terça-feira, 27 de junho de 2023

Do Donbass a Hiroshima: Paisagens Traumáticas, Paisagens de Monstros



Ensaio na Skhema Magazine, Revista Interartes do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa da FLUP.


"A pedra de toque em Godzilla está, malgré tout, na sua fundamental nota de optimismo (no que de facto se afasta de Os Filhos de Hiroshima e Chuva Negra), mesmo se dada literalmente através de um... seppuku. Um segundo cientista (o facto de usar uma pala num dos olhos imprime-lhe uma certa dimensão mediúnica) revela ter criado um dispositivo capaz de destruir oxigénio e consequentemente, de tudo o que viva dentro de água (como o Godzilla). Uma descoberta genial e, simultaneamente, perigosíssima – tal como, portanto, a da bomba nuclear. Ciente de que a destruição dos seus estudos e investigações não será suficiente para impedir a sua má utilização por terceiros (“Mesmo que eu os queime, eles continuarão na minha cabeça e poderão ser extraídos de mim à força!”, como que prenunciando a interferência do Algoritmo e outras distopias neurotecnológicas do tempo em que hoje vivemos), levará a sua ética humanista até às últimas consequências. Acedendo a utilizar a sua descoberta por uma única vez para destruir Godzilla, suicidar-se-á de seguida, tal qual, no Bushidō, os samurais se sacrificam em nome da sua honra em vez de ficarem à mercê do inimigo – em vez da sua descoberta ficar à mercê das mãos erradas.

Se falámos em optimismo é porque, nesta oposição entre "velhos” (os que criaram a bomba atómica e a entregaram aos políticos) e “novos” cientistas, são os segundos que decidem, com a própria vida, reger-se por uma inabalável ética na preservação do mundo e seus equilíbrios naturais. São os jovens – sugere o filme – que poderão (?) fazer no futuro algo melhor do que os seus pais (e, porém, sabemos como os jovens serão velhos, que terão filhos, que serão novos e depois velhos…). Para isso, não matam o pai, mas, se necessário, como no caso de Chuva Negra, matam-se a si próprios".

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