de cabeça baixa e olhando o chão, ouve uma versão inferior de mim (estou nervoso, raios, tudo me sai desgarrado, gelatinoso). nem há verde nesse momento, mas é lindíssima como te vejo, quero que tenhas a certeza disto. que estranho caminho percorro.

bem sei

"Deitei-me; o sono parecia tão longe de mim como a saúde, a juventude, a força. Adormeci. A ampulheta provou-me que dormi apenas uma hora. Na minha idade, um breve momento de sonolência torna-se o equivalente de sonos que duravam, outrora, todo o tempo de uma meia revolução dos astros; o meu tempo passou a medir-se por unidades muito mais pequenas.
(…) se pensamos tão pouco num fenómeno que absorve pelo menos um terço de toda a vida é porque é necessária uma certa modéstia para apreciar as suas bondades. O homem que não dorme, e tenho de alguns meses para cá ocasiões de sobejo para o constatar em mim mesmo, recusa-se mais ou menos conscientemente a confiar no curso das coisas. (…)
Nunca gostei de ver dormir aqueles que amava; descansavam de mim, bem sei; mas escapavam-me também. E todos os homens se envergonham do seu rosto alterado pelo sono. Quantas vezes, tendo-me levantado muito cedo para estudar ou ler, compus eu próprio as almofadas amarrotadas, os cobertores em desordem, evidências quase obscenas dos nossos encontros com o nada, provas de que em cada noite deixamos de existir".

Memórias de Adriano, M. Yourcenar.

"Nasir" no ípsilon



Nas e "NASIR" no Ípsilon de hoje, que também traz Paul Schrader e "First Reformed", para ver nos cinemas desde ontem.

ERRATA: "(...) remete-nos para o que de mais interessante ele possui, perdendo PERTINÊNCIA (...)".

On-line: https://www.publico.pt/2018/07/13/culturaipsilon/critica/nas-ressonancia-de-testamento-1837467

«O resultado da colaboração é francamente positivo, reforçando a camisola amarela editorial de Kanye West no presente ano, e algumas das apreciações menos boas que se têm ouvido explicam-se, essencialmente, por duas ordens de razão. A primeira reside na actual moda que garante pontos (ou "likes") a quem condenar West na praça pública (…) – tudo porque West manifestou apoio a Trump, o que, se pode ser ominoso (e é-o), não nos deve fazer perder de vista que, antes disso, há a música, e que convém ouvi-la sem palas de antemão (tudo isto levantando simultaneamente uma problemática questão: pode um apoiante de Trump ser anti-racista e denunciador da marginalização ou do abuso policial contra negros?). (…) A segunda razão – a de aqui se encontraria um Nas menos “poético” – entronca, em boa verdade, num erro comum entre os ouvintes de hip-hop: a propensão para confundir rap com poesia (“poesia urbana”, equívoco por excelência), forma, essencialmente, de tentar legitimar/justificar a sua condição “literária” ou, mais genericamente, a sua dignidade artística. É luta que, se ainda se poderia compreender há dez ou quinze anos atrás, está hoje francamente estafada: não só o rap dispensa muletas para valer como expressão artística (...), como a circunstância de se estar insistentemente a sublinhar esse atributo só acusa um complexo de inferioridade que, reitere-se, hoje, é só desnecessário (Kendrick Lamar acabou de vencer o Pulitzer, senhores…) (…). Se "everything", servida por um instrumental (e, já agora, um falsete) soberbo de West (é, sem cair em exageros, um dos melhores que já lhe ouvimos, épico na medida certa), não constitui uma das mais ricas e densas letras de Nas – mesclando a história política americana (abordada, de forma ainda mais “tratadista”, quando não aborrecida, em "Not For Radio", o pior instrumental do disco) com o ideal pan-africanista e relatos auto-biográficos –, então não sabemos quais serão as suas grandes canções».

Curtas Vila do Conde



O Curtas Vila do Conde começa este sábado (14) e estende-se até dia 22, com muita coisa boa para ver. Fui um dos programadores da secção TakeOne! e, para quem andar por lá, ficam as sugestões dos filmes que mais me tocaram, um deles em especial ("Cactos e as outras Plantas"):

- CACTOS E AS OUTRAS PLANTAS, Camila Vale ("People say I'm the life of the party / 'Cause I tell a joke or two / Although I might be laughing loud and hearty / Deep inside I'm blue / So take a good look at my face / You'll see my smile looks out of place...", Smokey Robinson dixit);

- A VER O MAR, Ana Oliveira e André Puertas - belo, belo, belo;

- THE VOYAGER, João Gonzalez;

- FLOR DO GÁS, João Castela;

- AMOR, AVENIDAS NOVAS, Duarte Coimbra.

sexta-feira, 13 de julho de 2018

três vezes






 
(LP From Langley Park to Memphis, 1988)




"Before you say you're lucky
Before you say she's good
Knock on wood"

segunda-feira, 9 de julho de 2018

e nas tuas veias acendi a cidade (...) / te amei por todo o Brasil



 
(LP Cabelos de Sansão, 1982)


"Vindos do espaço sideral
Teus olhos, dois discos brilhantes, entraram nos meus
Que energia
Tremi na base
Falei um trem além dos trilhos do tatibitate
Corri pelos fios da light"

the loneliness of the long distance runner





(Lean on Pete, 2017, A. Haigh / Les quatre cents coups, 1961, F. Truffaut)

movimento dos barcos





(LP Jards Macalé, 1972)


"Não quero ficar dando adeus
Às coisas passando, eu quero
É passar com elas, eu quero
E não deixar nada mais do que as cinzas de um cigarro
E a marca de um abraço no seu corpo"

sexta-feira, 6 de julho de 2018

when words become flesh



 
(LP In the Beginning: Before the Heavens, 2017)


"Man if (man if what)
What if we can just (just what)
Just blink yourself away
Man if (man if what)
What if this is just (just what)...
Just dreams from yesterday
Man if (man if what)
Whatever we make (make what)
Is what we make in the scenes we play
It's kinda crazy I guess
When words become flesh

And bring life to the things we say"

o raio verde




"Pode-se dizer que Delphine é uma personagem apanhada no que Huysmans chamou melancolia. 'A vítima da melancolia mantém com o espaço a mais dolorosa das relações. Ou lhe falta espaço, ou o espaço lhe sobeja. Tem horror à finitude dele, mas a sua infinitude aterroriza-a da mesma maneira. Daí a busca melancólica das viagens e das distâncias: ao desorientado, as viagens prometem um fim, aos cativos uma evasão'. Talvez seja por isso que, entre uma segunda-feira, 2 de Julho, e uma segunda-feira, 6 de Agosto, Delphine tanto procure nas viagens o que quer e não sabe o que é".
 
João Bénard da Costa, à propos de Le Rayon Vert (1986, Eric Rohmer).

mais do que valsa


 
(LP Previsão Do Tempo, 1973)


mais do que sofrida / mais do que comprida / mais do que desesperada / mais do que amada / mais que se passasse a hora / mais do que agora / mais do que sozinho / mais do que esse vinho / mais que triste corpo feio / mais que negras noites veio / mais do que pobre coitado / amando mais do que amado
 





Hereditary, 2018, Ari Aster

segunda-feira, 2 de julho de 2018

um girassol da cor de seu cabelo


 
 
(LP Clube Da Esquina, Milton Nascimento e Lô Borges, 1972)




"Vento solar e estrelas do mar
A terra azul da cor de seu vestido?"