segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

2020 - motion pictures (movie theaters only, now and ever)

Filmes do meu ano:

1. Richard Jewell (Clint Eastwood)
2. Portrait de la jeune fille en feu de (Céline Sciamma)
3. Roubaix, une lumière (Arnaud Desplechin)
4. Le sel des larmes (Philippe Garrel)
5. Les plus belles années d’une vie (Claude Lelouch)
6. The Nest (Sean Durkin)
7 Ordem Moral (Mário Barroso)
8. O Fim do Mundo (Basil da Cunha)
9. J’accuse (Roman Polanski)
10. Pinocchio (Matteo Garrone)

Link melhores filmes de 2020 À pala de Walsh: http://www.apaladewalsh.com/2020/12/os-melhores-filmes-de-2020/

Na sua falsa simplicidade, na sua aparente ultra-modéstia, Richard Jewell é capaz de ser um dos filmes mais complexos de Clint Eastwood dos últimos 20 anos. O mais intrincado, a anos-luz, que tive oportunidade de ver este ano em sala – contrariando os critérios definidos pela editoria da casa, a minha lista contempla deliberadamente apenas filmes estreados no lugar onde eles devem ser vistos. Não vale a pena tecermos loas ao cinema como “experiência colectiva”, “ponto de encontro e partilha”, e ao grande ecrã como “o lugar a que o cinema pertence” se depois aceitamos passivamente (ou até activamente, no caso) à  desmantelação de tais ideias mesmo em frente aos nossos olhos. E não se trata apenas de um gesto simbólico – ou achar-se-á mesmo que as Netflix e afins não esfregam as mãos de contentes quando vêem publicações prestigiadas incluírem os seus filmes nas listas do ano, passando, acto contínuo, a mencionar esse facto nas campanhas de promoção dos filmes (a partir daí se criando acumulativamente redes de interesses e promiscuidades que só acrescentam força e capacidade de lobbying às plataformas)? Se não os podes vencer, não te juntes mesmo a eles; não é embirração ou ingenuidade, antes o conservar, na medida da nossa pequena mas vertical capacidade, de uma convicção, um pacto, um amor. Sim, no diminuto poder que nos assiste de boicotar a voracidade omnívora e homogeneizante do streaming, boicotemos, pois claro. Ou, então, relativize-se mesmo tudo e, no limite, se daqui a 20 anos as salas desaparecerem de vez e só houver streamings para cada um ver no seu buraco, também “está tudo bem”. 2020: um ano estranhíssimo por razões óbvias e no qual, mal-grado ter mantido um elevado visionamento de filmes em sala, o panorama de estreias que consegui apanhar se apresentou francamente pobre.

E eis Richard Jewell no meio disso tudo como um autêntico oásis – ou deserto, não sabemos nunca ao certo, o filme está sempre a virar o bico ao prego, objecto cubista permanentemente formulando questões, respostas e contra-questões políticas e ideológicas (os EUA e o significado da liberdade, o virtuosismo patriótico das forças de segurança e a corrupção e a privacidade, o “bem da nação” e o individualismo, a cena das armas no quarto do patético Jewell que me parece ser a redenção de Eastwood da das gunsas kid’s best friend em The 15:17 to Paris; sendo tudo isto que acabo de enunciar assaz exíguo para a gigantesca massa problematizante em que o filme se constitui), axiomas e contradições (se não insanáveis, perto disso) a cada plano, sequência, a cada diálogo. Um filme de uma dialéctica exemplar que, ao jeito socrático, nos interpela a todo o momento no caminho de descoberta da verdade (a do “V” maiúsculo, não a do autor do atentado…) e que deveria integrar a formação dos funcionários de qualquer instituição pública (a começar nas escolas e a acabar no SEF). Saber que o advogado de Jewell (interpretado por Matthew McConaughey) corresponde, na vida real, a L. Lin Wood, cretino circense (com todo o respeito que as ditas artes me merecem) que tem feito parte da imundície trumpista do “Stop the Steal” só torna tudo mais rico e perturbante. Única reserva: a história muito mal contada por Eastwood para justificar o facto de, no filme, ter colocado a jornalista Kathy Scruggs (Olivia Wilde) a fazer uma troca win-win (i.é, sexo-informação) com um agente do FBI, algo sem sustentação factual e a que Scruggs, que já cá não mora, nunca poderá responder. Chama-se honra – aquilo que Eastwood talvez mais tenha enaltecido ao longo da sua obra…

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