terça-feira, 16 de janeiro de 2018

quando o meu Pai estava perto da morte, fizeram-lhe uma navalhada monstruosa no peito. sempre que penso nesse ano, nesses dias próximos do meu aniversário, lembro-me do seu corpo, do seu peito branco, magro, os pelos depilados, e de um enorme bisturi tatuado, pontos carnudos e palpáveis que ficaram. antes de o meu Pai estar perto da morte, era o senhor do costume nas salas de cinema, talvez fosse o mais assíduo do teatro do campo alegre. depois da tatuagem, porém, abandonou-as, às salas,  ninguém mais o viu, com uma ou outra excepção em que o arrastei à força, no escuro.
 
talvez porque nas salas
nós os vivos
vemos os mortos
 
testemunhamos o nosso iminente destino
prevemo-nos
advinhamo-nos.
 
e a tua Mãe morreu, o filho da Inês nasceu, dizes que o filho do teu chefe nasceu esta manhã e tiveste a certeza, ligaram-te dois minutos depois com a notícia. três mulheres já, a de que ainda não falei perdeu o Pai, claro que vou e abracei-te e a tua Mãe também teve uma premonição em relação a mim como a outra rapariga que pressentiu ao telefone que antes da morte vem a vida. a rapariga do escritório parece que tem um tumor na cabeça, aguenta não aguenta mas ela acabou de ter uma filha como. é. possível. com um tumor na cabeça vive o meu melhor amigo há anos, foda-se e a Mãe que não o deixa sair de casa, ele não está morto pelo menos até o matarem e a doença não mata no plural. a Joana que conheci no brasil morreu, subitamente dizem, suicidou-se desconfiam muitos os pais até recusaram a autópsia e cremaram logo o corpo no dia seguinte. mas como Joana porquê em que momento pensaste que não te poderias confiar a ninguém, por favor que solidão absoluta e inesgotável foi essa sorrias tanto falavas-me com tanta serenidade no brasil, Joana que hemorragias que comprimidos foram esses será que te arrependeste no último momento quando correste para a sala Pai, não me estou a sentir bem, vou morrer e caíste, será. Joana como gostei de falar contigo enquanto caminhávamos pela noite fora a minha Mãe mais à frente eu a pensar será que ela repara, e pedi-lhe o teu número uns meses depois pedir o número à minha Mãe que vergonha mas foi assim. íamos tomar um chá, Joana, acho que era isso mas depois ias para inglaterra
e
já não consegui
mos
tomar o chá
ou café
ou o vinho que tu não bebias
ou bebias não tive tempo para
saber para saber se gostas
 
e no
meio
disto tudo eu
vou às salas de cinema
 
tenho medo de um dia deixar de ir, porquê
Pai
porque me mostraste
(já me mostraste coisas tão belas e nunca te perguntei porquê, desculpa
sou
injusto
e ingrato
sobretudo quando sou impaciente)
que isso
pode acontecer

Sem comentários:

Enviar um comentário