(LP Dirty Harriet, 1999, Rah Digga)
Da minha janela vejo o Bósforo todos os dias: divisões e correntes, agitações e marés. Tal como no homem, tal como no mundo.
terça-feira, 28 de abril de 2020
The Allegory
Demorou 20 anos para chegar ao seu pico de forma: em Book of Ryan e, agora, The Allegory, afirma-se como uma das grandes figuras do hip-hop americano, político e emocional, duro e pragmático. É Royce Da 5’9’’ a escrever a alegoria da caverna americana...
Um dos mais importantes rappers vivos, um dos grandes discos da música americana deste ano - entrevista com Royce Da 5'9'' no ípsilon da última sexta-feira.
Link: https://www.publico.pt/2020/04/27/culturaipsilon/entrevista/royce-59-neste-momento-focar-negros-america-1913317
sábado, 25 de abril de 2020
notes to self
I Vinti (1953, M. Antonioni) ***
La academia de las musas (2015, J. L. Guerín) ***
Barravento (1962, G. Rocha) ****
Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964, G. Rocha) ***
Safety Last! (1923, Fred C. Newmeyer e Sam Taylor) ****
The Last Temptation of Christ (1988, M. Scorsese) ***
Le Bonheur (1965, A. Varda) ****
terça-feira, 21 de abril de 2020
um disco voador
Trinta longos anos depois de um obscuro álbum que o tempo converteu em raridade de culto (ironicamente intitulado Right On Time), o homem a quem um dia terá cabido em sorte um encontro imediato de terceiro grau voltou aos discos. O mais recente, "Don't Forget It", revela-se um objecto musical não identificado: é funk, sim, mas a falar o idioma do espaço sideral.
Entrevista com Prophet no ípsilon da última sexta-feira
Link: https://www.publico.pt/2020/04/19/culturaipsilon/noticia/vida-ovnis-faz-funk-1912363
segunda-feira, 20 de abril de 2020
com os velhos nunca se sabe o que esperar. 32 anos de existência, a minha, em que os vi, conservadores de nascença, a respeitar exemplarmente a individualidade dos outros. ao contrário da esmagadora maioria daqueles que se dizem respeitadores das liberdades individuais mas que, à primeira estupefacção perante o que é diferente, censuram, cerceiam, reprimem, a estes sempre ouvi o silêncio absolutamente respeitoso por aquilo que não conhecem, não apreciam, detestam, até. nunca julgaram a filha pelo colchão alumiado por uma vela em que dormiu com o marido durante os primeiros meses do casamento (falei disto num filme…); nunca a julgaram por o ter celebrado num cartório seguido de almoço numa pizzaria. jamais se pronunciaram sobre o facto de os netos andarem vestidos assim ou assado, tatuagens ou brincos foram coisas que nunca lhes mereceram condenação ou sequer reparo. uma graçola, quando muito. jamais o gesto, mínimo que fosse, de correcção. do mesmo modo que, quando alguém insinua vontade de ir andando, haja ou não real motivo (não lhes interessa se há, não é da sua conta), eles serão os primeiros a dizer: vai, meu filho, vai à tua vida, tu é que sabes os teus horários. ao contrário da esmagadora maioria daqueles que se dizem respeitadores das liberdades individuais, estes dois velhos nunca estarão do lado dos hipócritas de que Jack Nicholson falava em Easy Rider: "«Oh, yeah, they're gonna talk to you, and talk to you, and talk to you about individual freedom. But if they see a free individual, it's gonna scare 'em«".
mas com os velhos nunca se sabe o que esperar e, talvez por causa dos efeitos que a pandemia inflige mesmo nos espíritos mais estóicos, será a primeira vez que os ouvirei dizer:
mas com os velhos nunca se sabe o que esperar e, talvez por causa dos efeitos que a pandemia inflige mesmo nos espíritos mais estóicos, será a primeira vez que os ouvirei dizer:
não vás já, fica mais um bocado.
não devo ter conseguido disfarçar a surpresa, pois logo a seguir me diz: a tua avó está lá em cima, já vem, eu estou aqui a fazer a lareira, isto já fica quente num instante.
domingo, 19 de abril de 2020
life
(LP The Circle, 2019, Eto)
"Every time a bell rings
An angel gets his hell wings
I don't want to survive, I want to live
I'm not bad, I'm just drawn that way
What's hard to get?
