Estava no supermercado quando uma criança começou a chorar copiosamente. A mãe, ao lado, diz-lhe: " Não chores, que vergonha! Não tens vergonha que as pessoas olhem para ti a chorar?!". Como é que é suposto que, mais tarde, não tenhamos vergonha de chorar quando nos dizem que "chorar faz bem"? Como é que é suposto que não associemos tal gesto a fraqueza, demérito, falha?
Da minha janela vejo o Bósforo todos os dias: divisões e correntes, agitações e marés. Tal como no homem, tal como no mundo.
segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016
domingo, 28 de fevereiro de 2016
quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016
the kids are all right
Os putos só têm dezoito anos mas já embarcam nestas nostalgias. Mas isso não é também ser puto? Sou suspeito, mas parece-me que a coisa ficou bem bonitinha.
França e Lucas no microfone (primeira e segunda partes, respectivamente) e o instrumental pedido de emprestado ao Virtus. O escritório que se vê no clip é o de casa dos meus pais, possivelmente o segundo lugar a seguir ao meu quarto em que mais hip-hop passei ao meu irmão. Na fotografia lá ao longe, no canto superior direito, está o Silvino, amigo de sempre dos meus pais, provavelmente o primeiro "ambientalista" em Portugal (há uma mítica fotografia dele que apareceu, à época, no Diário de Notícias, numa "manifestação" contra a energia nuclear organizada e protagonizada exclusivamente por ele mesmo na Avenida dos Aliados, em finais de 70/inícios de 80), a saltar em cima de um carro abandonado no meio dos montes deste país que ele e o meu pai se orgulham de ter calcorreado de lés a lés. Ele saltou mesmo aquela altura toda, não é montagem.
Bom, mas estava eu a dizer: "Crónica do Tempo".
quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016
terça-feira, 23 de fevereiro de 2016
Artes Entre As Letras #8
No último número do Artes Entre As Letras, escrevo sobre o novo (ou não assim tanto...) Tarantino e sobre o grande favorito ao Óscar de melhor filme e melhor actor (está tudo dito). Bons filmes!
*
Os
Oito Odiados (2015),
Quentin Tarantino ★★★
“No one said this job was supposed to be easy”, diz o
“Hangman” (Kurt Russell) ao Major Marquis Warren (Samuel L. Jackson), que lhe
responde: “Nobody said it's supposed to be that hard, either!”. É um diálogo
que se ajusta ao filme e que faz um ponto de situação sobre a obra de
Tarantino. Não se duvida de que o americano é um dos melhores e mais criativos
cineastas em actividade, alguém que domina por completo a linguagem e as
ferramentas cinematográficas. Reconhecer isto (ou precisamente por se reconhecer
isso) não invalida, porém, que devamos lançar um olhar desempoeirado sobre a
sua obra e surpreender uma repetição de fórmulas, tiques, poses, processos que,
sendo intrinsecamente meritórios, são, neste momento, isso mesmo: repetidos,
repisados, já-vistos.
Esta impressão de saturação tornou-se francamente visível, a nosso ver, com Django Libertado, atingindo, agora, a sua cristalização. Se é certo que o cinema de Tarantino sempre foi “político” num sentido genérico (o racismo, o sexismo, as armas, a violência da América, etc.), parece-nos, porém, que foi a partir do momento em que decidiu tratar assumidamente de questões políticas (e “fracturantes”) que o seu cinema – na origem, um gramofone das estórias e dos mitos da América –, pretendendo assumir uma certa gravidade, uma certa “consciência histórica” (mesmo que através do humor e da meta-narratividade), resvalou para a irrisão e para a superficialidade. A bem dizer, os melhores filmes de Tarantino (Cães Danados, Pulp Fiction, Jackie Brown, Kill Bill) continuam a ser aqueles que, não deixando de ser “políticos” no genérico sentido aludido, não possuem pretensões políticas ou históricas declaradas, com a grande excepção que é Sacanas Sem Lei, o qual, de facto, consegue juntar o melhor dos dois mundos.
