No último número do Artes Entre As Letras de 2015, escrevo sobre aquele que foi o filme que mais me encantou em 2015: Montanha, de João Salaviza. Os elogios, já advinharam, são muitos (mas justos, estou convicto, e o tempo tratará de o provar). A pequena divergência do elenco dos filmes que escolho por comparação com a selecção que fiz para o À pala de Walsh justifica-se pelo facto de, neste último, se ter definido a trilogia de Miguel Gomes como elegível apenas na sua globalidade.
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Montanha (2015), João Salaviza *****
Não
é apenas a chancela de um-dos-melhores-filmes-do-ano que Montanha, a primeira longa-metragem de Salaviza, partilha com Minha Mãe, de Moretti; neste último, Margherita Buy, a realizadora
em crise, descontente com os figurantes contratados mas informada pelo produtor
de que eles possuem efectivamente o aspecto dos operários actuais, responde “mas
este é o meu filme!”, outra forma de afirmar que a arte é também isso, a
reinvenção pessoal da realidade.
Ora, na estrondosa primeira longa-metragem de
Salaviza, os adolescentes também não usam telemóveis, iPads, portáteis e afins,
e, se isso parecer implausível a alguém, a resposta é a mesma: este é o filme
de Salaviza, dono de um cinema profundamente autoral no tratamento dos
temas, no manejamento da câmara, na sua impressionante força plástica. Pelo
olhar documental sobre os Olivais, Salaviza confessou-se um nostálgico da vida
de bairro, mas a ausência da tecnologia faz dele igualmente um nostálgico de um
tempo pré-digital em que os miúdos, como os do filme, não tinham senão – e já
era imenso – os amigos, os prédios e as ruas como possibilidades de brincadeira
e diversão, muito ironicamente, como possibilidades, afinal, de comunicação, da mais genuína e não a das
“redes sociais”. Neste sentido, neste assumido “banimento” da tecnologia, Montanha é um filme utópico, porque
empenhado em resgatar, em 2015, um tempo e um modo de vida que, para o bem e
para o mal, definitivamente já não existem, não sendo por acaso que, numa das
raras vezes em que a tecnologia faz uma aparição (o telefone), seja para
comunicar uma morte. Sim, a tecnologia também “mata” (e, quando não mata, aprisiona,
como a pulseira electrónica em Arena,
a curta-metragem que valeu a Palme d’Or
a Salaviza em Cannes 2009): mata a atenção, a concentração, a simples predisposição
para, por exemplo, contemplar demoradamente o horizonte da cidade em silêncio,
como o fazem David e Paulinha num magnífico plano.
A adolescência e a curta-metragem
eram, até esta parte (além de Arena, o
cineasta conta com as curtas Cerro Negro
e Rafa no currículo, esta última Urso
de Ouro na Berlinale 2012), o
território por excelência de Salaviza, enquanto etapa nebulosa do crescimento connosco
próprios e com os outros; Montanha é,
no formato longa, o culminar desse percurso, aqui através de um miúdo que, com
a mãe momentaneamente presente e o avô no hospital em estado muito débil, passa
os cálidos dias do seu Verão à deriva pelas ruas da zona. Num filme a “toda a
altura”, com as personagens frequentemente enquadradas (e que magníficos
enquadramentos…!) no topo de altos edifícios, os adultos estão praticamente
ausentes do filme, donde sai reforçada a ideia de um crescimento forçado destes
miúdos (como se, no plano de David e Rafa a andar de mota, este último estivesse
a ocupar o lugar maternal de Anna Magnani no plano muito semelhante de Mamma Roma, de Pasolini), de quem
podemos dizer, com muita propriedade, não terem “medo das alturas”. Nem das
alturas nem do escuro, habitando frequentemente as sombras, a penumbra, os
espaços e os tempos mortos; pelo contrário, há uma atracção – uma “vertigem”
(diferente de “ter vertigens”, coisa que estes miúdos, insista-se, não têm…) –
quase secreta, rebelde, por esses elementos (as alturas e o escuro), à qual as
histórias de suicídio que os miúdos contam só acrescentam uma certa pulsão
destruidora, por sua vez latente ao longo de todo o filme na atracção (mais uma)
pelo fogo e concretizada na gloriosa combustão da mota roubada.
Montanha condensa, na forma e na
substância, o cinema de Salaviza até esta parte, todo ele de uma escuridão perfeitamente
controlada, perfeitamente bela,
perfeitamente pictórica (e também cinematográfica, claro: o plano de David à
porta do prédio de Paulinha, à noite, é uma lição sobre expressionismo alemão).
A outro nível, e em tempos em que o retrato dos adolescentes impingido pelos
formatos telenovelescos e afins é de uma estupidez e pobreza confrangedoras,
importa sublinhar a justeza do olhar de Salaviza e, até, o respeito pelos miúdos
que filma (em David Mourato pode-se ter ganho um enorme actor, quiçá um novo
Pedro Hestnes), de que as duas “curtes” de David e Paulinha são exemplo
paradigmáticos, filmadas como só os maiores cineastas sabem filmar a
intimidade, o corpo, a descoberta. Montanha
é, quanto a nós, o filme do ano e Salaviza o mais fascinante realizador
português em actividade, a quem auguramos coisas grandiosas. Aguardemos.