Streets taught me to be a better man
Ain't trying to do
An angel gets his hell wings
I don't want to survive, I want to live
I'm not bad, I'm just drawn that way
What's hard to get?
Streets taught me to be a better man
Ain't trying to do
Life"
sexta-feira, 17 de abril de 2020
sábado, 11 de abril de 2020
“Em
Fanon, o termo «Negro» advém mais de um mecanismo de atribuição do que se
autodesignação. Eu não sou negro, declara Fanon, nem sou um negro. Negro não é
o meu nome nem apelido, e menos ainda a minha essência e identidade. Sou um ser
humano, e isso basta. O Outro pode disputar em mim esta qualidade, mas nunca
conseguirá tirar a minha pele ontológica. O facto de ser escravo, de ser
colonizado, de ser alvo de discriminações ou de toda a espécie de praxes,
vexações, privações e humilhações, em virtude da cor da pele, não muda
absolutamente nada. Continuo a ser uma pessoa intrinsecamente humana, por mais
violentas que sejam as tentativas que pretendem fazer-me crer do contrário. Este
excedente ineliminável, que escapa a qualquer captura e fixação num estatuto
social e jurídico e que nem a própria condenação à morte conseguiria
interromper (…), nenhuma doutrina e nenhum dogma poderão apagá-lo. «Negro» é
portanto uma alcunha, a túnica com a qual outros me disfarçaram e na qual me
tentam encerrar. (…)
De
facto, o substantivo «Negro» tem vindo a preencher três funções essenciais na
modernidade – funções de atribuição, de interiorização e de subversão. Em
primeiro lugar, serviu para designar não seres humanos como todos os outros,
mas uma humanidade (e ainda) à parte, de um género particular; pessoas que,
pela sua aparência física, os seus usos e costumes e maneiras de ser no mundo,
pareciam ser o testemunho da diferença na sua crua manifestação – somática,
afectiva, estética e imaginária. (…)
Ao
longo da história, aconteceu que aqueles que foram ridiculamente contemplados
com esta alcunha (…) acabaram por habitá-la. Passou a ser de uso corrente, mas
isto fê-lo mais autêntico? Num gesto consciente de subversão, poético umas
vezes, outras, carnavalesco, muitos a terão endossado somente para melhorem
devolverem contra os seus inventores este patronímico humilhante. Decidiram
transformar este símbolo de abjecção num símbolo de beleza e de orgulho,
utilizado doravante como insígnia de um desafio radical e de um apelo ao
levantamento, à deserção e à insurreição. Enquanto categoria história, o Negro
não existe, portanto, fora destes três momentos: o momento da atribuição, o
momento de aceitação e de interiorização e o momento da reviravolta ou da
subversão (…).
(…) Situados à força num mundo à parte, reservando as suas qualidades de seres humanos para lá da submissão, aqueles que tinham sido adornados com o nome de «negro» produziram historicamente pensamentos muito seus e línguas específicas. Inventaram as suas próprias literaturas, músicas, maneiras de celebrar o culto divino. Foram obrigados a fundar as suas próprias instituições - escolas, jornais, organizações políticas, uma esfera pública que nada tem a ver com a esfera pública oficial. Em larga medida, o termo «Negro» assinala este estado de diminuição e de enclausuramento. É uma espécie de balão de oxigénio num contexto de opressão racial e, por vezes, de desumanização objectiva".