Tarantino promete muito na primeira meia-hora do filme, dando tempo, “respiração” às personagens para trabalharem naquele dangerous ground (para evocar a brancura igualmente presente no filme de Nicholas Ray) coberto de neve algures no Wyoming, mas, assim que a diligência chega à retrosaria, tudo se volve no mesmo “jogo” de ases que Tarantino baralha para voltar a dar: os diálogos pejados de frases de efeito (mas que, espremidos, nenhum sumo dão, contra o pretendido pelo argumento), o re-contar da mesma história em flashback a partir de um ponto de vista subjectivamente distinto (tal e qual o dispositivo de Cães Danados, mas com a agravante, aqui, de a repetição sublinhar uma certa manipulação preguiçosa da acção, criando uma certa sensação de “batota” para o espectador), a surpresa “cénica” decisiva que vem de debaixo do chão (como acontecia numa das primeiras cenas de Sacanas Sem Lei), enfim, a estrutura huis clos em que um grupo de homens (e uma mulher, aliás, a melhor personagem do filme, interpretada por Jennifer Jason Leigh) fechado num espaço tenta descobrir quem é quem e fez o quê (whodunnit). Para rimar com o filme, diríamos que Tarantino prova do seu próprio “veneno”, mostrando-se incapaz de sair da sua zona de conforto, de um rasgo, de um sobressalto e, pior do que tudo, fazendo um filme bem menos divertido do que os seus anteriores (como é sabido, o “divertimento”, o “entertenimento” sempre foram, em Tarantino, marcas autorais de prestígio).
Nada disto, saliente-se, faz d’Os Oitos Odiados um mau filme e tomara que muitos cineastas e filmes americanos fossem “repetitivos” como Tarantino e este seu oitavo filme (a começar no manejamento da câmara, passando pela mise-en-scène e a acabar na direcção de actores, só para abreviar); no final, as quase três horas mais do que valem o bilhete, nem que seja para sair com a pulga atrás da orelha com o proto chapéu do Klux Klux Klan na cabeça do Cristo gelado dos primeiros planos (fomos só nós que reparámos?) ou com a Carrie-pele-vermelha (se há negros, brancos, mexicanos, nortistas e sulistas, porque não juntar índios ao melting pot?) a dançar com os pés suspensos, uma aproximação ao filme de terror que bem poderia constituir para Tarantino o indutor de um desejado galgar para terrenos menos familiares.
Esta impressão de saturação tornou-se francamente visível, a nosso ver, com Django Libertado, atingindo, agora, a sua cristalização. Se é certo que o cinema de Tarantino sempre foi “político” num sentido genérico (o racismo, o sexismo, as armas, a violência da América, etc.), parece-nos, porém, que foi a partir do momento em que decidiu tratar assumidamente de questões políticas (e “fracturantes”) que o seu cinema – na origem, um gramofone das estórias e dos mitos da América –, pretendendo assumir uma certa gravidade, uma certa “consciência histórica” (mesmo que através do humor e da meta-narratividade), resvalou para a irrisão e para a superficialidade. A bem dizer, os melhores filmes de Tarantino (Cães Danados, Pulp Fiction, Jackie Brown, Kill Bill) continuam a ser aqueles que, não deixando de ser “políticos” no genérico sentido aludido, não possuem pretensões políticas ou históricas declaradas, com a grande excepção que é Sacanas Sem Lei, o qual, de facto, consegue juntar o melhor dos dois mundos.
Tarantino promete muito na primeira meia-hora do filme, dando tempo, “respiração” às personagens para trabalharem naquele dangerous ground (para evocar a brancura igualmente presente no filme de Nicholas Ray) coberto de neve algures no Wyoming, mas, assim que a diligência chega à retrosaria, tudo se volve no mesmo “jogo” de ases que Tarantino baralha para voltar a dar: os diálogos pejados de frases de efeito (mas que, espremidos, nenhum sumo dão, contra o pretendido pelo argumento), o re-contar da mesma história em flashback a partir de um ponto de vista subjectivamente distinto (tal e qual o dispositivo de Cães Danados, mas com a agravante, aqui, de a repetição sublinhar uma certa manipulação preguiçosa da acção, criando uma certa sensação de “batota” para o espectador), a surpresa “cénica” decisiva que vem de debaixo do chão (como acontecia numa das primeiras cenas de Sacanas Sem Lei), enfim, a estrutura huis clos em que um grupo de homens (e uma mulher, aliás, a melhor personagem do filme, interpretada por Jennifer Jason Leigh) fechado num espaço tenta descobrir quem é quem e fez o quê (whodunnit). Para rimar com o filme, diríamos que Tarantino prova do seu próprio “veneno”, mostrando-se incapaz de sair da sua zona de conforto, de um rasgo, de um sobressalto e, pior do que tudo, fazendo um filme bem menos divertido do que os seus anteriores (como é sabido, o “divertimento”, o “entertenimento” sempre foram, em Tarantino, marcas autorais de prestígio).
