sexta-feira, 13 de maio de 2016

C'est la loi qui affranchit

Ontem, numa série francesa sobre os tempos do Vichysmo (RTP 2), um diálogo entre dois elementos da resistência (um homem e uma mulher) chamou-me a atenção. Discutem o futuro do país e têm, obviamente, como modelo esse paraíso na terra chamado URSS. "Lá não há exploração", assevera-lhe o homem. Ela, maravilhada e perplexa em doses iguais, pergunta: "Como não há exploração nenhuma? Não há empregadas de limpeza?".
 
A exploração, na cabeça desta resistente, está no simples facto de existirem empregadas de limpeza: num mundo ideal sem "exploradores e explorados", as empregadas de limpeza não podem existir (supõe-se que bombeiros, juízes, jogadores de futebol e chefs de cozinha famosos se revezem, fraternalmente, na limpeza dos domicílios dos seus concidadãos). Não interessa, pois, o concreto modo como essa profissão é exercida: se as condições salariais são justas, se o horário de trabalho é adequado (e permite o gozo da dimensão familiar, social e recreativa da vida), se o direito a férias e outro tipo de direitos e garantias laborais estão plenamente assegurados. Isto, que é o fundamental, não é relevante. O que está em causa é todo um problema de representação social, do domínio do simbólico, que diz mais do que aquilo que a autora da pergunta gostaria sobre a sua (complexada) visão estratificada (classista?) da sociedade: ao fazer essa pergunta, o que deixa implícita é a forma como, subconscientemente, considera, afinal, pouco digna a profissão de empregada de limpeza, quando o que faz dessa ou doutra profissão mais ou menos digna - digna, não "qualificada", "criativa" ou o que for - é a protecção que a lei (a tal que, entre o forte e o fraco, liberta) deve assegurar ao trabalhador.

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