segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

intermitências da morte


 
chego e fico imediatamente surpreendido com o corrupio de gente, bilhetes e moedas, tripass e onde é o multibanco mais próximo, só nos aliados, que chatice, uma azáfama tal que, ia eu para dar dois beijinhos à Cristina e congratulá-la por aquela programação impossível (parece que existem cinco ou seis salas no Trindade, mas não, são só duas), eis senão quando um senhor se coloca no meio de nós e, como é isso do tripass
 
por esta altura, eu ainda não me tinha apercebido completamente do que agora escrevo, só uns minutos mais tarde, quando entro numa sala que, longe de estar cheia, era como se estivesse. homens, mulheres, velhos, novos, estudantes, casais, amigos em grupo, tipos sozinhos, gente cuja aparência indicia proveniências relativamente diversas. e depois, bom, e depois o Garell preto e branco, aquele título-grafismo de um classicismo absoluto a invadir o ecrã no mais apaixonado dos silêncios (só no cinema, e no amor com alguém, o silêncio nos surge tão sagrado, magnetizante, tão, afinal, reconfortante – aliás, é também disto que fala “L'Amant D'un Jour”).
 
as salas de cinema morreram, e mortas continuarão; não, não tive um súbito momento de dúvida nostálgico – até porque, neste capítulo, não alimento nostalgias, a minha cinefilia fez-se praticamente toda assim, em salas defuntas, com excepção dos filmes que vi, pela mão dos meus pais, quando era miúdo (o Tati, o Chaplin, o Star Wars no Brasília com a minha tia Teresa em que, premonição das premonições, dormi o filme todo). para o bem e para o mal – para o bem do meu espírito demasiado nostálgico por natureza, para o mal dos filmes, que precisam de público para existirem –, vivo em paz com estas salas de ossadas, mas um momento como o de ontem deu-me o vislumbre de uma coisa outra, de um tempo que praticamente não vivi mas do qual oiço os mais velhos recordarem. intermitências da morte. o filme termina, ficamos uns quantos até ao fim dos créditos (a tempo de ver que o Houellebecq compôs a letra de uma canção), saio e eis o mesmo frenesim no hall, bilhetes para trás e para a frente, não abrandou, o que vais ver o Woody Allen, gostaste do Amante, sim, olha, no próximo sábado às cinco apresentamos o nosso livro, ai é, sim, se quiseres vir
 
chama-se
 
“O Cinema Não Morreu”
 

3 comentários:

  1. Conta, conta, a que te soube o filme?
    (Se não te importares de falar por aqui. Também já vi e nesta quietude da blogosfera podemos falar à vontade que ninguém nos ouve. Nas redes sociais só se fala das estatuetas. Aqui, ao menos, podemos falar de cinema.)

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  2. magnífico! Só queria que fosse mais longo, que houvesse mais imagens, mais palavras para ouvir... Começa num choro sozinho, acaba num abraço... em ambos, a mesma rapariga - nada se perde, tudo se transforma.

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  3. De todas as referências que encontrei, Lavoisier não foi uma delas, mas percebo-te ;).
    E a noite que a acompanha, em contraste com o dia da amante do pai que fica obscurecido. Mas esse abraço já estava presente no anterior "À Sombra das Mulheres", espécie de happy ending de uma comédia romântica que não existiu. Como se o Garrel estivesse a brincar com o espectador sobre o que este último aprendeu a esperar dos filmes dele (fosse o filme feito há 10, 20 anos e acabaria, certamente, com um suicídio).

    Mas daí, será mesmo um happy ending? Lembrei-me do que ela sofreu por ele, ao ponto de a levar às portas do suicídio e o Garrel nunca nos mostrou se houve qualquer espécie de vontade de mudar da parte do ex-namorado ou o que foi feito para superar o que quer que os tenha levado a afastar.

    Não sei me percebes, mas aquilo que pretendo dizer é que a reconciliação pode ter advido de uma fraqueza de ambos ("o medo de enfrentar o frio", como é dito a certa altura) e eles podem ter corrido o risco de terem retornado a um ciclo vicioso. Acho que, de certo modo, se não ironia, pelo menos há ambivalência naquele final. Fiquei nesse estado de incerteza. Ou talvez esteja a racionalizar demasiado.

    Que te pareceu?

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