quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

tu com as tuas mãos negras contrariaste-me
não
leve a chávena verde para ele
não
tanto faz lídia
 
contrariaste-me
não
para ele não sentir que já não vive nesta casa
 
e eu fiquei ali transido, imóvel, o ruído do café escorrendo para a chávena a prolongar o meu desconforto, quer dizer, a minha gratidão, uma gotícula que não controlo e que momentaneamente me embacia o campo de visão do qual sairias não fossem esses dentes todos. o tomás era do porto, ficou do benfica, o meu pai deu-lhe uma camisola do porto, o pai dele aquilo que só os pais nos dão. do benfica, então.
 
(diz que quer que tu e o tomás vivam com ele, que podem ficar com o sótão todo, tonto até ao fim)
 
está aqui, toma
será que reparaste que era verde
saberás que te
vi que nos
vi
no filme do garrel nesse dia ao fim da tarde. também era o pai dele

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Crítica - "O Último Tango em Mafamude"



No Ípsilon a sexta passada, dançámos O Último Tango em Mafamude, do David Bruno, nome artístico quase tão bom como o do Gino Soccio (https://www.discogs.com/artist/75922-Gino-Soccio), com quem, diz-se por aí, colaborará no próximo disco.


"(...) Tudo num caldo assumidamente quasi-pimba (a artwork é a réplica adulterada de uma capa de Marante) e piroso, embora a ironia resida precisamente aí, nesse efeito paradoxal: ainda que involuntariamente, ainda que carregando na tecla da paródia, dB constrói ambientes melancólicos (de certo modo fadísticos, até), tocantes, enfim, genuinamente românticos".

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

eu reparei no sorriso envergonhado, constrangido, desajeitado, criança apanhada em ternurento delito, os olhos a fitar o chão, brilhavam
?
E ele do outro lado da rua a acenar, sim, era ele, que coincidência
 
ainda não sei exactamente o que pensas disto, aí bem dentro de ti, o que pensas mesmo. aquele sorriso, por exemplo, foi o quê, parecias uma miúda apaixonada... mas quando te perguntei, uns dias antes, se andavas em baixo por causa disto, disseste ah, não!, é por causa do trabalho, é por causa do trabalho que os olhos te brilham
?

sábado, 20 de janeiro de 2018

olha... lá vai a Paulinha

e
os homens alinhados de cara fechada
o caixão
entra no elevador

foi a primeira vez que te ouvi a voz a soçobrar.
devias estar com uns quantos comprimidos em
cima
falavas devagar
todo de preto, bombazine, pele e algodão, fibra
texturas que eu estranho, desculpa reparei nestas coisas
uns queixam-se de que estão sempre a pensar

    estou sempre a ver

mas disseste olha vamos dar um mergulho a Moledo e eu respondi que sim o meu irmão também

depois disse-te para irmos comer uns cachorrinhos ao lado de minha casa
sim
já tinhas ouvido falar, vou a pé lá ter

lá fora.

a minha Mãe quer mostrar-me o andar. pelo caminho, passamos por uma banca de rua com fumados, nozes, figos, hortaliças, coisas assim, é a senhora que cria isto tudo ou compra
crio, senhora, leve para si e para o seu marido
    marido!
e rimo-nos ou a senhora me acha nova ou o meu filho é que parece velho

cria mesmo? olhe que eu sei
crio, senhora
Mostre-me as suas mãos!

e ela mostrou-te as mãos, Mãe. tu olhaste-as, tocaste nelas, viste as mãos da Brazilina, tenho a certeza. Mãe, quase que chorava nesse momento, mas como estou sempre a ver em vez de pensar, não chorei, fotografei

e levaste um saco
que senhora simpática ouvi eu
lá longe

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

H.E.R. / H.I.M.


 
provavelmente, ninguém anda a ligar a isto, mas passa-se algo de extraordinário, da ordem do “bigger than life”, no mundo do R&B mais alternativo. Ela é, passe a redundância, H.E.R., uma miúda californiana fabulosa – e “fabulosa” é só mesmo pela sua voz, porque o rosto, o nome, enfim, a identidade, é coisa que nunca lhe conhecemos desde que apareceu com o “H.E.R. Volume 1” em 2016. 2017: ano do “Volume 2”, um dos melhores discos que ouvi recentemente (direitinho para os lugares cimeiros das minhas contas: http://obosforo.blogspot.pt/2017/12/2017-discos.html), um dos melhores discos de R&B dos últimos anos.
 
