domingo, 23 de outubro de 2011

sangue do meu sangue



Ainda bem que vivo no Porto e que não fui ver "Sangue do meu Sangue" no sábado passado ao Cinema São Jorge, em Lisboa, mas sim ao Dolce Vita do "dragoum"(o shopping com os acessos rodoviários mais kafkianos da cidade do Porto). É que, permitam-me discordar dessa enorme maioria, também eu daria duas estrelas ao filme, se fosse crítico (se tivesse mesmo que dar estrelas, o que é uma tarefa particularmente penosa e, muitas vezes, inútil, porque inevitavelmente redutora). E não digo duas para coincidir, por conveniência, com um dos protagonistas dessa triste cena (o crítico Francisco Ferreira, do "Expresso"). São, com justeza, duas: não seriam três porque tal classificação, para mim, leva já um "gostei muito deste filme"; não seria uma porque isso acarreta um "porquê que saí de casa?".
Antes de tudo e mais alguma coisa: nunca vi outro filme de João Canijo (ignorantia non excusat, bem sei, mas o adágio não me parece relevante para o que vou dizer nas linhas seguintes) e, portanto, não estou a par da sua carreira (a única coisa sua que me chegou foi um comentário, bem interessante por sinal, a um filme do Cassavetes, que vem naqueles "extras" dos dvds).
Agora vamos ao que interessa.


João Canijo filma muitíssimo bem, disso não há dúvida, e só esse facto já é razão para dar graças, tão pouco são os realizadores portugueses assim dotados (mesmo falando, por exemplo, de um João César Monteiro, de quem gosto muitíssimo, não se reconhece nele uma técnica e uma estética deste calibre). Não só naqueles planos "divididos", em que temos duas cenas a decorrer em simultâneo (o que é um estímulo quase "naturalista" à atenção do espectador, porque tantas vezes as coisas se passam assim no nosso quotidiano), mas também na forma pausada, reflexiva, com que deixa as imagens fluírem no plano. Toda a cena inicial, feita de travellings e panorâmicas demoradas (a da última cena lá no alto, antes de passar ao bairro, é fabulosa) e, de um certo modo, "documentaristas", é de uma mestria indubitável. Portanto, quanto a este capítulo, estamos conversados.



Depois vem a questão da representação. Apregoou-se por aí aos sete ventos que estaríamos perante uma interpretação fantabulástica, onde o trabalho de actores de Canijo - à Mike Leigh, segundo dizem: um processo complexo e semi-livre de construção de personagens, que resulta de um diálogo dialéctico realizador-actores, os quais dispõem de um espaço de auto-construção muito amplo, e onde predomina uma grande carga de improvisação - seria por demais evidente. Pois bem, não posso estar mais em desacordo. Rita Blanco é sim ou sopas: ou se gosta muito ou se detesta. Eu nunca gostei particularmente e, muito honestamente, ainda continuo a preferir vê-la na série "Conta-me como foi". De quem gostei, e que para mim foi uma revelação, foi de Anabela Moreira, essa sim, convicente e terrivelmente decadente no respectivo papel. Quanto ao resto, a coisa oscila entre o mediano (Cleia Almeida, Rafael Morais, Nuno Lopes) e o fraco (Francisco Tavares). Fora desta campeonato, está Marcello Urgeghe (o amante-senhordoutor-vilãozinho), a jogar claramente nos distritais. A sua interpretação é de tal forma má que nunca percebemos por que razão tudo o que lhe sai da boca parece declamado (vamos acreditar que isto não fez parte do tal espaço de "auto-construção"...) e, pior, vazio de sentido, o que é particularmente grave quando se repete interminavelmente coisas como "amo-te, "amo-te tanto", "preciso de ti". Além do tom ridiculamente poético com que as diz (parecem banalidades de alguém melancólico que está a pedir um café ao balcão, e que acabou de ler Álvaro de Campos), não tem qualquer presença de espírito num filme em que a sua personagem é (ou devia ser) absolutamente central, e com isto já se vê um dos aspectos por onde o filme falha redondamente (diga-se, já agora, que as cenas de amor do casal não entusiasmam nem um bocadinho). Um autêntico fantasma durante todo o filme, uma não-personagem, um falhanço dos pés à cabeça. Se os diálogos - formalmente falando, porque, na substância, assemelham-se mais a solilóquios - com a sua amante já são o que são, é ainda mais confrangedor assistir às suas conversas com a esposa (uma Beatriz Batarda perfeitamente lateral, sem chama, um adereço simbólico para dizer que existe uma mulher, traída, que sofre).



