quarta-feira, 24 de setembro de 2008

ainda sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo

Em vésperas de votação na AR do projecto formulado pelos Os Verdes, quis aqui escrever algo. Cheguei à conclusão que já muito escrevi sobre a questão, neste e noutros blogs.
Por isso decidi pegar num excerto de um trabalho feito para a cadeira de Direito Constitucional por mim e outro colega. Cortei a parte da interpretação jurídica dada a sua tecnicidade. Bem sei da capital importância desta. Todavia, não querendo ser maçador com tais hermenêuticas (o espírito da lei para aqui até é, na minha opinião, secundário, dada a clareza da letra, pelo que o espírito só será fundamental quando apreciada a dialéctica direito/sociedade) e sendo o excerto aqui transcrito uma apreciação global com suporte juridicamente e previamente fundamentado, considero que aqui fica a minha opinião final sobre esta vexata quaestio (infelizmente).
O trabalho é um comentário ao Acórdão do Tribunal de Relação aquando do recurso da decisão do Conservador do Registo Civil interposto pelas cidadãs Teresa Pires e Helena Paixão.
Em breve sairá a decisão do TC do recurso para si enviado.

11. – Considerações globais
A análise e opinião pessoal que emitimos sobre o acórdão foi feita, toda ela, em termos jurídicos, isto é, no quadro da Ordem jurídica portuguesa e dos seus monumentos legislativos. Dentro destes últimos, a CRP mereceu-nos especial atenção e referência, pelo nível supremo que ocupa na ordem jurídica interna.
Mas não podemos deixar de tecer uma consideração além-Direito sobre o acórdão.
O casamento entre homossexuais é hoje em dia elevado, pela sociedade política e pelos media, à condição de questão fracturante. À semelhança da interrupção voluntária da gravidez (IVG), por exemplo. Fracturante ou não, cremos ser acima de tudo uma questão cuja dimensão e envolvência social se encontra indissociável dos valores, princípios e mentalidades que se pretendem de uma sociedade moderna e sucessivamente aperfeiçoada no que toca à Democracia, à Igualdade e à Tolerância. Uma sociedade livre de preconceitos e fobias. Enfim, uma sociedade onde realmente se possa afirmar que “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”. E, mais do que afirmar, testemunhar e vivenciar. Porque o Direito só é Direito quando “vivido”.
Aproveitando os dados do acórdão quanto aos países onde o casamento homossexual é já permitido – e aos quais acrescentamos a vizinha Espanha – pensamos que as conclusões daí a retirar são bem diferentes das que o acórdão retira. O que do nosso ponto de vista fica ressalvado é que o caminho para uma igualdade e tolerância que se querem cada vez mais plenas, já começou, felizmente, a ser trilhado. Cabe-nos a nós, jovens, adultos, idosos, estudantes, trabalhadores, homens, mulheres e todos os que se revejam numa comunidade fraterna, aberta e tolerante, empenharmo-nos nesse caminho. Continuar a desbravá-lo. Porque este caminho é feito de pequenas vitórias. Grandes, para quem por elas luta. Uma democracia como a portuguesa que, além de política, se quer cívica e activa (artigos 2º, 8º, 48º e 109º da CRP), exige dos seus actores (todos os cidadãos) a presença no palco da discussão. Porque devendo o Direito estar atento e confluir na mutação da sociedade, cabe-nos a nós, cidadãos, operar essa mutação no quadro de um Estado democrático e plural. Por isso mesmo, os exemplos da Escandinávia, Holanda, Alemanha, Bélgica e Espanha – e outros que entretanto se preparam para adoptar a mesma legislação – são, a nosso ver, não uma mera prova redutora, em termos jurídicos, de que “o casamento não é a única forma de constituir família”, mas, muito mais importante do que isso, a prova de que, de facto, é possível acreditar e lutar activamente pelos nossos direitos. Enfim, pela nossa liberdade. E já que nos referimos à comunidade internacional, europeia neste caso, aproveitamos para mencionar os diplomas onde, do nosso ponto de vista, o casamento e a não-discriminação são considerados sob o mesmo ponto de vista da nossa CRP. O que reforça pois a posição por nós aqui assumida e defendida. Era imperioso fazê-lo, tanto mais que hoje, o apelo para diplomas de organismos deste género, supra-estaduais ou internacionais, é tão frequente para legitimar, apoiar ou reforçar causas. Assim, enunciamos os artigos 1º, 2º, 6º, 7º, 8º e 16º da Declaração Universal dos Direitos do Homem; o número 1 do artigo 10º do Pacto Internacional sobre os Direitos económicos, sociais e culturais; os artigos 23º e 26º do Pacto Internacional sobre os direitos civis e políticos; os artigos 12º e 14º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; e, finalmente, os artigos 51º, 52º, 53º, 54º e 73º da Resolução sobre o respeito pelos Direitos do Homem na União Europeia.
Como já dissemos, esta é uma questão apelidada de “fracturante”. Por isso mesmo achamos importante fazê-la incidir no campo axiológico. Recorrendo aos estudos do Professor Gomes Canotilho, recordamos a teoria da ordem de valores ou a teoria da integração de Smend que, como refere Gomes Canotilho, se pode afigurar perigosa para o quadro democrático-constitucional. Diz o professor que a “ordem de valores tenta transformar os direitos fundamentais num sistema fechado, separado do resto da Constituição”; “a ordem de valores abre o caminho para a interpretação dos direitos fundamentais desembocar numa intuição espiritual, conducente a uma tirania de valores, estática e decisionista”. É inegável que o casamento entre homossexuais envolve mentalidades, costumes e valores numa sociedade. E sem dúvida que qualquer sociedade os deve ter. Todavia, a tirania de valores de que fala Gomes Canotilho é, de facto, muito perigosa. As pessoas mudam. A sociedade muda. Os valores também! Não necessariamente de forma radical ou absoluta. Mas a sua mutação permanente é um facto. A não ser assim, ainda hoje teríamos as sufragistas em greve de fome ou negros americanos sem direito de voto…
Terminamos a nossa já longa dissertação com um comentário e uma menção. O comentário vai para as palavras de Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira no acórdão. Tal como dizem os dois autores, não faria sentido que a CRP concedesse um direito e ao mesmo tempo permitisse ao legislador suprimir ou desfigurar o seu núcleo essencial. Pois é isso mesmo que acontece. A nosso ver, esse direito é plenamente concedido. Mas não reconhecido. E por isso, efectivamente, suprimido ou desfigurado.
Para finalizar, mencionamos as palavras do advogado Luís Grave Rodrigues, advogado das duas requerentes ao longo de todo o processo. Segundo ele, na CRP, “há muito que é permitido o casamento entre pessoas do mesmo sexo”. Por tudo o que temos vindo a dizer, concordamos totalmente. Até porque, continuando a citar Luís Grave Rodrigues, “o próprio Tribunal Constitucional já reconheceu noutros acórdãos a existência de famílias homossexuais por união de facto, reconhecendo-lhes inclusive, certos direitos, como o recebimento de pensões”. Este último ponto é importante, uma vez que não foi explorado neste estudo. Não nos esqueçamos que o casamento, além de um direito, compreende um enquadramento jurídico-legal que envolve inúmeros direitos e deveres. Que, tal como o direito em si, deve ser concedidos a todos. E “todos” significa “todos”.

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