bom: entretanto, aparece este tipo vindo do nada. Ele é H.I.M., acrónimo para Her In Mind - ou melhor, H.E.R. In Mind. o seu rosto também é inacessível, uma incógnita. então: um tipo absolutamente obcecado com Ela e que faz do título de cada canção sua uma “resposta” às canções dela. doppelgänger. assim, onde Ela canta “Avenue”, Ele segue pelo “Boulevard”; onde Ela pede por “Lights On”, Ele sugere-lhe “Lights Out”; “I Won’t”? “I Will”, então; e por aí fora, sem excepção. quando Ela tem uma capa em que a sua silhueta surge como sombra sob tons laranja, Ele recorta o mesmo grafismo mas agora sob tons cinza. não é manobra de marketing; não é, também, como tanta gente desejou, um casal sumamente apaixonado que escreve cartas de amor dissimuladas através de canções; nem é, obviamente, mera coincidência cósmica (um tanto cómica, porém), embora o facto de “H.E.R.” servir de acrónimo para “Having Everything Revealed” torne tudo ainda melhor. e, sendo assim, as coisas ainda se tornam mais intricadas...: H.I.M. = H.E.R. In Mind = Having Everything Revealed In Mind...
 
pior! (ou melhor!): Ela já afirmou publicamente que não conhece Ele de lado nenhum (nem Ela nem ninguém, né), que até não acha piada nenhuma à brincadeira, diz que Ele se aproveitou da sua ideia original. d'Ele só silêncio absoluto. não deixa de ser compreensível: Ela tem uma carreira ainda tão curta que parece demasiado cedo para uma homenagem destas (mas se ela fosse uma cantora consagrada, o gesto já seria visto com genuíno afecto? provavelmente). Ela e Ele têm ambos identidades ocultas, mas aquilo que os coloca em contacto é precisamente isso, o mistério, a obsessão (d’Ele, nossa) por Ela, por todos aqueles que amamos e nos são distantes ou desconhecemos (embora possamos razoavelmente suspeitar que também Ela comece a alimentar uma obsessão por... Ele). Ele tem-na em mente, deseja assemelhar-se a Ela, Ele quer dar-lhe pistas sobre si - sabes quem sou? como sou? o que penso? -, o feitiço contra a feiticeira (há um belo odor a feitiçaria nisto tudo, aliás). la double vie d'Elle. ou… talvez esteja a dar-lhe pistas sobre Ela própria, como se, ao falar de si, falasse sobre Ela; como se, na posição de um observador externo, interpretasse mais fundo – descendo pelo subconsciente ao qual, por vezes, nós próprios não conseguimos aceder ou compreender na plenitude –, mais fidedignamente, as emoções, os impulsos, os gestos d’Ela. sim, Ela (ou Ele?) que vive duas vezes.
 
os aficionados discutem. que coisa bonita que Ele está a fazer; não, o tipo está só a tirar proveito de um trabalho alheio; não, não e não, eles são mesmo um casal ou, então, um antigo casal e ele, tendo ficado na mó de baixo, está a reagir ao desmoronamento; quero lá saber, adoro ouvi-los aos dois e isso para mim basta.
 
a obsessão prossegue dentro de momentos.