Agora, a portugalidade.
É notório (não o podia ser mais) o interesse de João Canijo em documentar essa portugalidade século XXI - feia, porca e má - do nosso país e seu património cultural (é o "cultural" que temos). Nada contra isto, muito pelo contrário. A questão está na forma como isso pode ser feito. E Canijo fá-lo no formato mais "telenovesco" possível, o mesmo é dizer, do modo mais fácil, gratuito e imediatista. Será que é preciso bombardear o espectador durante quase três horas com posters do Tony Carreira a piscar o olho ao plano, música pimba, relatos de futebol (Cristiano e companhia) em voz "off" ou personagens com camisolas da selecção nacional vestidas? Não é, e fazê-lo só demonstra uma certa dificuldade em retratar um determinado tema com algo mais para além do superficial e do folhetinesco. Basta pensarmos em Teresa Villaverde ("Mutantes", uma obra que também incide sobre a juventude, a marginalidade e a falta de rumos) ou, para o chamar uma vez mais, João César Monteiro, para encontrar essa mesma portugalidade filmada, mas, desta feita, sem recorrer a estereótipos cristalizados. É que não o fazendo, e isto é fulcral para o entendimento do que aqui vai dito, o que ressalta é uma incomparavelmente maior genuinidade do objecto que se retrata, das suas idiossincrasias, seus tiques e vícios. Esse filme de Teresa Villaverde, ou a famosa triologia de João de Deus, de César Monteiro, captam, na perfeição, o nosso país e o que é "ser português" - ou alguém tem dúvidas? Está tudo lá, mas agora introduzido de forma sóbria, subtil, dando ao espectador menos a "ver" (como faz flagrantemente Canijo, que nos espeta pelos olhos adentro todas as marcas imagéticas da portugalidade) e mais a procurar, a reflectir, a (re)descobrir. O que também acaba por constituir, está bom de ver, um maior campo de liberdade (e de interesse, et por cause) para um espectador que não queira identificar tudo na primeira jogada (claro que só faz sentido falar nisto se estivermos a falar de um realizador-autor como João Canijo; para realizadores que fazem filmes por encomenda, esta questão nem se põe). Mas vou ainda mais longe e arrisco fazer a seguinte pergunta: de tão exacerbado que é o retrato do nosso portuguesismo (o tal bombardeamento de "etiquetas"), não sairá a própria realidade falseada? Eu penso que sim. Tenho quase a certeza que sim. Por circunstâncias várias que não interessam para aqui contar, tive e tenho contacto com muitas pessoas que podiam ser as deste filme, a viver ali, num bairro como aquele. E as coisas não são "tão" assim - a realidade portuguesa, a dos bairros sociais e das vidas que aí se cruzam, não é como João Canijo a descreve, ou, pelo menos, não é tão suja, tão porca e tão má. Isto poderá ser refutado - sim, existirão muitos lugares do país onde a vida é assim ou pior ainda. Mas, bem entendido, e é nesto contexto que digo isto, do que se está aqui a falar é de Cinema, na vertente de ficção. Não é uma reportagem televisiva nem um documentário propriamente dito. E o cinema-ficção, por mais realista que pretenda ser, deve saber tratar o seu objecto com distância e sobriedade, não caíndo na "etiquetização" fácil e agressiva de uma realidade social que é bem mais densa e complexa do que isso (logo à partida, tome-se a título de exemplo, é muito duvidoso que alguém naquela casa, pela sua idade e inserção socio-urbana, goste de Tony Carreira - e goste o suficiente para colocar um poster seu na parede de casa).

Como me disse a companhia com que fui ao cinema, o filme seria muito melhor se fosse mudo. É verdade. Mas concordar com isto não constitui, como pode parecer à primeira vista, qualquer sintoma patológico de aversão à fonética portuguesa cinematográfica - nada disso. O português que é falado nos filmes de tantos outros realizadores portugueses (Teresa Villaverde, César Monteiro, Pedro Costa ou Manoel de Oliveira) é, tanto quanto se saiba, exactamente o mesmo, e o problema não se coloca. O mudo funcionaria melhor tão-só pelas razões que atrás referi: Canijo filma bem, mesmo muito bem, daí que a força visual do filme (cenas de interiores e exteriores, actores, paisagem) resulte maculada pelo fraco desempenho na interpretação, a qual vive também, como é óbvio, da forma com os actores dizem o texto. E no dizer vai grande parte dos traços (psicológicos e físicos, até) da personagem que se interpreta...



Por fim, o argumento.
Atento o interesse primordial que subjaz ao filme de Canijo - o de documentar a tal portugalidade -, ele (argumento) não é, para o bem e para o mal, central na análise que se faça ao filme. Isto é: se o filme fosse uma obra-prima, o argumento, provavelmente, não era ponto de controvérsia; a não ser uma obra prima, o argumento também não releva por aí além, porque o que ressalta é a tal incapacidade do realizador em captar a realidade sociológica e cultural que pretende. Todavia, sempre se pode dizer, ainda assim, que, despido o filme do resto, o que sobra é uma argumento telenovesco, de trazer na algibeira, e cujo núcleo central (a relação adúltera) se conta em três ou quatro linhas, sem densidade nem nervo. Sim, está bem, há uma certa "surpresa", mas ela tem mais de estapafúrdia do que de excitante (gostava de dizer um pouco mais sobre isto, mas correria o risco de contar tudo, o que não interessa a quem ainda não viu o filme).



Por isto (e por tudo o mais que nos assalta quando estamos numa sala de cinema, mas que se nos escapa da memória teimosamente), é que fiquei tremendamente desiludido depois de ver "Sangue do meu Sangue". Até porque, nesse dia, levei comigo alguém a quem queria fazer crer as virtudes do (bom) cinema português. 1-0, estou a perder.

1 comentário:

  1. Após alguns anos, permita-me discordar um pouco da sua opinião. Para mim, é uma obra prima! A Anabela Moreira (para mim, a personagem com o papel principal e que melhor retrata o verdadeiro e puro amor, otal, incondicional)é, de facto, a actriz que se sobrepõe mas, a Rita Blanco também esteve muito, assim como todos! Desculpe o atraso no envio da minha modesta opinião.

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