Quando esta cena tem início, sussurrei à minha companhia: "Nunca vamos ver a fotografia". E, de facto, Buñuel nunca a mostraria acaso o seu conteúdo fosse realmente transgressivo... É o que acontece (?) com a caixinha de Belle de Jour, cujo interior jamais chegamos a ver. Aquilo que Vitti e Brialy (o Monsieur... "Foucauld"), horrorizados, observam só é permitido ver ao espectador justamente por ser um "objecto real, familiar, quotidiano": o Arco do Triunfo, a Sacré-Cœur... Tudo coisas, estas sim, da ordem da indecência - ainda o charme discreto...
"Buñuel praticou uma relação mental que não obedece à lógica tradicional. Afirmou o absurdo, mas apenas na parte da construção cinematográfica que não é material: ou seja, no desenvolvimento da sequência e na articulação dela com as restantes. Quanto ao resto, o seu material é sempre objectivo e não distorcido, totalmente espanhol. Não me lembro dum só plano, dum só fotograma de Buñuel em que não apareça um objecto real, familiar, quotidiano, apresentado a «palo seco». Essa é a grande diferença entre ele e o outro único surrealista válido do cinema, Jean Vigo, filho dum catalão. Vigo, apoiando-se na realidade objectiva, acentua-a e deforma-a com iluminação e ângulos excêntricos que, pela contribuição duma estética, dão novos sentidos ao objecto. Em Buñuel, o elemento de surpresa e contradição reside nas coisas tais como são: a matança dum porco é-nos dada com a mesma fidelidade com que a vimos em qualquer lugarejo e, apesar disso, parece-nos incrível, inadmissível, quando Buñuel nos dá a vê-la. Não é a arte de Buñuel que é surrealista; o mundo é que o é na sua obra. Não é por deformação sádica que nos mostra o mundo como cruel e duro; pelo contrário, Buñuel mostra a violência em planos brevíssimos sem comprazer-se nela, dando-nos apenas os dados imprescindíveis para que tomemos consciência disso, com enorme sentido de pudor. Jean Vigo foi um artista, um lírico, o profeta duma nova classe social que nascia. Buñuel é o cronista duma classe agonizante, que documenta laconicamente, sem querer dar-nos com essa crónica qualquer esperança".
(Le fantôme de la liberté, L. Buñuel, 1974 / Luis Buñuel, Biografia Crítica, F. Francisco Aranda)
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