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

no elevador: olho em frente, o espelho dá-me ainda mais profundidade de campo do que o cinema. vejo e torno a ver, multiplicadas e sucessivamente mais longínquas, as formas e os trejeitos da mulher ao meu lado. sem que ela repare, sem que, por um momento, se aperceba de como já guardei na memória o modo como pisca os olhos no silêncio incómodo, o movimento ascendente do braço e a mão que puxa o cabelo por cima da orelha. ela (não) é personagem; eu, novamente, enfim, espectador.
quando o meu Pai estava perto da morte, fizeram-lhe uma navalhada monstruosa no peito. sempre que penso nesse ano, nesses dias próximos do meu aniversário, lembro-me do seu corpo, do seu peito branco, magro, os pelos depilados, e de um enorme bisturi tatuado, pontos carnudos e palpáveis que ficaram. antes de o meu Pai estar perto da morte, era o senhor do costume nas salas de cinema, talvez fosse o mais assíduo do teatro do campo alegre. depois da tatuagem, porém, abandonou-as, às salas,  ninguém mais o viu, com uma ou outra excepção em que o arrastei à força, no escuro.
 
talvez porque nas salas
nós os vivos
vemos os mortos
 
testemunhamos o nosso iminente destino
prevemo-nos
advinhamo-nos.
 
e a tua Mãe morreu, o filho da Inês nasceu, dizes que o filho do teu chefe nasceu esta manhã e tiveste a certeza, ligaram-te dois minutos depois com a notícia. três mulheres já, a de que ainda não falei perdeu o Pai, claro que vou e abracei-te e a tua Mãe também teve uma premonição em relação a mim como a outra rapariga que pressentiu ao telefone que antes da morte vem a vida. a rapariga do escritório parece que tem um tumor na cabeça, aguenta não aguenta mas ela acabou de ter uma filha como. é. possível. com um tumor na cabeça vive o meu melhor amigo há anos, foda-se e a Mãe que não o deixa sair de casa, ele não está morto pelo menos até o matarem e a doença não mata no plural. a Joana que conheci no brasil morreu, subitamente dizem, suicidou-se desconfiam muitos os pais até recusaram a autópsia e cremaram logo o corpo no dia seguinte. mas como Joana porquê em que momento pensaste que não te poderias confiar a ninguém, por favor que solidão absoluta e inesgotável foi essa sorrias tanto falavas-me com tanta serenidade no brasil, Joana que hemorragias que comprimidos foram esses será que te arrependeste no último momento quando correste para a sala Pai, não me estou a sentir bem, vou morrer e caíste, será. Joana como gostei de falar contigo enquanto caminhávamos pela noite fora a minha Mãe mais à frente eu a pensar será que ela repara, e pedi-lhe o teu número uns meses depois pedir o número à minha Mãe que vergonha mas foi assim. íamos tomar um chá, Joana, acho que era isso mas depois ias para inglaterra
e
já não consegui
mos
tomar o chá
ou café
ou o vinho que tu não bebias
ou bebias não tive tempo para
saber para saber se gostas
 
e no
meio
disto tudo eu
vou às salas de cinema
 
tenho medo de um dia deixar de ir, porquê
Pai
porque me mostraste
(já me mostraste coisas tão belas e nunca te perguntei porquê, desculpa
sou
injusto
e ingrato
sobretudo quando sou impaciente)
que isso
pode acontecer

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Consolação








For Ever Mozart, 1996, JLG

domingo, 14 de janeiro de 2018

Apresentação "O Cinema Não Morreu: Crítica e Cinefilia À pala de Walsh"



Depois da apresentação em Lisboa, na Cinemateca, teve lugar ontem a apresentação, com as presenças dos walshianos João Araújo, David Barros e môi-meme, do nosso primeiro livro-antologia "O Cinema Não Morreu: Crítica e Cinefilia À pala de Walsh", no Porto, na Livraria Flanêur. Foi bonito!

O livro encontra-se à venda por várias livrarias do país, nomeadamente, na Flanêur (Porto) e na Linha de Sombra (Lisboa, na Cinemateca). Tenho lá três textos da minha autoria. Boas leituras!


A Linha de Sombra edita o livro de antologia "O Cinema Não Morreu: Crítica e Cinefilia À pala de Walsh". Mais de 350 páginas, com cerca de 80 textos redigidos ao longo dos cinco anos de existência do site de cinema À pala de Walsh (estes textos serão um exclusivo do livro).
Estará representado nestas páginas um total de 22 walshianos, uma equipa de cinéfilos devotada à prática da escrita, pessoal e implicada, sobre o fenómeno do cinema.


