segunda-feira, 11 de março de 2013

pensamento dissolvente (ou insolvente)

"Nos últimos anos, assistimos à emergência daquilo que ele [Pierre Rosanvallon] designa como a contra-democracia e que, no fundo, corresponde ao advento de uma época marcada sobretudo pela prevalência do princípio da desconfiança. Até então, as nossas democracias representativas assentavam na confrontação de projectos alternativos, inspirados em representações ideológicas, ou em programas políticos de natureza global que reportavam a visões compartilhadas de um mundo comum. Por mais antagónicas que tais posições se revelassem, elas apelavam sempre a uma perspectiva geral da actividade humana. Tudo isso se modificou nos últimos anos. Assistimos à emergência de um modelo de participação pública menos preocupado com a concretização de um projecto e mais empenhado na fiscalização da acção prosseguida pelos titulares de poder público. Tal circunstância conduziu à desvalorização de uma cidadania empenhada na prossecução de um programa e proporcionou a afirmação de uma nova forma de intervenção política caracterizada pela predominância de um pensamento simultaneamente dissolvente e vigilante. Não será por acaso que o nosso tempo está tão associado ao elogio acrítico do princípio da transparência. O triunfo da desconfiança, que adquire a sua expressão extrema na apologia dos mecanismos da judicialização da política, traduz adequadamente as principais características da época em que vivemos. Os cidadãos, desconfiados da utilidade de qualquer projecto político, sentem-se levados a valorizar uma atitude crítica face a qualquer manifestação de poder, atitude essa para onde convergem uma ética simplista e um apelo populista quase irresistível. As pessoas que se manifestam nas ruas pelos mais diversos e respeitáveis motivos estão, sem dar conta disso, a correr o risco de imersão num magma anti-representativo de imprevisíveis consequências. Contudo, não nos enganemos. Não estamos perante a ameaça de um recuo da política. Estamos perante uma nova forma de participação política onde à contestação do primado da lógica representativa corresponde a afirmação de uma linha de orientação marcada pelo princípio da desconfiança e pela publicitação de reivindicações puramente fragmentárias.
(...)
De certa forma, as nossas sociedades contemporâneas estão confrontadas com um vazio absoluto que resulta da total desvalorização de princípios minimamente transcendentes, sejam de natureza religiosa, sejam de âmbito puramente racional. (...) A radical imanência das sociedades democráticas pode conduzir à sua completa ingovernabilidade".

Francisco Assis, "Uma nova forma de participação política", in Público, 7 Março de 2013, p. 48.

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