quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Walsh #21 Neve: branco mais branco (não) há/Essential Killing (Sopa de Planos)



O À pala de Walsh despede-se de 2014 com mais uma criativa, e agora branquíssima, sopa de planos ("sopa de neve" é coisa que não ficava mal no cardápio de um restaurante). O meu contributo a partir do Essential Killing (Skolimowski). Para ler ali ao lado (clicar).


Há muitos e belos planos com neve em Essential Killing (2011), de Jerzy Skolimowski. Aliás, a neve não é estranha a outros filmes da sua carreira; penso na cena esplêndida de Deep End (1970) em que Susan procura o seu anel de noivado: como então escrevemos, “um anel perdido na neve – só a imagem mental é arrebatadora”. Mas, dizíamos, em grande parte do filme, a neve é o décor da alucinante fuga de Vincent Gallo, e, se a brancura (da neve, da sua roupa, do cavalo que, a páginas tantas, encontra) é o tom predominante (embora, aqui, a “brancura” não evoque paz ou apaziguamento, antes uma paisagem adversa e inóspita à sobrevivência do ser humano), são também muitas as ocasiões em que o contraste cromático – sobretudo o vermelho do sangue de Gallo – é gerador de imagens lindíssimas, próximas de sonhos (como aqueles que Gallo tem dos seus familiares). É tingida desse vermelho que Skolimowski filma aquela que foi, para nós, como então elogiámos, a melhor cena do ano cinematográfico de 2011: literalmente quase a morrer à fome (entre feridas, cansaço, frio), Gallo cruza-se, inesperadamente, com uma mulher que transporta consigo o seu bebé. Vemo-lo, então, de revólver apontado à mulher, os olhos esbugalhados, momentaneamente nos passando pela cabeça a ideia de uma eventual violação pronta a consumar-se (o sexo como outra “fome”, outro instinto, por saciar pelo Gallo-animal). Mas não: Gallo ordena-lhe que destape um dos seios e, sôfrego, com a sua cabeça ao lado da do bebé (que mama do outro seio), mama o leite materno, poderosíssima ilustração da “animalização” para que Gallo tende ao longo do filme. Aqui, como no resto do filme, Gallo não pronuncia uma palavra; ao contrário, porém, do resto do filme, nesta cena, Gallo não “mata para viver” (o título em português): deixa viver e, com isso, ele próprio (sobre)vive (e, não matando aquela mulher e aquele novo ser, afasta a sua total “animalização”, conservando intacta a sua humanidade mais profunda). Aqui como quando veio ao mundo, a personagem de Gallo tem no alimento de uma mulher o meio indispensável à sua sobrevivência, tal e qual aquele bebé. Essential killingEssential living.

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