segunda-feira, 21 de outubro de 2019

360º






 
 
(La signora di tutti, 1934, M. Ophüls)
 
 
A música já não se ouve mas o par continua a dançar, saindo do salão e entrando para uma sala lateral mais reservada. Gaby larga-lhe a mão, rodopia sozinha, Roberto fica a ve-la. Gaby (sim, “Gaby”, pois que nesta noite em que se subtraiu à opressão do pai, é tudo menos a sua “Gabriella”) senta-se no sofá perfeitamente zonza, bêbeda de felicidade. Há um preço a pagar: a liberdade, o desejo, le plaisir, também dão ressaca. Tonturas. Alucinogénios... Dazed & Confused... “Vês? I...sto é o que acontece quando me deixas sozinho”, diz ele com 23 sentidos diferentes na ponta da língua. Ainda ela está a acabar de dizer que sente a cabeça à roda e já Ophüls começou a desenhar um movimento de 360º com a câmara (mas quem é que faz isto por estes dias? ‘Avant-garde’? ‘Experimental’? Está[va] tudo aqui...). No início do movimento, Gaby está tonta; no fim, quase restabelecida, sabendo nós que este “restabelecimento” marcará uma viragem na sua vida. Ao contrário das regras da geometria, algo mudou, então… Quando voltamos até eles, a pergunta: “O que me fizeste há pouco?”, ainda mal refeita do sonho de que acaba de acordar. “Nada”, afirma Roberto, atrapalhado, sem saber que, muitos anos depois, outros homens trocarão a graça e o cavalheirismo por pózinhos mágicos secretamente colocados em copos de bebidas em salões onde a música jamais se cala. Minas & armadilhas, cada era com as suas… Convida-a a irem até ao jardim e Gaby, assentindo, dirige-se na direcção (errada) da câmara: os efeitos da tontura perduram, as próprias coordenadas geográficas soçobram.
 
Já seria estratosfericamente belo se fosse apenas isto, esta candura do domínio do literal. Mas não: antes metafórica forma de explicitar – equiparar – a câmara como ponto de vista absolutamente subjetivo de uma personagem (recorde-se que todo o flashback ocorre a partir do momento em que, no início do filme, Gaby dá entrada no hospital em situação de vida ou de morte – “vida ou morte”, claro, romantismo supremo, o extremo oposto, por definição, de qualquer geometria…). Daí as muitas outras tonturas que a câmara testemunhará (ou seja, que a memória de Gaby recuperará, mais ou menos distorcidamente) ao longo do filme: vapores, fumos, os "fondu enchaîné", as subtis duplicações das formas…

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