domingo, 30 de dezembro de 2012

só um capricho


La Baie des Anges (1963), Jacques Demy.

Há uma cena, em La Baie des Anges, que define, de um só jorro, toda a personagem de Jackie (Jeanne Moreau, femme fatale platinada, bela-decadente até aos ossos - permitam-me a remissão quiçá despropositada): após uma tarde em que, juntamente com Jean (Claude Mann), sai endinheirada do casino, diz-lhe, num desejo hollywodesco próprio de uma star que nunca foi (e é sabida a admiração de Demy pelo firmamento da indústria cinematográfica americana, circunstância que a escolha do nome "Jackie", de algum modo, indicia), querer jantar num sítio caro, com boa comida, música ao vivo e vista para o mar. O dinheiro - ou o vício, o do jogo, que o gera - assim o permite. Terminado o jantar, e num ímpeto que faz das mulheres belas seres capazes de tudo poderem, pede a Jean que a acompanhe num passo de dança, o que ele, num primeiro momento, recusa (a eterna desculpa masculina da "falta de jeito"), acabando, depois, por ceder perante a insistência da volúpia feita mulher que tem pela frente. Dançam - mas a dança nem um minuto dura. É um instante de graça, com o mar de Nice ali tão perto (cujo ruído e cheiro, se não sentimos, pressentimos), mas não mais do que isso, um instante: Jackie desiste (farta-se, entedia-se) e senta-se novamente, estouvada, já de copo na mão. Surpreendido com tão súbita paragem, com tão súbita mudança de humor, Jean pergunta-lhe a razão para, afinal, ter querido dançar. Com a mesma leveza com que acabara de se mover sob a ponta dos pés ao som da música, Jackie sorri e, despreocupadamente, passando-lhe a mão pelo rosto, diz-lhe: "Foi só um capricho". Touché: o tédio, a desolação, a permanente insatisfação na ânsia de tudo querer, a ausência de sentido para alguém que vive numa ordem social em que não se encaixa, a efemeridade das coisas (o que há de mais efémero do que o dinheiro que se ganha num casino e o bem-estar que ele proporciona?), tudo o que esta mulher carrega desvela-se, assim, de chofre, num misto de delicadeza, violência e honestidade (e humor, já agora).

Depois, o Demy acaba o filme daquela maneira e tudo o que fazia de Jackie este fascinante ser-à-deriva desvanece-se, numa  inusitada e incompreensível demonstração de incoerência. O mesmo é dizer que, com esse final, a personagem de Jackie perde todo o interesse, justamente porque se entrega - incompreensivelmente, insista-se - a uma ordem a que não pertence, cuja natureza jamais se imaginaria poder enquadrar-se com a sua. Jackie interessa-nos (atrai-nos) por ser como é: desalinhada, infantil, docemente "fora-da-lei". Quando Demy fecha o filme, Jackie deixa de ser uma criatura de "outro" mundo e passa a ser do "nosso" - infinitamente menos caótico e, por isso, menos apaixonante também.

sábado, 29 de dezembro de 2012

tácticas de sobrevivência


"Survival tactics" (c/ Capital STEEZ), EP 1999 (2012). Joey Bada$$.

Vamos precisar muito disto para o ano que aí vem: survival tactics. De resto, o Joey Bada$$, um puto de Brooklyn com apenas 17 anos, é só a melhor coisa que aconteceu ao hip-hop nos últimos 10 anos. Bom 2013.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

um complexo com um nome grego qualquer

Mulheres cujas conversas ao telefone com os namorados não se distinguem daquelas que as mães - certas mães, vá - têm com um filho de 8 anos (tom, afectação, expressões faciais, etc.).

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

conto de Natal

Aos meus olhos, sempre foi uma mulher peculiar. Por exemplo, na madrugada de dia 25, perguntei-lhe, ao telefone, como havia sido o Natal. Respondeu-me: "Estupendo". Estupendo.

domingo, 23 de dezembro de 2012

Garbo


Rainha Cristina (1933), Rouben Mamoulian.