Nada disto, saliente-se, faz d’Os Oitos Odiados um mau filme e tomara que muitos cineastas e filmes americanos fossem “repetitivos” como Tarantino e este seu oitavo filme (a começar no manejamento da câmara, passando pela mise-en-scène e a acabar na direcção de actores, só para abreviar); no final, as quase três horas mais do que valem o bilhete, nem que seja para sair com a pulga atrás da orelha com o proto chapéu do Klux Klux Klan na cabeça do Cristo gelado dos primeiros planos (fomos só nós que reparámos?) ou com a Carrie-pele-vermelha (se há negros, brancos, mexicanos, nortistas e sulistas, porque não juntar índios ao melting pot?) a dançar com os pés suspensos, uma aproximação ao filme de terror que bem poderia constituir para Tarantino o indutor de um desejado galgar para terrenos menos familiares.
O Renascido (2015), Alejandro González Iñarritu ★★
Há, atualmente, entre uma certa crítica, a tendência para
maltratar, por tudo e por nada, justa e injustamente, dois nomes: um é Paolo
Sorrentino, o outro é Iñarritu, que assina aqui mais uma candidatura aos
Óscares. Antes de mais, importa esclarecer que não pertencemos a esse clube e
que, como em tantas outras coisas, somos do que acreditam que "cada caso
(filme) é um caso (filme)” e que é à luz desse padrão que os filmes devem ser
apreciados e criticados.
Isto para dizer, portanto, que se Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) nos agradou sobremaneira (essa mesma crítica trucidou o filme, entre outros motivos, pelo seu “falso” plano-sequência – mas se o homem não quis filmar um plano-sequência tout court, qual é o problema? Com os diabos), estamos agora igualmente à vontade para sublinhar a banalidade do novo filme do mexicano, um pastelão esquecível sem rasgo nem vibração e alimentado apenas à base da espectacularidade com selo “baseado em factos verídicos” (para a fuga de um homem em condições altamente adversas, já existe um filme belíssimo e com a poesia que Iñarritu tenta mas não logra alcançar: chama-se Essential Killing – Matar para Viver e é do polaco Jerzy Skowlimoski).
A composição das personagens é nula ou perto disso e no lugar de Di Caprio podia estar, em boa verdade, qualquer outro actor, tal é a sua des-subjectivação psicológica e mesmo dramatúrgica (quase tudo se resume à demonstração do cumprimento com sucesso de uma “prova de esforço”). Que o filme seja o mais forte candidato ao Óscar de melhor filme e Di Caprio ao de melhor actor (ele que, sendo um dos melhores actores da sua geração, não é um actor maior, nem mesmo para os convencionais standards de Hollywod) só diz bem do estádio actual da academia americana.
Isto para dizer, portanto, que se Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) nos agradou sobremaneira (essa mesma crítica trucidou o filme, entre outros motivos, pelo seu “falso” plano-sequência – mas se o homem não quis filmar um plano-sequência tout court, qual é o problema? Com os diabos), estamos agora igualmente à vontade para sublinhar a banalidade do novo filme do mexicano, um pastelão esquecível sem rasgo nem vibração e alimentado apenas à base da espectacularidade com selo “baseado em factos verídicos” (para a fuga de um homem em condições altamente adversas, já existe um filme belíssimo e com a poesia que Iñarritu tenta mas não logra alcançar: chama-se Essential Killing – Matar para Viver e é do polaco Jerzy Skowlimoski).
A composição das personagens é nula ou perto disso e no lugar de Di Caprio podia estar, em boa verdade, qualquer outro actor, tal é a sua des-subjectivação psicológica e mesmo dramatúrgica (quase tudo se resume à demonstração do cumprimento com sucesso de uma “prova de esforço”). Que o filme seja o mais forte candidato ao Óscar de melhor filme e Di Caprio ao de melhor actor (ele que, sendo um dos melhores actores da sua geração, não é um actor maior, nem mesmo para os convencionais standards de Hollywod) só diz bem do estádio actual da academia americana.
segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016
Não há muito a dizer. Entrei no quarto, ele ainda não tinha chegado. A sensação de estar num espaço que não nos pertence e que, nem que seja só por isso, nos fascina: a organização do espaço, a disposição das coisas, a desarrumação, elementos da vida de alguém ali, em repouso, virgens, desprotegidos, silenciosos. Gosto muito de entrar no quarto quando ele não está e ficar por ali uns segundos a observar, a constatar como as nossas vidas se sobrepõem. Aproximei-me da mesa, um caderno aberto na última página escrita, de lado, de alguma forma mal tratado. Antes mesmo de sucumbir à curiosidade, coloquei-o na vertical. Virei uma página para trás. Uns versos rabiscados; em cima "MATILDE" era o título. Tremor imediato na mão direita e, acto contínuo, abro-a e fecho-a para que volte ao normal. Tive que repetir o exercício algumas vezes. Sabe lá ele disto. Sabe lá a Matilde.
sábado, 20 de fevereiro de 2016
sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016
Tryna fix your inner issues with a bad bitch / Didn't they tell you that I was a savage?
"Needed me", álbum Anti (2016). Rihanna.
quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016
Frames Portuguese Film Festival
O À pala de Walsh é, pelo terceiro ano consecutivo, parceiro do Frames Portuguese Film Festival, festival de cinema português na Suécia que se inicia já no próximo dia 22 de Fevereiro. Relativamente aos filmes que serão exibidos, tive o gosto de escrever a folha de sala para o José e Pilar (2010), de Miguel Gonçalves Mendes.
Todas as folhas de sala podem ser lidas aqui. Mais informações ali ao lado.
*
"Saramago’s relationship with Portugal was never peaceful, due to the numerous and infamous gestures of contempt taken in the 90s by the right-wing Government headed at that time by Cavaco Silva, the current President of the Republic, and which led to the author’s exile in Lanzarote. Saramago has always been known for his reserved and truculent personal style and his departure to the Spanish island – insularity which goes hand in hand with his personality – definitely took the spotlight away from his homeland’s public eye, which helped to create a certain myth around his persona. That is why Mendes’s documentary, an intimate testimony of Saramago’s life with his wife Pilar, is a true exercise of “unveiling” his last years (almost until his death in June 2010).
In a diaristic but serene tone (contrary to Saramago’s hectic agenda), José e Pilar (José and Pilar, 2010), a “road doc” organized in three acts, is an ambitious work, since it addresses a wide range of topics: the passage of time and the sense of urgency that old age brings, love and life as a couple, God and death, even the island of Lanzarote itself. Somehow, it turns out to be not just a documentary about Saramago, but by Saramago himself (as if he was, for a moment, the director of the film), in the sense that he takes advantage of the film to make personal notes of his daily life (to “document” it, precisely), as a kind of logbook. Exchanging views with Žižek, for whom “Fiction is more real than the reality of playing social roles”, since in the face of “the dialectic of «wearing the mask»”, “the only way to depict people beneath their protective mask of playing is, paradoxically, to make them directly play a role, i.e. to move into fiction”[1], we would say that, more than representing “reality”, what all documentary film should aspire to is the representation of the human element; and if the human – the “human being” itself, the behavior of “being human” – indeed implies, as we know, the use of masks in our daily lives, then what is actually real (but that is all, it does not mean necessarily more interesting) is that documental and composite final result made of transparency and opacity (the one from the “mask”), and not fiction. What is real, in fact, is the act of Saramago signing autographs when he no longer has the patience to do it (and not the impudent writer that by “removing the mask”, would tell fans to go away) or the act of Pilar asking a member of the audience to leave the room (and not to insult him or strike him as the first “inadmissible impulse”[2] would lead to).
Shot at a time when Saramago was already a figure of planetary dimension, it is also very interesting to note the way in which the film captures the zeitgeist of the 21st century writer (and the whole powerful “machine” behind him) as a media figure whose prominence as someone who interprets the world he lives in and being heard and respected for that (as were Sartre, Camus, among many) loses relevance whilst his media presence as a “pop star” soars. Saramago, for better or for worse, is perhaps one of the last models of the public intellectual armed with his own critical thoughts concerning society, even though he does not escape from his own “merchandisitation”: as Saramago himself laments, even when he has nothing further to say, he still has to give dozens of conferences and speeches, smile for the audience, sign books, emit soundbites.
