"(...) é preciso pôr em questão a opinião adquirida, segundo a qual este sistema nos submerge debaixo de uma torrente de imagens em geral - e de imagens de horror em particular -, tornando-nos assim insensíveis à realidade banalizada desses horrores. Tal opinião é amplamente aceite porque confirma a tese tradicional que diz que o mal das imagens é afinal o seu número, a sua profusão que invade sem remédio o olhar fascinado e o cérebro amolecido da multidão dos consumidores democráticos de mercadorias e de imagens. Esta visão pretende ser crítica, mas encontra-se em perfeito acordo com o funcionamento do sistema. Porque os media dominantes estão longe de nos submergir com uma torrente de imagens testemunhando massacres, deslocações maciças de populações e outros horrores que constituem o presente do nosso planeta.
Bem pelo contrário, reduzem o número de tais imagens, tomam todo o cuidado para as seleccionar e dar-lhes uma determinada ordenação. Eliminam das imagens tudo o que pudesse exceder a simples ilustração redundante da respectiva significação. O que vemos, sobretudo nos ecrãs da informação televisiva, é o rosto dos governantes, dos especialistas e dos jornalistas que comentam as imagens, que dizem o que elas mostram e o que sobre elas devemos pensar. Se o horror se banalizou, não é porque dele vejamos demasiadas imagens. Não vemos no ecrã demasiados corpos em sofrimento. Mas vemos, isso sim, demasiados corpos sem nome, demasiados corpos incapazes de nos devolver o olhar que lhes dirigimos, corpos que são objecto de palavra sem terem eles mesmos direito à palavra. O sistema da Informação não funciona pelo excesso das imagens; funciona seleccionando os seres falantes e raciocinantes capazes de «desencriptar» o fluxo de informação que diz respeito às multidões anónimas. A política própria destas imagens consiste em ensinar-nos que não é qualquer um que é capaz de ver e falar. É esta lição que é confirmada muito servilmente por aqueles que pretendem criticar a explosão televisiva das imagens".
Jacques Rancière, O espectador emancipado, Orfeu Negro, 2010, pp. 141-143.