Crítica
da razão negra, Achille Mbembe (trad. Marta Lança)
em todo o lado essa palavra repetida
(Dans la ville de Sylvia, 2007, José Luis Guerín)
"A cidade está deserta
E alguém escreveu o teu nome
Em toda a parte
Nas casas, nos carros
Nas pontes, nas ruas
Em todo o lado essa palavra repetida"
E alguém escreveu o teu nome
Em toda a parte
Nas casas, nos carros
Nas pontes, nas ruas
Em todo o lado essa palavra repetida"
quinta-feira, 9 de abril de 2020
quarta-feira, 8 de abril de 2020
girl iz fire
Não é apenas um dos álbuns mais aguardados do jazz americano dos últimos anos: a “grande perseguição” a alta velocidade de Lakecia Benjamin a John e Alice Coltrane constitui-se também num objecto de um enorme amor e liberdade. Não há meta — a corrida é infinita.
Entrevista com Lakecia Benjamin no ípsilon da última sexta-feira
segunda-feira, 6 de abril de 2020
I Vinti
Três aspectos irrecusavelmente simbólicos num dos primeiros e menos conhecidos filmes de Antonioni: “I Vinti”.
Mesmo num filme supostamente menos dado a psicologismos (o relato introdutório em off sublinha o “realismo” pretendido para a análise do fenómeno social de uma juventude “rebel without a cause” tratada pelo filme), Antonioni constrói já arquitectonicamente o espaço físico e mental das personagens, quer no seu recorte dentro de paisagens amplas, desoladas, quer na utilização de cenários on-location, eles mesmos, “arquitectónicos”, tantas vezes de sentido inverso: ruínas, de um lado, obras de construção de edifícios, do outro. De resto, o ennui já está todo nas personagens principais dos primeiros dois episódios (no segundo deles, o jovem contrabandista da alta burguesia é filmado, na sua deambulação pelas ruas em modo morto-vivo à James Cagney no “Roaring Twenties”, como a “agulha no palheiro” das grandes fachadas da cidade). Já a personagem do episódio passado em Londres vale mais pela sua singularidade dentro da galeria de personagens antonionianas – trata-se quase de uma réplica do Bruno de “Strangers on a Train” (1951, dois anos antes de “I Vinti”), o que, logo por aqui, anula qualquer putativa recusa de psicologismos (mesmo que aqui de cariz moral, comum em Hitchcock, raro em Antonioni).
Depois, a reverência pelo jazz e pelos músicos negros que o criaram. Praticamente ausente dos seus primeiros filmes, o jazz só aparecerá com estrondo em La Notte (1961), sobretudo na sequência da dança dos dois bailarinos negros no clube nocturno. Antes disso, porém, já estava aqui – que não em som, mas em imagem.
Finalmente, talvez o aspecto mais curioso de todos (e que nunca tinha visto referido antes). “I Vinti” termina, no episódio filmado em Londres, com uma cena – totalmente desconexa (?) no contexto narrativo do filme –, de duas pessoas, num court de ténis, a trocarem bolas. Como terminará, 13 anos depois, em Londres também, naquela que é uma das mais emblemáticas cenas de todo o Antonioni, Blow-Up…
sábado, 4 de abril de 2020
notes to self
Portrait de la jeune fille en feu, C. Sciamma ***
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Le Soupirant (1962), Pierre Étaix ****
Tant qu'on a la santé (1966), Pierre Étaix ****
Yoyo (1965), Pierre Étaix *****
Le Grand Amour (1969), Pierre Étaix ***
Dans la ville de Sylvia (2007), José Luis Guerín ***
fair chance
(LP It Is What It Is, 2020)
“I think the existential dread [no novo álbum] set in when Mac [Miller] disappeared. (…) I was faced with a choice — to either follow suit or figure it out. And I guess this is me trying to figure it out”. - Thundercat em entrevista ao New York Times
"I keep holdin' you down
Even though you're not around
So hard to get over it
I've tried to get under it
Stuck in between, it is what it is
Bye, bye, for now
I keep holdin' you down
You do with me, it is what it is"
Even though you're not around
So hard to get over it
I've tried to get under it
Stuck in between, it is what it is
Bye, bye, for now
I keep holdin' you down
You do with me, it is what it is"
Taken from the album 'It Is What It Is', released 3 April on Brainfeeder: https://thundercat.lnk.to/it-is-what-it-isSo Subscribe: https://found.ee/thunde
NCCOM2V - edição Blu-Ray e visionamento na Filmin
O nosso filme Não Consegues Criar O Mundo Duas Vezes - exibido, entre outros lugares/festivais, no Porto, Lisboa, Nova Iorque, Taiwan - está aí para ajudar na quarentena e disponível para visionamento na Filmin. É só clicar: https://www.filmin.pt/filme/nao-consegues-criar-o-mundo-duas-vezes?fbclid=IwAR2TMqjhglJqtE4T4smIa1swJ6hZNQubbIF_zs-q42wlXkT5F7mBaWhi1Fk
Para quem quiser encomendar a edição Blu-Ray, ainda estamos a aceitar pedidos para: naoconseguescriaromundo2vezes@gmail.com
Teaser da edição Blu-Ray (design Eduardo Romão; música Pedro França): https://www.facebook.com/NaoConseguesCriarOMundoDuasVezes/videos/431438800945491/
Right on!