If every film, as Jacques Rivette once pointed out, is a documentary of its own shooting, then Mendes’s documentary is one of a double meaning, since it focuses on two “shootings”, that is to say two creative processes, the cinematic and the literary one. Indeed, Mendes follows Saramago completing the writing of The Elephant’s Journey, the last book published in his lifetime, and also catches, in one of those happy miracles that sometimes happen during a shooting, the writer on the plane germinating the very initial idea for Cain, his definitive and essayistic novel inspired by and about biblical texts. In this respect, it is curious to note that as we hear so many times Saramago, a confirmed atheist, denying the existence of God (there are many and brilliant aphorisms from him in this matter), Mendes frames these passages with almost mystical shots of the cosmos and of a deserted and virginal Lanzarote (as if dating from the “beginning of the world”, with a great mist slowly crossing the hills), a movement between the Universal and the Particular evoking the mystery of life and of creation. It seems, as Žižek stressed about Andrei Tarkovsky’s work, like the film breathes in some sort of materialist theology, in the sense that the access to “the spiritual dimension [the mystery of creation] [can] only [be successful] via intense direct physical contact with the damp heaviness of earth (or stagnant water) [the earth of Lanzarote we see in the film]”[3]. But there is also the mystery of love, since if, as Saramago puts it, “The history of mankind is the history of our misunderstandings with god, for he doesn’t understand us, and we don’t understand him”, then the story of Saramago and Pilar is instead, as those same shots of the cosmos imply, about their complete understanding, about their almost predestined encounter somewhere written in the stars filmed by Mendes, because it is by looking up to them, as once Bogart said to Joan Leslie in Raoul Walsh’s High Sierra, that we “can almost feel the motion of the earth” (and we all know that he is not referring only, or not at all, to earth, but to love and the motion it causes in us). We may now, therefore, better understand Saramago’s dedication (“To Pilar, who had not yet been born and took so long in coming”) and his “cosmic” certainty that he and Pilar will “meet elsewhere”.
There is a defining close-up shot of the whole film: it’s that one in which we see the hands of Saramago and Pilar holding and caressing each other. The shot is long and accompanied by a musical and urgent crescendo whose peak coincides with the separation of their hands, since they are now needed for applauding a speech. The hands of Saramago and Pilar want to touch each other, indefinitely, but there is no time: they must move on to the next step, the next conference, the next plane. In this imperative of continuity, this close-up rhymes with the last shot at the airport, a “flying” shot, as if the film – and the life of Saramago, both biological and artistic – would never finish, flight to flight. And since Saramago’s biological life is so intertwined with his work, we would say without hesitation that he will always remain steady and vigorous like the quince tree of Victor Erice".
[1] Slavo Žižek, The Fight of Real Tears: Krzysztof Kieslowski between Theory and Post-Theory, British Film Institute, London, 2001, at p. 75.
In a diaristic but serene tone (contrary to Saramago’s hectic agenda), José e Pilar (José and Pilar, 2010), a “road doc” organized in three acts, is an ambitious work, since it addresses a wide range of topics: the passage of time and the sense of urgency that old age brings, love and life as a couple, God and death, even the island of Lanzarote itself. Somehow, it turns out to be not just a documentary about Saramago, but by Saramago himself (as if he was, for a moment, the director of the film), in the sense that he takes advantage of the film to make personal notes of his daily life (to “document” it, precisely), as a kind of logbook. Exchanging views with Žižek, for whom “Fiction is more real than the reality of playing social roles”, since in the face of “the dialectic of «wearing the mask»”, “the only way to depict people beneath their protective mask of playing is, paradoxically, to make them directly play a role, i.e. to move into fiction”[1], we would say that, more than representing “reality”, what all documentary film should aspire to is the representation of the human element; and if the human – the “human being” itself, the behavior of “being human” – indeed implies, as we know, the use of masks in our daily lives, then what is actually real (but that is all, it does not mean necessarily more interesting) is that documental and composite final result made of transparency and opacity (the one from the “mask”), and not fiction. What is real, in fact, is the act of Saramago signing autographs when he no longer has the patience to do it (and not the impudent writer that by “removing the mask”, would tell fans to go away) or the act of Pilar asking a member of the audience to leave the room (and not to insult him or strike him as the first “inadmissible impulse”[2] would lead to).
