sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

stop singin'



Nunca tinha reparado com atenção, mas o final da lendária cena protagonizada por Gene Kelly em Singin' in the Rain (passou hoje na RTP 2) é o pior possível, constrastando com a genialidade e a beleza artísticas do que até aí víramos e, mais importante, num outro plano, com a própria inocência, a pureza, a espontaneidade do sentimento electrizante (o combustível para toda aquela energia) que percorre o seu corpo nesse momento, isto é, o seu Amor por Kathy. Depois de dançar, cantar e um sem número de malabarismos, depois de toda uma sequência profundamente graciosa em que a felicidade e a leveza imperam, quase dando a sensação de que Gene Kelly, de tão maravilhado, pode "voar" a qualquer momento (ou talvez nem seja preciso, pois ele já está autenticamente "nas nuvens"), a cena (e a música) é interrompida - momento em que Gene Kelly carrega uma expressão assustada, como de alguém que "foi apanhado" - com o surgimento de um Polícia, figura de autoridade por excelência, que deliberadamente atravessa a rua para ir ter com ele e, apenas com o olhar, qual instância da moral e dos bons costumes, o reprovar e censurar por aquele acto. Mais: o polícia cruza os braços (sinal de paciência, de condescendência com o que acabou de presenciar) e fica por alguns segundos a olhá-lo, como que aguardando que este se "recomponha", que volte "a si", ou seja, que deixe as nuvens e volte à terra, o mesmo é dizer, à normalidade. Autêntica ordem de reposição da normalidade que Gene Kelly diligentemente acata e executa, "disfarçando" a sua felicidade, como se de um acto "de loucura" (andar à chuva como se nada fosse), desviante, se tratasse - Amor sim, mas tanto não...

Dirão alguns: Gene Kelly apenas se sentiu embaraçado, não há qualquer juízo de censura. Mas, a ser assim, por que razão aquele que o "descobre" é um Polícia? Para sentir embaraço pela situação (pela "figura" que estava a fazer), qualquer pessoa que ali passasse inesperadamente serviria. Aliás!: até este momento, Gene Kelly foi fazendo as suas acrobacias enquanto várias pessoas passavam por si (algumas delas parando momentaneamente para o observar, naturalmente supreendidas), sem que isso o incomodasse ou fosse motivo de embaraço...!

Não é por isto, obviamente, que esta cena deixa de ser o verdadeiro achievement artístico que é, mas não deixa de ser intrigante como, com tantas formas para terminar aquela cena, se tenha decidido por uma tão deslocada e descontextualizada.

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