Perante as graves e permanentes ameaças e ataques (para já, apenas verbais) à liberdade de imprensa e de expressão no Brasil, e, em particular, ao jornal Folha de S.Paulo, decidi fazer a assinatura do jornal. Proponho, a quem entender por bem, fazer o mesmo. Assim, além do acto simbólico através do qual ajudam à preservação da liberdade e da democracia no Brasil, passam também a beneficiar do acesso irrestrito a conteúdos de excelente nível (política, nacional e... internacional; cultura; investigação).
Em Portugal, e uma vez que, como já se percebeu, o fenómeno está aí ao virar da esquina, apelo também à assinatura do jornal Público, não porque lá escreva, mas porque muitos anos antes de o fazer, era já um leitor indefectível. O Público é, não preciso de o desenvolver, um dos mais importantes pilares do nosso jornalismo e, por conseguinte, da nossa democracia.
com excepção do hip-hop, que já vinha muito, muito de trás, foi quando entrei na faculdade que o meu mergulho a sério na música negra americana se iniciou – e não tanto por ecos de casa (os meus pais tinham muitos LP de música brasileira, zeca e sérgio godinho, música clássica, mas, de black music, só os obrigatórios: James Brown, um Barry White aqui e acolá, pouco mais) quanto, como acontece com tanta boa gente, pelo rastrear dos samples originais dos beats que eu amava. nesse salto para aquelas que continuam a ser, todos estes anos depois, as minhas águas predilectas, houve uma revista fundamental para eu aprender a poda: não apenas os músicos e os discos, mas, também, como só viria a perceber mais tarde, a escrever (sobre música; cinema são outros quinhentos).
essa revista chamava-se (chama-se?) Wax Poetics e, num dos primeiros exemplares que comprei na Princesinha, a papelaria em Cedofeita onde a passei a encomendar mensalmente (eles tinham encomendado uma vez, à experiência, um número e, por milagrosa coincidência, eu passei nessa semana à porta; provavelmente fascinado pelo rosto do Sly Stone na capa, relativamente ao qual não fazia a mais pálida ideia de quem se tratava, decidi comprar), descobri o Wah Wah Watson, que morreu na quarta-feira passada. um side-man, génio na sombra, que fez apenas um álbum a solo (“Elementary”, 76) e tocou em centenas (literalmente) de discos de outros grandes nomes, todos bem mais reconhecíveis ao ouvido do que ele. o seu desaparecimento, mais do que me entristecer, remete-me para esse tempo outro no qual me maravilhava com todos aqueles nomes, discos, capas (da WP e dos discos que cada número abordava), referências, comparações, caminho livre, escancarado, privilegiado, para a minha curiosidade (nunca percebi aquelas pessoas que mal-dizem os críticos pelo facto de os seus textos estarem cheios de “referências", embora sempre me tenham parecido bastante preguiçosas e choninhas; pela minha parte, dominando mais ou menos um assunto, elas sempre foram bem-vindas, era da maneira que ia descobrindo mais e mais).
um tempo, também, em que as revistas de música eram realmente valiosas para um leitor com olhos-de-pensar; para evitar a nostalgia fácil, fui ler outra vez o artigo (assinado por Kurt Iveson) sobre o Wah Wah Watson de cabo a rabo e, confirma-se, é mesmo uma excelente peça, dessas que desapareceram das Pitchforks, New Musical Expresses e afins. triste, bastante triste, tanto como, movido pelo ímpeto de me re-conectar à WP (que deixei de subscrever, à data, pelo preço e indisponibilidade de tempo para a ler devidamente), ficar a saber que o mais recente número (sobre o Prince, de uma ponta à outra) terá sido, muito provavelmente, o último. para contrariar o fatalismo, um artigo que sugere que eu estou absolutamente errado e que a coisa está de óptima saúde (acreditar, como diz a outra, é livre): https://www.theguardian.com/…/the-crisis-in-music-journalis…
se este meu post servir de alguma coisa, que seja, pelo menos, para convencer alguém a assinar (e a não permitir o assassinar) da Wax Poetics. sobre o Wah Wah Watson, que as palavras do Kurt Iveson lhe façam a merecida justiça (WP n.º 37, Oct/Nov, 2009):
“Watson’s career has bubbled away under the surface of industry fame like the bubbles that are one of his signature sounds. (…) Watson wants to talk about what he does, not what he’s done. As far as he’s concerned, he says, ‘I’m fifty-six, I’m having fun, and I haven’t even touched the surface of my creativity’. (…) As he puts it, ‘Old-school musicians have an identifiable sound… Plenty of musicians today, they can play great, but they don’t have a sound’. (…) It’s one thing to have a musical vocaculary, it’s another thing to know how to use it. This brings us to a third elemento of Wah Wah’s sound – his approach to execution. Finding just the right niche of his guitar, for him, is a matter of developing an overview of a track’s conceptual foundation. Playing the right part is not just a matter of technical ability; it’s also fundamentally about listening skills and arrangement. This is a key part of Wah Wah’s formula for successful musical collaboration, especially when it comes to funky music: ‘Listen to people like Jimmy Smith, James Brown – the funk is in the arrangements’. (…) Of course, being a great player is not enough to make a career as successful as Watsons’s. This brings us to element number five – business. Wah Wah summed up his strategy like this: ‘I’m the bone looking for the dog, not the dog looking for the bone’. To illustrate, Wah Wah gave me some dating tips, for free. ‘It’s like, if you see someone you like, don’t rush in there. You gotta be real casual, dog… That way, you’ll make her want to come to you. Are you with me?’”.