Sobre o livro:

"É muito simples o que com esta introdução queremos dizer, cinco anos volvidos desde o primeiro post publicado a 15 de Julho de 2012, um texto a oito mãos e agora aqui publicado «O Que é a Crítica de Cinema?». Seja À pala de Walsh, à pala de João Bénard da Costa ou, muito simplesmente, à pala do cinema, o que esperamos é que depois deste livro — que reúne parte simbólica e importante da nossa produção ao longo destes anos —, este projecto possa continuar por muitos mais anos, mesmo depois de nós. À pala de uns e de outros que amam o cinema e sobretudo pensam, criam, a partir do que despertam em nós as imagens que nos habitam."

Introdução ao livro escrito pelos editores, Carlos Natálio, Luís Mendonça e Ricardo Vieira Lisboa.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

não é sempre a mesma cantiga


Momento fundamental em "Morrer Como Um Homem" (revi ontem no Cineclube do Porto, salve): tão emocionalmente vigoroso, tocante, como estimulante do ponto de vista narrativo, da composição da personagem e sua relação com as demais (o namorado, no caso) e, não menos importante, do som. Enfim: cinema, esse concentrado que os grandes cineastas sabem dispor num só plano (plano fixo, note-se, o que significa um “concentrado” de “segundo grau”: concentrar uma série de questões e nuances num espaço visual que está/é, por sua vez, concentrado).

Na viagem de carro que, depois de várias insistências de Tonia, decidem finalmente fazer – mas uma viagem perfeitamente idealizada ("sair de Lisboa”, sair deles mesmos, da sua existência quotidiana tristonha) e, por isso mesmo, condenada ao fracasso, abortada a meio da noite pelos fantasmas de Tonia (terá sido por ela pressentir que foi ali que o seu filho matou o colega militar? A anfitriã havia-lhe indicado, durante a tarde, o “túmulo ao soldado desconhecido” no quintal…) –, esta (Tonia) liga a rádio. “Sempre Ausente”, Variações. Rosário muda bruscamente a estação. Tonia vira-se para a janela e a câmara fixa-se no seu rosto. A janela está entreaberta, gotículas de chuva vão timidamente cobrindo o vidro, ela trauteia: “Que viagem é essa / Que te diriges em todos os sentidos / Andas em busca dos sonhos perdidos”. Plano fixo, plano picado, plano longo: Tonia cantando como todos cantamos em todas as viagens que fazemos (nem que seja só para dentro de nós), o olhar perdido na paisagem. Memórias, desejos de futuro e certezas do que já não vem misturando-se sem forma. A câmara mantém-se na sua disposição inicial, o som não: o ruído geral vai diminuindo progressivamente, o volume da voz de Tonia aumenta (sem justificação diegética, o efeito é cinemático, claro) até ao ponto de se ouvir quase em exclusivo (quase, nunca chega a acontecer a disrupção total).

Neste momento, o espectador já compreendeu: é para si (espectador) que Tonia canta (fala), é consigo que ela tenta uma derradeira possibilidade de diálogo, é com os olhos do espectador que os olhos dela, idealmente (como a viagem…), se cruzam. É um momento a sós com o Outro, entidade terceira, abstracta, perfeitamente personificada no anonimato do espectador. O mundo “lá fora” (fora do carro, fora de si mesma) é, na verdade, o dos que estão sentados na sala de cinema, os últimos em relação aos quais ela sente que ainda poderá encontrar compreensão. A janela do carro tem a mesma forma da tela através da qual o espectador a observa naquele momento, é um diálogo impossível “à janela”, como vizinhos da mesma solidão, Tonia e o espectador. Ver e ser visto, cinema e janelas indiscretas. Ou não tanto por aí. Na verdade, janelas discretas, secretas, de outra ordem de intimidade: não para nós, espectadores, espreitarmos, através delas, a “vida dos outros”, mas para esses outros, as personagens, ou seja, Tonia, poder, por iniciativa exclusivamente sua (acto livre, contrastante com o voyeurismo egoístico, “não-autorizado”, de quem espreita na sombra, i.é, o espectador), tentar comunicar connosco, encontrar um ponto de contacto (de abrigo, de conforto?) em nós.