quarta-feira, 1 de abril de 2020
espairecer
(Le Soupirant, 1962, Pierre Étaix)
Nisto das quarentenas, estou como o outro: é preciso é espairecer… Rever velhos amigos, fazer novos, ver um filme, ler um livro, aprender a cozinhar, conhecer gentes de lugares outros (chineses, russos…), frequentar belas bibliotecas… Enfim, o que vos der na real gana. Parados é que não! Podem fazer tudo isto - palavra de honra! eu, por exemplo, fiz um novo amigo chamado Pierre - connosco aqui no À pala de Walsh: http://www.apaladewalsh.com/2020/03/fique-em-casa-e-faca-o-favor-de-ver-ler-ouvir-comer-e-viajar-pelo-cinema/
***
Para grandes males, grandes remédios, pois que, dizem os antigos, rir é o melhor remédio. Mesmo que, na tradição dos grandes cómicos do cinema, Pierre Étaix seja e, simultaneamente, não seja um “maluco do riso”. O humor é, pois claro, também um modo-de-olhar os homens nas suas obsessões e tiques, “taras e manias”, de um só golpe se podendo desmontar um comportamento perfeitamente “normal” da “vida em sociedade” e expô-lo na sua mais gloriosa patetice. Étaix fá-lo de uma tão graciosa e sofisticada forma que as referências que lhe são anteriores (Chaplin, Keaton, Tati) não passam disso mesmo, “referências”, jamais ofuscando o brilho e a singularidade da sua proposta. Em Le soupirant (O Apaixonado, 1962), uma das peças incluídas na colecção da Criterion Collection que a prudência aconselha a que se adquira e visione durante a quarentena, Pierre, jovem-adulto que vive quase-literalmente na lua (cfr. aquela fabulosa sequência inicial, um tratado de “artesanato” na con-fusão de escalas e cenários, novamente ensaiado na cena do barco em Yoyo), vítima de uma epidemia semelhante à nossa (o tédio), faz ouvidos moucos aos muito conservadores anseios dos pais para que se case.
Mais tarde, e depois de infrutíferas tentativas de engate nupcial, será vítima de uma outra epidemia, não menos semelhante à nossa: com os olhos colados na televisão da sala-de-estar de uma das suas pretendentes (soupirant, aqui, são uns e outros, o efeito é bumerangue), Pierre será acometido desse grande surto fantasmático que é a Imagem – e que é Stella (France Arnel), a chanteuse–femme fatale. La grande illusion: no princípio, era o fascínio. Sequência de antologia, uma das mais grandiosas já feitas acerca do poder e da sedução das imagens, da vertigem que o desejo que delas se desprende exerce em nós. Várias peripécias depois e eis Pierre no camarim de Stella pronto para, enfim, La grande désillusion: Stella é, imagine-se, mãe de um rapaz. Pierre pira-se enquanto o Diabo esfrega um olho. O jovem irreverente do início do filme é, afinal, tão conservador como os pais. À suivre…