Sim, os fantasmas existem - infelizmente, não apenas os dos filmes, também os do fascismo. Que, afinal, não era só o histérico "fássismo" que alguns alardeavam e relativamente ao qual outros zombavam - e atenção que estes últimos são os mesmos que, agora, já se estão a posicionar estrategicamente. Assunção Cristas, Jaime Nogueira Pinto, Paulo Portas.
O mundo continua cheio de coisas lindas, como este filme - a partir de agora só vamos ter que lutar acrescidamente para que elas continuem a existir. Sem querer impor nada a absolutamente alma alguma (tenho alergia a superioridades morais, de esquerda ou de direita, dá-me igual), peço, a quem entender por bem, que pondere este apelo: o discurso de ódio está definitivamente a instalar-se porque preconceitos e ideias feitas até aqui adormecidos enquanto a democracia funcionou de forma mais ou menos normal (com todos os defeitos, e são muitos, que os regimes e governos dela aproveitaram ou produziram) estão agora a tomar conta de muitos em virtude de um clima tóxico que conjuga decepção (muitíssimo legítima), frustração (idem), ignorância, fake news e aproveitamento estratégico por parte de políticos populistas. Uma das formas possíveis e profícuas de combater este fenómeno (há outras, evidentemente, nomeadamente institucionais e não-institucionais, mas que não invalidam esta) é discuti-lo no dia-a-dia, nas nossas vidas quotidianas. Eu próprio sinto a necessidade (como, provavelmente, muitos outros), depois de uma adolescência/juventude em que me lançava a discutir por dá-cá-aquela-palha e de o ter deixado em absoluto de fazer por falta de paciência e sobretudo por necessidade de re-avaliação das minhas próprias posições sobre alguns assuntos, de voltar a debater seriamente, taco-a-taco, com quem lança, na rua, no café, no trabalho, ideias feitas sem pensar no que elas realmente significam e projectam. Fica o meu apelo, tão insignificante quanto sentido, para que, nos próximos tempos, sempre que presenciarem alguém dos vossos círculos a manifestar uma posição homofóbica, racista, xenófoba ou afim, o contrariem e discutam saudavelmente com ele, desmontando as falácias de raciocínio que levam a conclusões perigosíssimas. É, insisto, umas das formas possíveis – que, certamente, dará muito trabalho e exigirá paciência – de travarmos uma tragédia cujo sufixo “anunciada” depende de nós. Se, por outro lado, acharem que o que digo faz algum sentido, por favor sintam-se à vontade para o re-passar para outros grupos/amigos, ou escrevam-no pelas vossas palavras, tanto dá.
este verão foi, com toda a certeza, aquele com mais sol, areia e água salgada dos meus últimos 5, talvez 10 anos. nada, porém, que tenha sido planeado ou particularmente desejado - aconteceu ser assim, e aconteceu muito bem. pelo meio desta regeneração não premeditada, um filme que, em 2011, não apanhei em sala veio-me, a certa altura, intensamente à cabeça, e, quando voltei à pedra não erodida da cidade, corri a vê-lo. “Deste Lado da Ressureição”, de Joaquim Sapinho, é um fi...lme de que não gosto muito, mas no qual encontro, ainda assim, boas e generosas ideias, a maioria delas, porém, e é pena, toscamente concretizada – desde logo, essa coisa (crónica em alguns cineastas ou filmografias, mas absolutamente ausente do maravilhoso “Corte de Cabelo”, também de Sapinho) de dizer pouco ou nada sobre os elementos narrativos nucleares (o desaparecimento do pai, o sofrimento daquele filho e a fuga, o seu violento corte com a mãe – embora daí também emerja um mistério que não deixa de ser cativante, sobretudo pela hipótese edipiana e incestuosa) e, ao invés, de explicar, prolixamente, desnecessariamente (quando não, até, pateticamente), as camadas transcendentais ou metafísicas dessa mesma narrativa, e que ao leitor devem ser deixadas para reflexão/como sugestão (aquela confrangedora cena na praia entre o rapaz e o instrutor de surf, em que o segundo diz, perdoem-me a eventual imprecisão, que “a praia é a nossa religião e o mar o nosso Deus”). é um desequilíbrio que, de facto, não se compreende, mas que, ainda assim – insisto –, não me retira completamente o prazer na leitura do filme.
