sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

não é sempre a mesma cantiga


Momento fundamental em "Morrer Como Um Homem" (revi ontem no Cineclube do Porto, salve): tão emocionalmente vigoroso, tocante, como estimulante do ponto de vista narrativo, da composição da personagem e sua relação com as demais (o namorado, no caso) e, não menos importante, do som. Enfim: cinema, esse concentrado que os grandes cineastas sabem dispor num só plano (plano fixo, note-se, o que significa um “concentrado” de “segundo grau”: concentrar uma série de questões e nuances num espaço visual que está/é, por sua vez, concentrado).

Na viagem de carro que, depois de várias insistências de Tonia, decidem finalmente fazer – mas uma viagem perfeitamente idealizada ("sair de Lisboa”, sair deles mesmos, da sua existência quotidiana tristonha) e, por isso mesmo, condenada ao fracasso, abortada a meio da noite pelos fantasmas de Tonia (terá sido por ela pressentir que foi ali que o seu filho matou o colega militar? A anfitriã havia-lhe indicado, durante a tarde, o “túmulo ao soldado desconhecido” no quintal…) –, esta (Tonia) liga a rádio. “Sempre Ausente”, Variações. Rosário muda bruscamente a estação. Tonia vira-se para a janela e a câmara fixa-se no seu rosto. A janela está entreaberta, gotículas de chuva vão timidamente cobrindo o vidro, ela trauteia: “Que viagem é essa / Que te diriges em todos os sentidos / Andas em busca dos sonhos perdidos”. Plano fixo, plano picado, plano longo: Tonia cantando como todos cantamos em todas as viagens que fazemos (nem que seja só para dentro de nós), o olhar perdido na paisagem. Memórias, desejos de futuro e certezas do que já não vem misturando-se sem forma. A câmara mantém-se na sua disposição inicial, o som não: o ruído geral vai diminuindo progressivamente, o volume da voz de Tonia aumenta (sem justificação diegética, o efeito é cinemático, claro) até ao ponto de se ouvir quase em exclusivo (quase, nunca chega a acontecer a disrupção total).

Neste momento, o espectador já compreendeu: é para si (espectador) que Tonia canta (fala), é consigo que ela tenta uma derradeira possibilidade de diálogo, é com os olhos do espectador que os olhos dela, idealmente (como a viagem…), se cruzam. É um momento a sós com o Outro, entidade terceira, abstracta, perfeitamente personificada no anonimato do espectador. O mundo “lá fora” (fora do carro, fora de si mesma) é, na verdade, o dos que estão sentados na sala de cinema, os últimos em relação aos quais ela sente que ainda poderá encontrar compreensão. A janela do carro tem a mesma forma da tela através da qual o espectador a observa naquele momento, é um diálogo impossível “à janela”, como vizinhos da mesma solidão, Tonia e o espectador. Ver e ser visto, cinema e janelas indiscretas. Ou não tanto por aí. Na verdade, janelas discretas, secretas, de outra ordem de intimidade: não para nós, espectadores, espreitarmos, através delas, a “vida dos outros”, mas para esses outros, as personagens, ou seja, Tonia, poder, por iniciativa exclusivamente sua (acto livre, contrastante com o voyeurismo egoístico, “não-autorizado”, de quem espreita na sombra, i.é, o espectador), tentar comunicar connosco, encontrar um ponto de contacto (de abrigo, de conforto?) em nós.

“Diz-me que solidão é essa / Que te põe a falar sozinho / Diz-me que conversa / Estás a ter contigo”, canta ela, auto-conscientemente. Dizendo-nos, afinal: “Esta é a minha solidão, estou condenada a falar sozinha. Ouves-me, tu aí?”. Somos – espectadores - os seus últimos, únicos ouvintes, e o realizador o intermediário. É este, também, um momento em que o realizador acredita no cinema enquanto relação empática entre mortos (os da tela) e vivos (espectadores): ele crê verdadeiramente que nos possamos relacionar com Tonia e vice-versa, que nos possamos entregar um ao outro, que ambos confiem a intimidade ao seu interlocutor, por mais que não nos vejamos (só nos reflectimos mutuamente...), que não nos toquemos, que a janela continue a ser o que, na verdade, é: um ecrã. Nada disto existe, é a sua impossibilidade dramática/dramatúrgica, "épica", que permite achar (acreditar) que sim. A morte é "o possível do impossível" ou "o impossível do possível", efabulou Godard em "Notre Musique". 
“Cala a boca!”, grita Rosário, brutalmente. A frase possui um efeito maior (“meta-cinematográfico”): cala-te, ninguém te ouve, ninguém te ouvirá, “eles [nós, espectadores] não querem saber”. E o gesto de Tonia em reacção à ordem do namorado prolonga esse vaivém diegético: ela fecha, lentamente, a janela, definitivamente (se) encerrando assim – por imposição de um terceiro, não por ela – a possibilidade de um encontro entre si e os outros, entre ela e nós. Deixamos de a ouvir, deixamos de ouvir Variações.
“É sempre a mesma antiga” – aqui, nem por isso. Na verdade, é sempre a mesma falta dessa cantiga: de uma canção a dois, de um coro. Ou é assim, pelo menos, durante grande parte do filme (durante grande parte da vida de Tonia), até ao momento em que vemos Rosário a lavar Tonia na cama do hospital (como ela o tinha lavado na banheira de sua casa no início do filme): aí cantarão os dois, baixinho, e já não existirão “janelas de diálogo” com o exterior, porque desnecessárias. Eles estão, finalmente, no “mesmo quarto”, emocionalmente em comunhão, namorada e namorado, mãe e filho, pai e filho. Sim, voltar-se-á a ouvir uma canção cantada por uma voz apenas, mas não mais a de Tonia. É a de Rosário, na overdose-despedida em frente ao mar, numa das mais belas cenas da hist… bom, não é preciso repeti-lo. Mas esta voz isolada é já de outra ordem, diferente da de Tónia no carro, uma voz que sabe que, partindo, realizará, afinal, juntamente com as palavras dos presentes no funeral, os versos com que o filme termina. “Ai como eu quero viver no plural / Este singular pior que mal…”. Coralidade, por fim.

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