"Garbo pertence ainda a essa fase do cinema em que a percepção do rosto humano lançava a maior perturbação no meio das multidões, em que as pessoas se sentiam literalmente perdidas numa imagem humana como num filtro, em que o rosto constituía uma espécie de estado absoluto da carne, que não podia ser atingido nem abandonado.
(...)
Trata-se, indubitavelmente, de um admirável rosto-objecto; na Rainha Cristina (...), a caracterização tem a espessura de uma camada de neve, como se fosse uma máscara; não é um rosto pintado, é um rosto de gesso, defendido pela superfície da cor e não pelas suas linhas; por sobre toda esta neve, ao mesmo tempo frágil e compacta, só os olhos, negros como uma polpa bizarra, mas de maneira nenhuma expressivos, são como duas nódoas pouco trémulas.
(...).
Ora, a tentação da máscara total (a máscara antiga, por exemplo) implica talvez não tanto o tema do oculto (caso das mascarilhas italianas) como o de um arquétipo do rosto humano. Garbo dava a ver uma espécie de ideia platónica da criatura, e é isso que explica que o seu rosto seja quase assexuado, sem todavia ser ambíguo. (...) O seu apelido de Divina visava, sem dúvida, menos a expressão de um estado superlativo da beleza do que a essência da pessoa corpórea, caída de um céu em que as coisas são criadas e acabadas nas claridades.
(...)
Enquanto momento de transição, o rosto da Garbo concilia duas idades iconográficas, assegura a passagem do terror ao encanto. Como se sabe, encontramo-nos hoje no outro pólo desta evolução: o rosto de Audrey Hepburn, por exemplo, é individualizado, não só pela sua temática particular (a mulher infantil, a mulher felina), mas também pela sua própria pessoa, por uma especificação quase única do rosto, que nada mais tem de essencial, mas é constituído por uma complexidade infinita de funções morfológicas. Como linguagem, a singularidade da Garbo era de natureza conceptual, a de Audrey Hepburn de natureza substancial. O rosto de Garbo é a encarnação da Ideia, o de Hepburn a do Acontecimento".

Roland Barthes, "O Rosto de Garbo", in Mitologias, Edições 70, 2007, pp. 124-126.

sábado, 22 de dezembro de 2012

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

BIEN





Tout Va Bien (1972), Jean-Luc Godard.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

desire



"Desire", álbum The Dreamer (2008). José James.

sábado, 15 de dezembro de 2012

como é que sentes



"Como é que sentes", faixa extra de UniVersos (2012), Virtus.

"Como é que sentes" - faixa agora revelada por Virtus que confirma a marca autoral das suas composições: o cruzamento do realismo com a poesia, a construção de imagens do quotidiano pontuadas por alusões universais (em jeito de sinédoque) e metafóricas que o transcendem, como se a poesia fosse o único modo de amenizar as agruras do real. Uma das faixas que talvez se oiçam, logo à noite, no Hard Club.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

isto não passa (2)


Zabriskie Point (1970), Michelangelo Antonioni.

Voltei ao local do crime. A sensação é a mesma: a de que nunca ninguém no cinema conseguiu filmar, como Antonioni, a mais bela das Utopias: a do Amor como forma - única forma - de começarmos com isto tudo (o mundo, as relações humanas, enfim, a civilização) outra vez. Uma segunda oportunidade para nós, homens, voltarmos às raízes e construirmos tudo de novo, sem os erros do passado. Do ponto de vista visual, esse ressuscitar, representado pelas cenas filmadas no deserto, está alinhado com a paisagem (sempre a paisagem como condicionador psicológico das personagens, em Antonioni), cuja aridez reclama, como pão para a boca, que alguém a insemine, a injecte, a plante de vida (a água como "fonte de vida"). E não constituirá uma mera curiosidade que Zabriskie Point se situe num lugar chamado vale da... Morte ("Death Valley"), pois é à morte que se seguirá o... renascimento.
Que no Amor - e na liberdade, na ternura, no desejo, na carnalidade que lhe estão associados - resida a derradeira hipótese de sobrevivência, ou melhor, desse tal renascimento, é, apesar de tudo, uma demonstração de esperança na humanidade e na sua natureza. Natureza que, nas cenas filmadas no deserto, nos comove pela leitura rousseauniana de que é objecto, isto é, do homem como sendo, na sua primitiva existência, um bom selvagem, livre e amistoso. É esse o testemunho de Antonioni quando filma aqueles seres fazendo amor, brincando, envolvendo-se na poeira como crianças que nunca deixarão de o ser: um eterno e inabalável acto de fé na humanidade no seu estado mais puro e virtuoso.
Escusado será dizer que filmar e sugerir tudo isto sem cair na ingenuidade, no ridículo e no mau-gosto (cumulativa ou disjuntivamente)  é coisa quase impossível de fazer. Esse tipo de feitos só está ao alcance dos maiores dos maiores e, como sabemos, Antonioni foi um deles.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

atalhos (2)