Shot at a time when Saramago was already a figure of planetary dimension, it is also very interesting to note the way in which the film captures the zeitgeist of the 21st century writer (and the whole powerful “machine” behind him) as a media figure whose prominence as someone who interprets the world he lives in and being heard and respected for that (as were Sartre, Camus, among many) loses relevance whilst his media presence as a “pop star” soars. Saramago, for better or for worse, is perhaps one of the last models of the public intellectual armed with his own critical thoughts concerning society, even though he does not escape from his own “merchandisitation”: as Saramago himself laments, even when he has nothing further to say, he still has to give dozens of conferences and speeches, smile for the audience, sign books, emit soundbites.
If every film, as Jacques Rivette once pointed out, is a documentary of its own shooting, then Mendes’s documentary is one of a double meaning, since it focuses on two “shootings”, that is to say two creative processes, the cinematic and the literary one. Indeed, Mendes follows Saramago completing the writing of The Elephant’s Journey, the last book published in his lifetime, and also catches, in one of those happy miracles that sometimes happen during a shooting, the writer on the plane germinating the very initial idea for Cain, his definitive and essayistic novel inspired by and about biblical texts. In this respect, it is curious to note that as we hear so many times Saramago, a confirmed atheist, denying the existence of God (there are many and brilliant aphorisms from him in this matter), Mendes frames these passages with almost mystical shots of the cosmos and of a deserted and virginal Lanzarote (as if dating from the “beginning of the world”, with a great mist slowly crossing the hills), a movement between the Universal and the Particular evoking the mystery of life and of creation. It seems, as Žižek stressed about Andrei Tarkovsky’s work, like the film breathes in some sort of materialist theology, in the sense that the access to “the spiritual dimension [the mystery of creation] [can] only [be successful] via intense direct physical contact with the damp heaviness of earth (or stagnant water) [the earth of Lanzarote we see in the film]”[3]. But there is also the mystery of love, since if, as Saramago puts it, “The history of mankind is the history of our misunderstandings with god, for he doesn’t understand us, and we don’t understand him”, then the story of Saramago and Pilar is instead, as those same shots of the cosmos imply, about their complete understanding, about their almost predestined encounter somewhere written in the stars filmed by Mendes, because it is by looking up to them, as once Bogart said to Joan Leslie in Raoul Walsh’s High Sierra, that we “can almost feel the motion of the earth” (and we all know that he is not referring only, or not at all, to earth, but to love and the motion it causes in us). We may now, therefore, better understand Saramago’s dedication (“To Pilar, who had not yet been born and took so long in coming”) and his “cosmic” certainty that he and Pilar will “meet elsewhere”.
There is a defining close-up shot of the whole film: it’s that one in which we see the hands of Saramago and Pilar holding and caressing each other. The shot is long and accompanied by a musical and urgent crescendo whose peak coincides with the separation of their hands, since they are now needed for applauding a speech. The hands of Saramago and Pilar want to touch each other, indefinitely, but there is no time: they must move on to the next step, the next conference, the next plane. In this imperative of continuity, this close-up rhymes with the last shot at the airport, a “flying” shot, as if the film – and the life of Saramago, both biological and artistic – would never finish, flight to flight. And since Saramago’s biological life is so intertwined with his work, we would say without hesitation that he will always remain steady and vigorous like the quince tree of Victor Erice".
[1] Slavo Žižek, The Fight of Real Tears: Krzysztof Kieslowski between Theory and Post-Theory, British Film Institute, London, 2001, at p. 75.
[2] Slavo Žižek, op. cit., at p. 74.
[3] Slavo Žižek, op. cit., at p. 102.
terça-feira, 16 de fevereiro de 2016
until somebody picks up
(Dark Places, 2015, Gilles Paquet-Brenner)
"... until somebody picks up... out of anger, curiosity or just fear".
segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016
quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016
Hoje:
O lindo cartaz é da minha querida amiga e designer Luísa Beato, cujo trabalho podem consultar aqui (clicar).
segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016
quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016
quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016
I WISH I HAD SOMEONE ELSE'S FACE #1: Um gelado acima das nossas possibilidades
Iniciei ontem uma crónica pessoal no À pala de Walsh, intitulada I WISH I HAD SOMEONE ELSE'S FACE, cuja inspiração vai beber a um filme do Lubitsch. O que pretendo com esta rubrica está no texto e, por isso, não vou maçar ninguém repetindo-me; digo apenas que, neste primeiro número, escrevo em torno da Marion Cotillard e do Dois dias, Uma Noite (2014) dos Dardenne, filme que me fugiu na altura em que estreou mas que vi recentemente no Cineclube do Porto. Uma obra-prima, provavelmente. Espero que gostem e me façam companhia nas próximas faces.
