Inicia-se hoje a secção In Focus, este ano dedicada à produtora americana Borderline Films, criada e dinamizada por Antonio Campos, Sean Durkin e Josh Mond, três dos mais interessantes nomes do cinema americano contemporâneo.
Escrevi para o catálogo do festival sobre a curta (exibida hoje) e a longa (passa sexta) de Durkin presentes no Curtas. Bons filmes.
***
Mary Last Seen
Com apenas 500
dólares no bolso e enquanto consolidava o argumento de Martha
Marcy May Darlene, Durkin filmou esta curta aplaudida em Sundance e
premiada em Cannes 2010, a qual é, a bem dizer, toda uma introdução à sua
primeira longa, como que deixando as “pistas” para o que viria. Em ambas, o
objecto central da atenção do americano é uma seita que vive numa comuna e o tipo
de relações e efeitos que se estabelecem sobre os seus membros, outra forma de perscrutar
um complexo país chamado América. De alguma forma, é como se a curta terminasse
onde a longa se inicia, como se nos deixasse “à porta” desta última,
literalmente: o filme termina com a personagem interpretada por Brady Corbet (o
recruta de novos membros em ambos os filmes) a deixar a namorada Mary (a
insistência no “M”) na sua “nova casa”. Na curta, trata-se da iniciação à seita;
na longa, as consequências da estadia e a fuga.
,
Com poucos recursos, Durkin
consegue filmar com bastante sofisticação (alternando os planos fixos e as
panorâmicas com uma câmara à mão cuja mobilidade ao estilo home
video insinua a atmosfera de thriller que se confirma
depois na longa) e o excelente tratamento de som contribui para a sensação de something’s
wrong que desde início se pressente (o telemóvel que desaparece, a
indiferença do rapaz perante esse facto…). Também à semelhança da longa, há,
logo aqui, o interesse pela paisagem, filmicamente mas também programaticamente
falando, na medida em que, filmando a ruralidade, Durkin vai de encontro ao
coração da América tradicionalista e conservadora para questionar todo um país
e sua mitologia, de alguma forma acabando por confundir o espectador ao
concentrar no mesmo espaço geográfico e mitológico (a tal ruralidade) a “velha
América” e as seitas com filosofias de vida aparentemente opostas (o anti-materialismo,
a auto-gestão, o amor livre).
Martha Marcy May Marlene
A primeira longa
de Durkin vem, na sequência da curta Mary Last Seen, reiterar o seu
interesse primordial (partilhado, de resto, pelo seu colega e amigo Antonio
Campos): a América e a sua história, a sua mitologia, o seu subconsciente, a sua
psique. A partir da história de Martha, uma rapariga frágil e carente de
afectos familiares que pensa encontrar-se consigo própria no interior de uma seita
(ainda hoje numerosíssimas na América), Durkin questiona os valores, as ideias
e as psicoses dessa sociedade tão complexa e fascinante como é a americana, a
começar na família, passando pelo materialismo e o consumismo, o american
dream, a violência e terminando na derradeira ideia de escape, de fuga –
irónico o facto de Martha acabar, depois, a fugir da… seita – a uma sociedade
“doente” através de formas alternativas de vida (amor livre, comunitarismo, auto-gestão,
etc.).
Neste último particular, Charles Manson, uma das grandes “questões” mal
resolvidas do século XX americano, vem indisfarçavelmente à tona, passo no qual
a cultura totalitária, violenta e, afinal, de ódio que insufla muitas destas
seitas é desconstruída por Durkin. A montagem paralela, narrando a acção no
presente e em flashback, mais do que criar uma estrutura
visualmente sobreposta (de um plano de Martha a saltar, no presente, para um
lago passamos para um salto para outro lago no passado, num fluxo contínuo que
corresponde ao seu fluxo mental), con-funde, deliberadamente, o presente e o passado,
memória e fantasia, realidade e paranóia. Simultaneamente, esse mesmo “paralelismo”
favorece e extrema a tensão entre as duas filosofias de vida em confronto, como
se tudo se jogasse naqueles dois pólos opostos e não houvesse nenhuma outra opção
intermédia de vida para Martha, sintoma de uma certa e real desorientação entre
a população americana mais jovem (ontem como hoje).
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