segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

2022 - LULLABIES



(não é um "top" de nada; apenas os discos do meu ano)



Mais do que Kendrick Lamar, era de Stromae o regresso pelo qual a expectativa era maior. Multitude é, a grande distância, o disco de 2022, um trabalho sumptuoso, delicado mas exuberante, onde canções menos boas são algo que simplesmente não existe. Para quem tiver dúvidas, nada como ouvir o a capella de “Mon Amour” que o belga fez para o Tiny Disc Concert da NPR. Quem um dia apadrinhou Stromae na sua estreia em palcos americanos foi Kanye West, para quem 2022 foi, decididamente, o ano do colapso. À luz das inenarráveis manifestações racistas e anti-semitas que assumiu nos últimos meses (inclusivamente enaltecendo Hitler), o seu apoio a Trump nas eleições de 2016 parece agora uma brincadeira inofensiva. É isso que explica, como parcialmente já acontecera em 2021 com Donda, a completa ausência de Donda 2 das listas de discos de numerosas publicações. O que, não sendo uma surpresa, denota o oportunismo de tutti quanti que, durante anos a fio, idolatraram à boca cheia o americano enquanto este exibia o seu boçal temperamento. Trocando por miúdos: West sempre foi um grande imbecil que sempre fez grande música; Donda 2 não é excepção.

Ainda no hip-hop americano, mas a anos-luz do estardalhaço do músico de Chicago, Roc Marciano (The Elephant Man's Bones e a sua estupenda capa), Ka (Woeful Studies e Languish Arts) e a dupla Elzhi e Georgia Anne Muldrow (Zhigeist) voltaram a mostrar por que razão o underground é o mais vibrante dos lugares. No seguimento do trajecto descendente dos últimos anos, o hip-hop português, esse, foi, com excepção de Regula e pouco mais (Rei do Rap, de Pibx, e Causa Torpe, de AZIA, em mais uma demonstração de como a cidade do Porto permanece território fértil para as experiências mais desalinhadas e inventivas), um cenário de desolação.

Não se pode qualificar exactamente de surpresa (Cult Survivor, em 2020, já tinha deixado boas pistas), mas foi a partir da suspeita Viena, Áustria, não propriamente conhecida como um viveiro da música popular mundial, que Harlequin confirmou Sofie Royer (filha de mãe austríaca e pai iraniano), uma violinista de formação clássica e cinefilia apurada, como uma singular cantora e compositora que gosta de alternar a palavra entre o inglês e o alemão. Harlequin, trabalho evocador da alguma da melhor synth-rock-pop dos anos 70/80, é um deleite de inocência e melancolia, de joie de vivre e doomness. É sensivelmente da mesma carne que se faz PAINLESS, do qual a inglesa Nilüfer Yanya (mãe inglesa e pai… turco) sacou “Shameless”, uma das mais belas canções dos últimos trezentos e sessenta e cinco dias.

Como belas, algumas mesmo inesquecíveis, são as canções que pontuam outros discos igualmente merecedores de destaque: “Hentai” (Motomami, o tema em que Rosalía e Mac Miller se deveriam ter encontrado), “New Mode” (Entergalactic, Kid Cudi), “Static” (Gemini Rights, Steve Lacy) e “Do Better” (Herbert, regresso de Ab-Soul depois de ter estado com um pé do outro lado). Mas também “90 Proof” (Luv 4 Rent, Smino), “2012” (Few Good Things, Saba), “Frequency” (Fear of Time, o aguardado reencontro de Talib Kweli e Mos Def), “Quiet Culture” (Capacity To Love, tour de force de versatilidade do trompetista franco-libanês Ibrahim Maalouf) ou “Forever” (do disco homónimo póstumo de Phife Dawg).

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