Para ler aqui (clicar).
Ele olha, então, também para o fora de campo, e ali ficam os dois, absortos, suspensos no tempo e no espaço, a olhar o pássaro que nós, espectadores, não vemos nunca, só ouvimos. Sandra quer sair do campo (o cinematográfico e o da sua vida) para o fora de campo (enquanto espaço alternativo, desconhecido, por isso de liberdade). Sandra quer ser um pássaro para poder sair de si, do seu corpo-“gaiola” (ela é o seu corpo e as suas circunstâncias): viver a vida como um pássaro, despreocupadamente, sem pensar se no próximo mês vai conseguir pôr pão na boca dos filhos, pagar os livros da escola, ter dinheiro para o passe do autocarro que a leva à fábrica. Não pensar, não contabilizar, não poupar, não desesperar, não sofrer. Ignorar, ser ignorante, absolutamente. Voar dali para fora, desaparecer nos céus, subir a toda a altitude, sobrevoar a cidade e avistar os problemas dos homens como ninharias na bigger picture que é o mundo.
[Excerto]
terça-feira, 2 de fevereiro de 2016
ReB #7 - Playlist Janeiro
A Playlist de Janeiro da equipa do Rimas e Batidas está aí. Dou uns toques com a "Room In Here" do Anderson .Paak. Leiam e oiçam todas as escolhas ali ao lado.
“Room in Here” talvez nem seja a melhor canção de Malibu, mas é a mais orelhuda e a que mais rapidamente se me colou ao coração enquanto escutava aquele que é já, em Janeiro, candidato a um dos álbuns do ano, algo que a imprensa em geral obviamente não reconhecerá, forçada que está a acompanhar os sound bites, por mais ocos e desinteressantes que sejam (os pares de Adidas que vendi, os óculos de sol que a minha mulher se dá ao luxo de perder, etc.), de Kanye West, Pusha T e afins (chegam a ser admiráveis as cambalhotas que os críticos fazem para elogiar ou, pelo menos, não depreciar uma canção como “FACTS”, um arrazoado patético sobre estatísticas que só interessam ao umbigo do seu autor – e digo isto com o disclaimer de que Kanye é e será sempre um dos meu rappers preferidos por tudo o que fez até 2010 inclusive e por algumas coisas, poucas, depois disso). Anderson .Paak é uma das melhores coisas que aconteceu ao hip hop nos últimos anos, condensando em si toda a tradição da música negra (do rap aos blues, da neo-soul ao R&B), mas também o rock e uma apurada sensibilidade pop (ecos do Underneath the Pine dos Toro y Moi), artista dono de uma voz tão melodiosa na canção quanto inteligente e ágil no rap, bem assim temperada por uma rouquidão muito, muito sedutora (por vezes a fazer lembrar o próprio Kendrick Lamar). Não satisfeito, .Paak é o letrista de todas as suas canções, e, contra aqueles que minimizam a importância da autoria letrista no hip hop, importa lembrar que o busílis da questão não está na “autenticidade” que essa autoria confere ou não, mas, bem mais importante, numa coisa bastante simples chamada talento e no papel fundamental que a letra (“barras”, na gíria própria do meio) teve desde sempre no hip hop enquanto expressão do indivíduo e sua singularidade (muitíssimo mais que tem noutros géneros, obviamente: a questão nem se põe no fado, por exemplo, onde é absolutamente normal e bem-vista a interpretação de poemas de terceiros). Drake e Dr. Dre (e como eu gosto deles) até poderão continuar a ser excelentes rappers, mas ninguém me consegue vender a ideia de que o facto de não serem eles, afinal, os autores daquilo que dizem e supostamente pensam – e que milhões de fãs reproduzem há uma data de anos (às vezes até como lemas de vida!), associando citações aos seus ídolos e à sua (pretensa) personalidade – não menoriza o seu trabalho. Voltando a “Room in Here”, as partes distintas de .Paak e de The Game operam uma curiosa divisão interna na canção: na primeira, o tom é mais abstracto, poético; na segunda, Game é raw como de costume, como se traduzindo em termos mais simples o que estava latente nos versos de .Paak. Em comum, a vontade de conquistar a mulher amada, de a convencer que há room (e o termo vale, aqui, quer como “espaço”, quer em termos mais literais…) para ela, de que basta ela querer… “Face like Mona Lisa / I’m just tryna be the wall to hang on…”
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