O escritor percebeu como a frase
“até aos vinte anos não se pode dizer que o homem conhece a infelicidade”
podia ser tão bela e universal como a frase
“durante toda a sua vida, desde o primeiro dia em que sacode os pezinhos e encolhe o luzidio pescoço, o homem conhece a tristeza mais profunda”.
Quando o percebeu, o escritor reteu a invencível maleabilidade de um poema, de um verso, de um aforismo. Abriu as mãos e contemplou a densidade brutal de um estado de espírito vertido em palavras, observou a volta que uma máxima literária universal - o mesmo é dizer, uma sentença humana (aparentemente) absoluta - pode sofrer quando as palavras e as sensações são outras, e a forma como aparecem, se articulam e formam um sentido, são diferentes das que até então em nós se impunham de um modo insuperável pela profundidade do seu alcance e beleza.
Nisto, o escritor apercebeu-se que havia chegado a uma conclusão gigantesca, talvez a maior de todas, e por isso sentiu medo em continuar a escrever. Por algum tempo ficou suspenso no tempo, mirando as folhas e a caneta ao de longe, como se de objectos mágicos flutuando no ar se tratassem; ou como camisas, calças, meias, presas por molas a um cordão fantasmagórico; ou ainda como fotografias penduradas no escuro, revelando mais uma cor, mais uma sombra, à medida que secam. Só lhes voltou a tocar quando aceitou, ainda que sem grande agrado, como que convencido por uma força opressiva, a tal maleabilidade de que se faz a carne dos mais poderosos pensamentos e frases. Algo derrotado, inconformadamente conformado, e interiorizando para si que uma vez lhe revelada aquela conclusão, havia feito enfim uma espécie de pacto de anuência – Sim, Eu declaro aceitar as complexas contingências das palavras -, decidiu que a única forma de se resolver consigo próprio e com elas, era nada mais nada menos que fazer isso mesmo: moldá-las, trocá-las, contradizê-las, virá-las ao contrário. Compreendeu finalmente que teria que viver com esse paradoxo, pois que a inversão das coisas, o sim e o não, o branco e o preto, o feliz e o infeliz, sempre foi o motor da palavra escrita e o motor da sobrevivência para quando um homem sente estar fatalmente, exclusivamente, num não, num preto, num infeliz. Ou para quando um homem se ilude perigosamente, docemente, com o pensamento de que tudo é vontade afirmativa, de que tudo é luz, de que tudo é feliz.
http://ajavardamentopoetico.blogspot.com - vai haver um encontro de poetas na Casa Museu Abel Salazar. Se quiseres aparece :)
ResponderEliminarMuito obrigado pelo convite. Infelizmente, a essa hora é-me impossível estar presente.
ResponderEliminarFrancisco.
(tentei responder, em forma de comentário, no vosso blog, mas não consegui)