segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Não mateis a iguana (Karen Blixen)


Objecto complexíssimo, poliédrico, sem dúvida com os seus momentos problemáticos (racistas e xenófobos, naturalmente; “especistas”, também), a todo o momento contrariados por passagens de uma clarividência e humanismo (panteísmo mesmo, na relação com a natureza) extraordinários. Livro, obviamente, para deitar à fogueira pelos prosélitos actualmente de serviço, o que, pelos dias que correm, é, em alguns casos como este, um forte indiciador de se estar perante uma obra-prima (a propósito, a relação amorosa que celebrizou o filme nunca é sequer enunciada explicitamente e as primeiras alusões ao assunto aparecem no último terço do livro).

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"Uma vez disparei sobre uma iguana, pois pensei poder fazer coisas bonitas com a pele. Mas aconteceu uma coisa estranha e que nunca mais me esqueci. Quando me aproximei do animal, que jazia morto sobre a sua pedra (...), adquiriu uma tonalidade desbotada e pálida, como se toda a cor se desprendesse do seu corpo, qual longo suspiro e, no momento em que lhe toquei, já estava cinzento e baço como um pedaço de cimento. Era o sangue vivo e impetuoso que pulsava no interior do animal a irradiar todo aquele brilho e esplendor. Agora que a chama se extinguira, a iguana era tão descolorida quanto um saco de areia.

Sempre que matei outras formas de iguana, recordei-me daquela da reserva. Em Meru vi uma rapariga nativa com uma pulseira, uma tira de couro de cinco centímetros de largura, coberta de contas cor de turquesa, muito pequeninas, cuja cor variava entre o verde, o azul-claro e o azul-marinho. Era qualquer coisa de extraordinariamente vivo que parecia respirar no braço dela. Desejei possuí-la, e mandei Farah oferecer-lhe dinheiro por ela. Mal a pus no braço, como que perdeu a alma. Agora não passava de um pequeno adorno barato. Havia sido o jogo de cores, o dueto entre a turquesa e o nègre - esse tom de negro acastanhado, a um tempo vivo e suave, semelhante a turfa ou a cerâmica negra, da pele da nativa - a criar a vida da pulseira.
(...) Em Meru, olhei para a minha mão pálida e para a pulseira morta: era como se uma injustiça houvesse sido cometida contra qualquer coisa de nobre, como se a verdade tivesse sido suprimida. Tão triste era o seu aspecto que me recordei da frase de um herói num livro que havia lido na infância: 'Conquistei-os a todos, mas encontro-me no meio de túmulos.'.
Num país que nos é estranho e com espécies de vida estranhas, devem tomar-se medidas com vista a descobrir se as coisas continuarão a guardar o seu valor depois de mortas. Aos colonizadores da África Oriental dou o seguinte conselho: 'Para bem dos vossos olhos e do vosso coração, não mateis a iguana.'".
[Out of Africa, Karen Blixen, 1937, trad. (excelente) de Ana Falcão Bastos]

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