quarta-feira, 25 de julho de 2018

quando eu era miúdo, nunca gostei do António. aos meus olhos, um enorme e bruto homem, distante lá dos seus dois metros de seriedade que o queixo e a boca proeminentes selavam, e que assim permanecem agora que as flores lhe refrescam os pés. rijíssimo, rigidíssimo (daqui ainda consigo ouvir o padre falar na "firmeza transmontana"), como quando vou no verão passado finalmente ao zoio (que bom que ainda o fiz a tempo de ir com ele, orgulhoso por parar o carro a cada vinte metros para falar com um conhecido da aldeia) e a sua palavra é lei no que respeita às horas das refeições, e nós, coitados, miúdos trintões que apressam os mergulhos no rio para cumprir com o estipulado. alguém que eu associava a uma outra era, tempos de gente dura, impenetrável. tinha sempre um brusquíssimo "pá" no final de cada frase, que tanto podia significar impaciência (como quando não se me acha uma frincha no estômago e ele me obriga a comer mais vitela, a melhor do mundo ou coisa parecida), como desaprovação ou descompostura. alguém, portanto, que me parecia diametralmente oposto ao pai que eu tinha em casa. só muitos anos mais tarde eu compreenderia que, por debaixo dessa armadura, se abrigava um espírito generoso, sensível, carinhoso, bom. uma noite há, também no verão passado, em que uma confusão de gente se transforma num jantar em que o filmo a tocar a guitarra num espanhol granulado (só saberei mais tarde que o namorado de não sei quem filho da prima daqueloutro fez um documentário sobre o paco de lucía) enquanto uns e outros vão comentando, com olhos de espanto, a inesperada comunhão que vai de cascais a israel, dos campos de férias ao pamplona que era de braga mas que já vive no porto há não sei quanto tempo. talvez eu deva essa percepção tardia - ou melhor, essa, enfim, revelação - ao meu encontro com um senhor em cujos filmes moram homens como o António. esse senhor chamava-se John Ford e, tal como me aconteceu com o António, só muito posteriormente é que vim a compreender os seus filmes. não sei se o António os viu, mas, caso o tenha feito, estou certo de que gostaria muito deles, quem sabe não os amasse mesmo de coração. quão estranho, vejo agora, nunca lhe ter perguntado se apreciava esses filmes pelo meio das conversas que, nos últimos anos, fomos tendo com mais frequência, tantas vezes em que me sentia a recuperar um qualquer tempo perdido, enquanto o António insistia - perdoa-me o atrevimento, Eva, mas, nesses momentos, sentia-lhe o orgulho quase de um pai num filho - em fazer-me corar em frente dos presentes, então pá e o teu filme hã, sim senhor belos textos xico já viste ó cathy, sentado muito hirto (sempre) no sofá de magrelas e brancas pernas descobertas pelos calções de banho. e nesse momento é como se a carrinha amarela que o vem pontualmente buscar à nossa rua (e é o ricardo, o antigo segurança da faculdade de direito, quem conduz, rapaz de coração franco, coincidência daquelas) o fosse levar para a praia com os colegas da escola. mas ó pá ó xico tu tens de fazer parágrafos mais curtos já te disse isto pá, pois é eu sei e olhe, António, sabe quem também me diz o mesmo sobre os parágrafos? o meu pai. tenho quase a certeza de que se riria (contidamente) quando, no corredor ao lado da sala onde refresca os pés junto das flores, o meu pai que de inglês só sabe as frases do james bond diz a um amigo seu o mistery para eu não ter ido mais ao coro? olhe é que hã olhe I lost my pio

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