Este homem é quatro paredes. Está, também, metido em quatro lúgubres paredes, onde listas grossas e azuladas enfermam a decoração. O homem está deitado, fios sobre o corpo como uma teia de aranha eventualmente desmontável. O homem pensa
e se fosse dar uma volta
e o homem vai dar uma volta. Abre a porta e três corredores, cinzentos e azulados como as quatro paredes de há pouco, deparam-se-lhe à esquerda, à direita e ao centro. O homem pensa
e se fosse pelo do meio
e o homem vai pelo do meio. Ao fundo vislumbra uma janela na qual a noite da cidade é uma mera sucessão da luz do dia,
agora há luzes à noite, só isso mudou,
estranha o homem. Abaixo do parapeito, uma mesinha e uma planta vagamente cuidada: o misericordioso verde vagamente regado, o misericordioso verde como último reduto orgânico. O homem repara nos quartos que se abrem nas laterais,
quem é aquela velha ali gemendo, quem é aquele jarreta de óculos vendo televisão com o som tão alto.
O homem vira-se e à sua direita um novo quarto,
quem é aquele preto, é novo este preto aqui, nunca o vi por cá, estranho.
O homem volta para trás e no entroncamento atrás descrito, opta agora pela sua direita. Torna novamente à direita e abre-se-lhe a sala comum,
só eu e as janelas,
diz o homem, ou pensa o homem, só para confirmar que é só ele e as janelas. O homem está parado, suspenso, os braços pendentes as costas voltadas para o corredor, de frente para a janela. Não lhe vemos o rosto mas podemos concordar em como o imaginamos: um rosto de pijama e travesseiros, um rosto por dormir, um rosto farto de dormir farto de estar deitado ou sentado, um rosto desgarrado.
Então, já a levanta?
Han o quê, estarei louco quem falou ou sou eu que já oiço coisas
Então, se já conseguiu levantar entretanto?
O homem vira-se estremunhado, e o preto, atrás de si o preto.
Han, sim,
estremece o homem, sorri agora o homem por cordialidade,
quem é que já se levantou?,
não percebendo o quem e o quê a que ele próprio se refere enquanto pergunta.
Não, se tu já levantas a pila, senhor!
Ah, han o quê,
Ris-te, que nervoso estás tu, ris-te mais e mais,
ahh sim,
ris-te ainda,
ahh sim,
os olhos semicerrados acompanhando a comoção profunda.
O preto ri-se e diz ainda bem, eu vou amanhã.
O preto é o Simão, foi assim que o conheci, estou-te a contar isto porque isto me tocou, gosto de pensar nestas coisas percebes?
Sorrio, sim.
É que, pá, o preto desarmou-me, disse-me que me perguntou se eu já a levantava porque quando eu tinha olhado para o seu quarto ele achou que eu tinha uma cara boa. Uma cara boa disse o preto, e perguntou-me se eu já a levantava. Nunca aqui ninguém fala com ninguém a não ser quando eu, nunca aqui ninguém me tinha dito isto, dois homens estás a perceber, dois homens eu e ele, e ele homem de uma terra longínqua, quase do outro lado do mundo, homem do sol da sede pergunta-me se ela já levanta. Gosto de pensar nestas coisas sabes, tocam-me muito.
Sorrio, sim.
Pronto foi assim, hoje sinto-me mesmo bem disposto, o Simão vai amanhã, espero ainda poder despedir-me dele. E tu como foi o teu dia, eu quero é saber como foi o teu dia.
Sorrio, toco-me, aperto-me nas coxas e nas costelas com os dedos que estão dentro dos bolsos do casaco e começo a falar.
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