Da minha janela vejo o Bósforo todos os dias: divisões e correntes, agitações e marés. Tal como no homem, tal como no mundo.
sexta-feira, 2 de dezembro de 2011
Xavier
Escrevi, há uns tempos, que "Sangue do meu Sangue", o filme de João Canijo, me parecia pouco honesto, senão mesmo falseador, no retrato que fazia da portugalidade contemporânea e do "ser português", e isso porque se deixava cair numa etiquetização fácil, ostensiva e superficial do nosso país e suas gentes. A esse propósito, falei de filmes de Teresa Villaverde ou de João César Monteiro como exemplos, no extremo oposto, de olhares - ainda que cinematográficos e, portanto, do domínio diegético - sóbrios e muitíssimo mais verosímeis sobre este lugar chamado Portugal.
A estes dois nomes, aos quais podia aditar outros (Pedro Costa, Manoel de Oliveira, etc.), acrescento um outro - o de Manuel Mozos, cujo filme Xavier (filmado em 92, mas estreado apenas em 2003) só veio reforçar o entendimento que retive de "Sangue do meu Sangue": o de que, com uma simplicidade desarmante, podemos captar uma realidade, uma cultura, de um modo muito mais sério e verdadeiro quando o deixamos respirar, por si, em frente a uma câmara, ao invés de extrairmos dele, à força, quase o violentando, as sua marcas mais epidérmicas, as pontas dos icebergs menos interessantes de um mais vasto e complexo mundo.
De resto, Xavier é um filme fabuloso, belíssimo, um tesouro do cinema português que é, paradoxalmente (ou não tanto assim...), expressão máxima do destino trágico (produção e exibição) a que muitos filmes portugueses estão votados. É um filme que tem o condão de nos continuar a fazer pensar nas personagens (um soberbo Pedro Hestnes à cabeça, e toda uma geração de então novos actores, hoje "telenovelizados"), suas vidas e nas relações entre si. É tudo tão vívido que nos fica a sensação de que aquele universo permanece activo mesmo depois de se abrirem as portas da sala de cinema, de que aquelas vidas, com os seus alentos e desventuras, persistem em animar um lugar, uma comunidade, enquanto nós, voyeurs de ocasião, continuamos paralelamente com a nossa vida, volta e meia voltando a acompanhar os seus passos. O filme acabou, mas saímos da sala menos sós.
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