“Diz-me que solidão é essa / Que te põe a falar sozinho / Diz-me que conversa / Estás a ter contigo”, canta ela, auto-conscientemente. Dizendo-nos, afinal: “Esta é a minha solidão, estou condenada a falar sozinha. Ouves-me, tu aí?”. Somos – espectadores - os seus últimos, únicos ouvintes, e o realizador o intermediário. É este, também, um momento em que o realizador acredita no cinema enquanto relação empática entre mortos (os da tela) e vivos (espectadores): ele crê verdadeiramente que nos possamos relacionar com Tonia e vice-versa, que nos possamos entregar um ao outro, que ambos confiem a intimidade ao seu interlocutor, por mais que não nos vejamos (só nos reflectimos mutuamente...), que não nos toquemos, que a janela continue a ser o que, na verdade, é: um ecrã. Nada disto existe, é a sua impossibilidade dramática/dramatúrgica, "épica", que permite achar (acreditar) que sim. A morte é "o possível do impossível" ou "o impossível do possível", efabulou Godard em "Notre Musique". 
“Cala a boca!”, grita Rosário, brutalmente. A frase possui um efeito maior (“meta-cinematográfico”): cala-te, ninguém te ouve, ninguém te ouvirá, “eles [nós, espectadores] não querem saber”. E o gesto de Tonia em reacção à ordem do namorado prolonga esse vaivém diegético: ela fecha, lentamente, a janela, definitivamente (se) encerrando assim – por imposição de um terceiro, não por ela – a possibilidade de um encontro entre si e os outros, entre ela e nós. Deixamos de a ouvir, deixamos de ouvir Variações.
“É sempre a mesma antiga” – aqui, nem por isso. Na verdade, é sempre a mesma falta dessa cantiga: de uma canção a dois, de um coro. Ou é assim, pelo menos, durante grande parte do filme (durante grande parte da vida de Tonia), até ao momento em que vemos Rosário a lavar Tonia na cama do hospital (como ela o tinha lavado na banheira de sua casa no início do filme): aí cantarão os dois, baixinho, e já não existirão “janelas de diálogo” com o exterior, porque desnecessárias. Eles estão, finalmente, no “mesmo quarto”, emocionalmente em comunhão, namorada e namorado, mãe e filho, pai e filho. Sim, voltar-se-á a ouvir uma canção cantada por uma voz apenas, mas não mais a de Tonia. É a de Rosário, na overdose-despedida em frente ao mar, numa das mais belas cenas da hist… bom, não é preciso repeti-lo. Mas esta voz isolada é já de outra ordem, diferente da de Tónia no carro, uma voz que sabe que, partindo, realizará, afinal, juntamente com as palavras dos presentes no funeral, os versos com que o filme termina. “Ai como eu quero viver no plural / Este singular pior que mal…”. Coralidade, por fim.

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

intermitências da morte


 
chego e fico imediatamente surpreendido com o corrupio de gente, bilhetes e moedas, tripass e onde é o multibanco mais próximo, só nos aliados, que chatice, uma azáfama tal que, ia eu para dar dois beijinhos à Cristina e congratulá-la por aquela programação impossível (parece que existem cinco ou seis salas no Trindade, mas não, são só duas), eis senão quando um senhor se coloca no meio de nós e, como é isso do tripass
 
por esta altura, eu ainda não me tinha apercebido completamente do que agora escrevo, só uns minutos mais tarde, quando entro numa sala que, longe de estar cheia, era como se estivesse. homens, mulheres, velhos, novos, estudantes, casais, amigos em grupo, tipos sozinhos, gente cuja aparência indicia proveniências relativamente diversas. e depois, bom, e depois o Garell preto e branco, aquele título-grafismo de um classicismo absoluto a invadir o ecrã no mais apaixonado dos silêncios (só no cinema, e no amor com alguém, o silêncio nos surge tão sagrado, magnetizante, tão, afinal, reconfortante – aliás, é também disto que fala “L'Amant D'un Jour”).
 
