quarta-feira, 29 de junho de 2016

Artes Entre As Letras #12 - Crítica de cinema



Sai hoje para as bancas o último número do Artes Entre As Letras, onde escrevo sobre os mais recentes filmes do Ozon, Lanthimos e Wan. Bons filmes e boas leituras.
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Uma Nova Amiga (2014), François Ozon ★★★★
O modo como, nos primeiros minutos, Ozon “despacha”, de modo tão enxuto quanto fluido e sugestivo, o passado das personagens que daí em diante acompanharemos, condensa a essência do cinema do francês: um classicista, sim, mas alguém que domina e gosta de brincar com a linguagem cinematográfica na sua totalidade (movimentos de câmara, planos, enquadramentos, citações cinéfilas, marcas meta-narrativas), razão pela qual, ao contrário de alguns, não temos problemas em ver nele um auteur por mérito próprio, não obstante a sua sensibilidade “pop” e o facto de habitar no seio da indústria francesa. Embora hitchockiano e chabroliano (de que é exemplo Dentro de Casa, 2012), os seus últimos dois filmes – incluindo este – afastaram-se um pouco dessa linhagem (se bem que Psycho seja aqui claramente citado, quer no plano da cabeleira loira vista de costas pelo espectador, quer na própria casa utilizada, a lembrar a dos Bates); de facto, e tal como no excelente Jovem e Bela (com essa revelação tão bela quanto talentosa chamada Marine Vacth), Ozon está em terreno eminentemente melodramático (mais próximo, por exemplo, de um Almodóvar), o qual é explorado mediante a história de um homem (Romain Duris, interpretação soberba) cuja morte da mulher o leva a retirar os esqueletos (e os vestidos) do armário e afirmar a sua vontade de ser mulher. Ozon trata do tema (deste e, inerentemente, do do Corpo, tema-maior do seu cinema) sempre com subtileza, contenção e uma sofisticada economia de meios, nunca oferecendo leituras simplistas ou assertivas – muito menos moralistas ou panfletárias – sobre os dramas da identidade e orientação sexual quer de Duris, quer da personagem interpretada não menos brilhantemente por Anaïs Demoustier, cuja eventual homossexualidade é, por sua vez, questão tão ou mais enublada (será mesmo homossexual ou a atracção pelo mesmo sexo se resume a uma obsessão pela amiga falecida?; mas, nesta última hipótese, porquê a alucinação do marido com outro homem no banho?). Há muitos e excelentes motivos (a cena de amor entre os dois, a música da cantora de cabaret que ressoa intra-diegeticamente ao longo de todo o filme), portanto, para continuar a acompanhar atentamente o trabalho de Ozon, cineasta que tem conseguido construir a sua prolífica carreira sem nunca abdicar de uma personalidade artística própria.
A Lagosta (2015), Yorgos Lanthimos ★★★
Depois do furor causado pelo não menos insólito Canino (2009), o grego volta à carga com este “conto moral” sobre uma sociedade distópica onde a conjugalidade é a norma social coercivamente imposta, sendo os “casos desviantes” enviados para um “internamento” de 45 dias no “Hotel”, ao fim dos quais, caso o indivíduo (no caso, Colin Farrell) não se emparelhe com outrem, é transformado num animal (e Lanthimos bem poderia ter explorado um pouco mais essa transformação, pois o seu filme grita “fábula” por todos os lados). No Bosque, a “Resistência”, liderada por Léa Seydoux, combate o “pensamento dominante” sob o signo, no extremo oposto, da rejeição absoluta do amor e do compromisso. Lanthimos é, a par de Athina Rachel Tsangari (Attenberg, Chevalier), representante de um cinema grego mais recente caracterizado pelo gosto pelo insólito, o humor negro e o niilismo, e esta paródia às relações humanas, aos efeitos da tecnologia das “redes sociais” nas mesmas (a busca obsessiva por um “aspecto em comum”, por mais absurdo ou inócuo que seja, como sangrar do nariz, para justificar a “compatibilidade de perfis” com outrem e assim escapar ao fatídico destino, tal e qual as redes sociais que a toda à hora nos sugerem que nos “conectemos” com esta ou aquela pessoa por ela ter gostos ou interesses em comum connosco) e às convenções sociais, seguindo nessa mesma linha, não se torna nunca previsível ou redundante, ao mesmo tempo que deixa espaço para a construção de um drama (no sentido clássico do termo) sério e sensível que, na sua essencialidade, é o que subjaz a toda e qualquer relação amorosa.
The Conjuring 2 – A Evocação (2016), James Wan ★★
Não partilhamos do entusiasmo que alguma crítica tem votado a Wan (até mesmo no sétimo volume da inenarrável saga Velocidade Furiosa – sim, Wan é habilidoso, mas ainda não faz magia…), que assina aqui a sequela do filme de 2013, também por ele realizado (ele que é igualmente o produtor da saga de terror Saw). Não se nega o virtuosismo e a sofisticação do australiano (nascido na Malásia) no manuseamento da câmara e, mais abrangentemente, no domínio de toda a técnica cinematográfica; simplesmente, isso – e o (exíguo) subtexto “político” do filme (a importância da família, a censura da Igreja aos desvios à norma, a “insistência” da televisão em Margaret Thatcher…) – não é suficiente para afastar a sensação de estarmos perante apenas mais um filme de terror, no sentido de um redutora persistência em convenções e tiques do género, que não se move um centímetro para lá do que ele (género) pressupõe e o espectador espera (efeito perverso, este, quando ao terror se pede justamente… imprevisibilidade). Aliás, mesmo naquilo que é central – o terror, voilà –, o filme, não sendo especialmente intenso, é, todo ele, um repositório de velhos truques (luzes que se apagam, portas que se fecham, ruídos estranhos, torneiras a pingar, etc.) cuja reprodução sucessiva, além de conferir um certo traço caricatural ao filme, transmite ao espectador a fastidiosa sensação de estar a entrar num carrossel e de cada noite na casa da família Hodgson – e porquê que o terror não se manifesta de dia? Há algum primarismo nesta dicotomia tão rigidamente assim tratada – ser mais uma metódica “volta” em que, ao início, colocamos o cinto, depois enfrentamos a adrenalina e finalmente descansamos – só até à próxima volta.

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