quarta-feira, 24 de julho de 2019

"Corri para casa o mais depressa que pude. Cheguei afogueada ao alpendre onde a minha mãe e as vizinhas desfiavam outra interminável tarde de rendas, bordados e coscuvilhices. Quando recuperei o fôlego para dizer, a D. Gilda teve um aborto, a minha mãe e as vizinhas largaram, num grito, os panos e artefactos, linhas, agulhas, dedais, deixando cair os banquinhos de madeira em que estavam sentadas, tal a pressa com que se dirigiram para o portão. Já na rua, a D. Maria do Carmo seguiu à frente, a mãe da Rosita e a D. Alda no seu encalce, a minha mãe, a Glória e a mulher do mecânico a fecharem o esquadrão. Ultrapassei-as e já estava à porta da D. Gilda quando elas bateram palmas para se fazerem anunciar. A vontade de oferecerem os seus préstimos naquela hora difícil era tanta quanta a necessidade de saberem os pormenores do que se passara. Não imaginava o que seria ter um aborto. Sabia apenas que era uma coisa muito má que podia acontecer à D. Gilda.
(…)
Naquela tarde (…), eu estava tão maçada com a costura e os bordados que a minha mãe e as vizinhas faziam que a almofada dos alfinetes e das agulhas perdera a sua atração e tornara-se um desinteressante ouriço metálico. Subi e desci a mangueira umas quantas vezes, ficando a ouvir o barulho pesado das mangas maduras a caírem no chão, fiz bolas de lama no quintal, enfeitando-os com as lesmas que babavam o branco caiado das paredes, apanhei umas palmadas da minha mãe por me ter ferido num dos joelhos, fiz tudo o que me passou pela cabeça e o sol continuava longe do pequeno fogão branco. A sabedoria instintiva de criança dizia-me que a verdade quase sempre conspira com o tempo para o tornar mais monótono e lento. A mentira, pelo contrário, tem o poder de o descompor e apressar. Por isso eu mentia, mentia muito. Mas nunca de forma tão engenhosa e perfeita como fiz naquela tarde, a D. Gilda teve um aborto.
(…)
Poucos anos depois, as vizinhas espalharam pelo bairro que a Glória, a melhor amiga da minha mãe, era amante do meu pai. Durante muito tempo a minha mãe quis convencer-se de que as vizinhas tinham inveja da amizade que a unia à Glória. Quando a verdade rasga, a mentira também serve para coser. Ou para cicatrizar".
 
(Dulce Maria Cardoso, in “Visão”, 18-7-2019)

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