as salas de cinema morreram, e mortas continuarão; não, não tive um súbito momento de dúvida nostálgico – até porque, neste capítulo, não alimento nostalgias, a minha cinefilia fez-se praticamente toda assim, em salas defuntas, com excepção dos filmes que vi, pela mão dos meus pais, quando era miúdo (o Tati, o Chaplin, o Star Wars no Brasília com a minha tia Teresa em que, premonição das premonições, dormi o filme todo). para o bem e para o mal – para o bem do meu espírito demasiado nostálgico por natureza, para o mal dos filmes, que precisam de público para existirem –, vivo em paz com estas salas de ossadas, mas um momento como o de ontem deu-me o vislumbre de uma coisa outra, de um tempo que praticamente não vivi mas do qual oiço os mais velhos recordarem. intermitências da morte. o filme termina, ficamos uns quantos até ao fim dos créditos (a tempo de ver que o Houellebecq compôs a letra de uma canção), saio e eis o mesmo frenesim no hall, bilhetes para trás e para a frente, não abrandou, o que vais ver o Woody Allen, gostaste do Amante, sim, olha, no próximo sábado às cinco apresentamos o nosso livro, ai é, sim, se quiseres vir
 
chama-se
 
“O Cinema Não Morreu”
 

quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

À pala de Walsh - "La Libertad del Diabo"



No À pala de Walsh, escrevo sobre o documentário "La Libertad del Diablo", sobre as questões que o realizador Everardo González faz aos entrevistados e sobre as questões que, por sua vez, elas levantam (confusos?).

Gostar de escrever sobre um filme do qual não gostamos - ou, como dizia a Maria de Medeiros em entrevista (http://www.apaladewalsh.com/…/maria-de-medeiros-uma-obra-d…/) há uns tempos, “uma obra de arte existe pelo espaço de debate que cria”.

Link: http://www.apaladewalsh.com/2018/01/la-libertad-del-diablo-2017-de-everardo-gonzalez/

"A distância que vai entre isto e o 'Como se sentiu nesse momento?' que se ouve a jornalistas perante pessoas que acabam de perder tudo num incêndio ou nas cheias não é tão grande assim. Nesse momento, é como se a máscara que cobre a criança caísse, pois que aquilo que ela protege – mais do que a identidade, a sua dignidade – acaba de ser despido, desrespeitosamente despido. 'Le travelling de Kapo'; 'Les questions de La Libertad del Diablo' – e o problema é que, aqui, as 'questions', as perguntas, não são perguntas-de-liberdade ('Les questions de La Libertad'); pelo contrário, elas restringem, condicionam, impõem (para lá, obviamente, do natural “condicionamento” que qualquer pergunta implica) um rumo moral e emocional ao discurso e às ideias".

ípsilon - EP "Stracciatella & Braggadocio"

 
 
"Velha pergunta desde o princípio dos dias: onde é que tu te vias? Série M ou um CLA?"
 
No Ípsilon da semana passada, escrevo sobre "Stracciatella & Braggadocio", novo EP de Blasph, um dos meus rappers portugueses de eleição, um dos que ainda faz música em vez de "visualizações". "They Live by Night" - podia ser o título deste EP ou de qualquer outro dos seus álbuns, sempre em torno dos "Johnny Crime" (ou dos Bogarts, Cagneys, Mitchums, como digo em texto) desta vida.

Link: https://www.publico.pt/2018/01/01/culturaipsilon/critica/eis-o-rap-noir-de-blasph-1797225
 
 
"(...) é no film noir clássico de gangsters que encontramos o reflexo iconográfico da música de Blasph, contos de crime e castigo de homens (...) em busca de uma outra vida através de vias moralmente correctas mas irremediavelmente oprimidos pela sombra fatalista (o primeiro e jazzístico instrumental, autoria de dB, lança-nos logo para essas ruas inquietantemente esconsas). Faça-se este exercício ao som de “€uros Ramazzotti” (o amor e a sensualidade do Eros grego trocados pelo guito puro e duro): numa escuta superficial, o ouvinte mais precipitado só reterá o calão cru, ignorando o essencial, i.é, a profunda melancolia e desespero de um tipo dos bas-fonds que, pelo meio de esquemas duvidosos, não arranja saída para uma existência condenada (...)".

quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

IT'S A WOMAN









(The Shooting, 1966, Monte Hellman)