quarta-feira, 30 de março de 2016

Artes Entre As Letras #9 - Crítica de cinema



Em Março, escrevo para o Artes Entre As Letras sobre o Muito Amadas (um adaptação de parte da minha crónica no À pala de Walsh) e O Filho de Saul. Bons filmes.

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Muito Amadas (2015), Nabil Ayouch ★★★★
O último filme de Nabil Ayouch dá a ver, sem qualquer planfletagem, um autêntico “lado B” de Marrocos, país onde os ditames da política e da religião coabitam com a prostituição, as drogas, a homossexualidade, a pedofilia, a transexualidade, a desestruturação familiar (não se vê, por um único instante, qualquer indício do “esplendor mágico” da Praça Jemaa el-Fnaa).
São tantas as faces semi-ocultas de Marrocos aqui desveladas quantas as que também existem nestas mulheres: três prostitutas, três amigas, três companheiras de casa, três pessoas como outras quaisquer a tentar sobreviver e ser felizes. Mulheres que, marroquinas no B.I., são universais nos medos e nos desejos: a Randa que se vê forçada a ter sexo com homens quando, na verdade, se sente atraída por mulheres; a Soukaina que tem de se mostrar permanentemente disponível e excitada perante os clientes mas a quem nem sempre apetece fazer amor com o namorado; a Noah que de dia anda de jilbab em público e à noite faz uso das mini saias a que a profissão obriga. Se Les Demoiselles d’Avignon (1907), de Picasso, foi o propulsor do cubismo enquanto estética e técnica que fez da captação dos múltiplos ângulos, planos, formas e volumes do objecto a sua marca distintiva, então, podemos olhar Muito Amadas como um filme profundamente cubista, nessa multiplicidade angular convergindo a demonstração de admiração de Nabil Ayouch para com a mulher marroquina – toda, sem excepção. Que Loubna Abidar, a actriz principal do filme, tenha entretanto emigrado para França em virtude de um ataque cometido por um cobarde e miserável grupo de homens numa rua de Casablanca (tendo, alegadamente, os hospitais e a polícia locais recusado acolhê-la nessa sequência) só diz bem do atual estado das coisas num país muçulmano que nos habituamos a enunciar como um caso de sucesso em matéria de democracia e direitos humanos.
O Filho de Saul (2015), László Nemes ★★★★
A certa altura, um prisioneiro exasperado com o comportamento arriscado de Saul pergunta-lhe: “Mas tu queres morrer ou quê?!”. A resposta vem serena e desinteressada: “Nós já estamos mortos”. É um diálogo, passe a redundância, “de morte” e que sintetiza a matéria tratada neste filme de “zombies”, primeira longa-metragem do húngaro László Nemes, ovacionado em Cannes 2015 pelo testemunho dos últimos dias de um Sonderkommando – prisioneiros judeus que gozavam de um estatuto especial temporário, executando algumas tarefas logísticas e com isso adiando um pouco mais a sua própria eliminação – em Auschwitz, Outubro de 1944. Filme de horror, sim, mas um horror “materialista”, terreno, bem palpável, que dispensa, portanto, espíritos, fantasmas ou monstros (pelo menos os desprovidos de forma humana…), para nos relembrar que os homens são, ou podem ser, os piores pesadelos de si mesmos.
Nemes filma de câmara à mão (ou ao ombro), quase sempre nas costas do espantoso e muito bressoniano Géza Röhrig (o actor que interpreta a personagem de Saul), deliberadamente reduzindo a profundidade de campo e, com isso, a visibilidade do espectador para os espaços e macabras actividades por que Saul vai passando. É na sugestão e na insinuação, por isso, que fica todo o horror que se advinha, provando que o “indizível” pode também ser… invisível. Nesta casa de horrores em que os interlocutores se dirigem uns aos outros sempre por “Tu!” (a carência de um nome como exemplo paradigmático da desumanização) e os corpos mortos são designados por “pedaços” (…), a máquina nazi é a tal ponto perversa que, através da forte estrutura hierárquica introduzida nos próprios sonderkommando e numa lógica de “dividir para reinar”, torna as próprias vítimas inimigas umas das outras (todos se desprezam: judeus sonderkommando, judeus “não privilegiados”, polacos, húngaros, etc.).
Terá sido Eisenhower a apelar a que se filmasse e fotografasse tudo quanto se encontrasse em Auschwitz (e noutros campos) para ninguém poder um dia mais tarde negar os acontecimentos; no filme de Nemes, o registo fotográfico é justamente um dos meios pelos quais um grupo de sonderkommando tenta reagir (enviando fotografias do campo para os Aliados para provocar mais rapidamente a sua intervenção), podendo o filme ele mesmo ser visto, neste sentido, como um resistente gesto contra o esquecimento (sobretudo em tempos conturbados em que os fascismos saiem definitivamente da casca e já ganham eleições).
Um outro atributo magnífico do filme é o tratamento de som, aqui dotado de um papel tão ou mais importante que a própria imagem, de alguma forma revelando, no seu pormenor e no seu rigor, o que esta (a imagem) não mostra (os ruídos dos fornos em funcionamento e das limpezas dos mesmos pelos sonderkommando, os passos nos corredores, os documentos a serem queimados); os diálogos das personagens, por sua vez, sempre sussurrantes ao ponto de não se perceber quem fala e com quem, criam uma atmosfera geral de surdina, como se a palavra falada fosse o ultimo sopro de vida possível no inferno. E o sorriso final de Saul, o único do filme, não tem, ao contrário do que pode parecer, nada de alucinado: é a lúcida certeza, apesar de tudo, no futuro, no que as crianças, homens e mulheres de amanhã, poderão fazer para a mudança. É esta, por isso, uma estreia auspiciosíssima que deixa grandes expectativas para o próximo filme de Nemes.

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