Até ao dia em que adoptamos a primeira pessoa e eu sou "eu" e tu és "tu". Existirá, então, um passado e um presente, e o futuro será novamente um atalho.

convite



Uma vez mais, o Cineclube da Faculdade de Direito da UP oferece uma sessão dupla, em espírito natalício, a todos os que vierem por bem, e com um lanche pelo meio. Dois filmes de luxo e um bolo de chocolate mais luxuoso ainda.
 
É esta terça-feira, às 18h, na sala 0.01. Entrada gratuita, com margem para derrapagens orçamentais.

Se eu fosse

Se Eu Fosse... (2012) é o título do novo álbum, composto exclusivamente por instrumentais, de Virtus. A minha crítica na rdb, as usual.
 
"O grande ponto de interrogação sempre residiu em saber se o dito hip-hop instrumental valia, por si só, como música, isto é, como género autónomo. E se esta dúvida pouco sentido faz no que respeita ao hip-hop instrumental mais experimental (o tal de Flying Lotus) – já que, aqui, de facto, há um organismo vivo que respira por si mesmo –, o certo é que, muitas das vezes, no hip-hop instrumental mais clássico (samples e loops), fica sempre aquela sensação de insatisfação, de que falta alguma coisa: então e o rap? Felizmente, não é isso que sentimos em Se Eu Fosse… (2012), o novo álbum de instrumentais de Virtus".

domingo, 2 de dezembro de 2012

Diversitates

Publiquei um artigo, intitulado "«M», de Memória", no vol. 4, n.º 2, pp. 34-40, da  Diversitates, uma revista académica internacional, de carácter interdisciplinar, cujo olhar se demora em temas como os direitos humanos, o pluralismo de valores, justiça e inclusão social.

O meu artigo arranca de um filme - M (1931), do Fritz Lang - e de uma estética cinematográfica - o expressionismo alemão -  para abordar temas caros às ditaduras do século XX: o controlo social, a repressão, a emergência de modelos de justiça privada e sua "psicologização" pelos indivíduos, etc.. Podem lê-lo mesmo aqui ao lado.

ERRATA
Na p. 37, deve ler-se:
"Note-se como os mendigos, esses improvisados mandatários contratados pelos mafiosos, dirigem  uma caça ao homem paralela à da polícia, o que representa  – novamente, mas agora sob outra perspectiva – a emergência de um sistema – paralelo ao do Estado, tido por ineficiente – de justiça privada, onde os cidadãos fazem justiça “pelas próprias mãos”, à boa maneira de Talião".

sábado, 1 de dezembro de 2012

who are we?

"Acting is going in, searching for yourself - everything else is bullshit. (...) Creating a character is not creating exactly, it is looking for yourself and being there. And when an actor gathers the point of being there, it doesn't matter what they are saying.
We [the audience] are so thirsty; it's the best position to be in - you're not directly involved, you can judge, evaluate, understand. But to be an actor - being there and watching yourself - nobody is in a perfect position to understand. Playing a criminal is not about trying to imagine how a criminal would be, it's about how you would commit murder. This was why I was happy to assume the mantle of Flaubert's famous quote about Madame Bovary, «C'est moi». There's also Pirandello's novel One, No One and One Hundred Thousand, about a character who discovers one day that the way he thinks about himself, his secret self, is radically different from the personas that everyone who knows him have constructed for him. This was the question: who are we?"

Cristi Puiu, em entrevista (uma das melhores que li nos últimos anos - e isto inclui todo o tipo de pessoas e respectivas idiossincrasias), a propósito do filme Aurora (2010), à Sight & Sound, December 2012, Volume 22, Issue 12.