é disso e de outras coisas que falo no podcast do Daniel Reifferscheid, “Prestes A Ver”, para ouvir aí em baixo (e com quem, há muitos anos atrás, quando ele foi meu editor num dos primeiros sites para o qual escrevi, discuti, breve mas intensamente, hip-hop e “mensagem”, música e erudição, por aí fora).
entre outras razões pelas quais nunca esqueço o brasil da duas vezes em que lá estive (e apenas no rio de janeiro, pelo que a minha experiência é extraordinariamente pobre e redutora), uma é tão simples quanto isto: por ocasião da segunda ida, foi o único lugar, até hoje, em que fui “minoria” num grupo maioritariamente negro/mulato e homossexual. para um miúdo que nasceu e cresceu numa europa caucasiana e heterossexual, e numa cidade em que, até há pouco tempo, a presença de comunidades dos palop ou restante áfrica era tão reduzida (mil beijos, meus queridos lídia e celso), uma tal conjuntura não é - ou, felizmente, não era, passado – assim tão frequente de acontecer. essa semana no brasil foi também uma das mais felizes nos meus últimos anos. portanto, oupa, brasil, vamos lá virar esta porcaria. com a certeza de que, independentemente do que o dia de hoje ditar, teremos que arregaçar as mangas nos próximos tempos - no brasil, em portugal, na europa. não passarão – mas não passarão mesmo. haddad, democracia, brasil, outubro 2018.
"Tás a ver? A linha do horizonte A levitar, a evitar que o céu se desmonte? Foi seguindo essa linha que notei Que o mar na verdade é uma ponte Atravessei-a e fui a outros litorais E no começo eu reparei nas diferenças Mas com o tempo eu percebi E cada vez percebo mais como as vidas são iguais Muito mais do que se pensa, mudam as caras Mas todas podem ter as mesmas expressões Mudam as línguas, mas todas têm Suas palavras carinhosas e os seus calões As orações e os deuses também variam Mas o alívio que eles trazem vêm do mesmo lugar Mudam os olhos e tudo o que eles olham Mas quando olham Todos olham com o mesmo olhar"
"Acreditas que já tenho a capa do álbum feita há anos [desde 2011]? Só a capa do álbum é uma cena mágica que consegui fazer. (…) o álbum vai chamar-se “Beats Vol. 2 - Rap” e é um grande back to back comigo próprio. (…) Uma vez vi uma imagem de uma bacana deitada na cama, uma cena muito bonita, com ela a olhar para a câmara como se estivesse a olhar para alguém. (...) E a capa do álbum é assim. (…) Não entro na capa: é uma mulher..., uma beleza, eu sou a lente. E depois a questão é, se o hip hop fosse uma mulher, quem é que seria esta pessoa por quem estou fascinado? Quando era puto, nos anos 90, via as cenas da MTV e era fascinado por uma bacana do programa “The Grind”. Gravava tudo em VHS. Aquilo tinha uns dançarinos fixos e havia lá uma rapariga que era a minha paixão. E ela era perfeita para isto. Nem tinha plano B. E agora, como é que vou chegar a esta paixão que eu tinha? Fui investigar, porque sabia o nome dela. (…) eu era tão fã que fixei o nome dela depois de o apresentador lhe ter dado a oportunidade de fazer um shout out. O nome dela apareceu em rodapé e nunca mais me esqueci. Fui pesquisar e encontrei o Facebook dela. Esperei bué tempo e pensei: não posso ser eu, vai parecer estranho. Se calhar vou pôr alguém profissional a tratar disto. Ela demorou algum tempo a responder, mas respondeu. Eu paguei-lhe, ela veio para Portugal, para o meu quarto, o quarto onde eu via a cena e era apaixonado por ela, deitou-se na minha cama, a olhar para mim, e fotografámos. E a cena é que ela tem a idade do hip hop. Nasceu em 1974, é do Bronx, onde o hip hop nasceu. E para ela significou muito. Foi a última vez na minha vida em que senti magia".
No ípsilon da última sexta-feira, um principesco disco:
"'Piano and a Microphone 1983' cumpre, desde logo, uma importantíssima tarefa, a de reavivar no imaginário popular – sobretudo o das gerações mais novas, para quem Prince simbolizará, acima de tudo, uma postura e uma indumentária espampanantes, 'eighties' e 'fora-da-caixa' (e do armário, pois embora Prince nunca se tenha manifestado militantem...ente em assuntos LGBT, há uma irredutível dimensão queer, transgénero e não-normativa na sua obra) – o magnífico executante que Prince também era. Um 'omni-instrumentista' (na cover art de 'For You', o seu formidável LP de estreia em 1977, pode ler-se que ele toca os 27 instrumentos) que, ao contrário daquilo que lhe é mais imediatamente associado (o fulgor na guitarra), mostra aqui todo o seu brilhantismo ao piano, tão clássico quanto pop, tão solene como entertainer. E depois, claro está, a sua voz, elasticidade infinita, uma em que as questões de harmonia e afinação se eclipsam e o ouvinte se passa a concentrar, quase em exclusivo, na expressividade da interpretação, suas curvas emocionais e exuberantes derrapagens".