"Arte e vida misturavam-se, em Manoel de Oliveira?
No livro, tenho em epígrafe a resposta que ele deu à questão que uma jornalista brasileira uma vez lhe colocou. Disse-lhe: 'Você foi campeão de atletismo, de salto à vara, venceu inúmeras provas de automobilismo, foi piloto de automóveis; e depois faz filmes muito lentos'. Ao que ele respondeu: 'No automobilismo, o movimento é de vencer o tempo; no cinema, é o de reflectir sobre ele'. Por outro lado, ele em jovem vivia a vida de um Clark Gable, não precisava de filmar isso. Uma coisa é a vida, outra a arte. (...) os gregos pensavam o futuro como estando atrás das costas. Porquê atrás das costas? Porque só conseguimos ver o passado, o que já vimos. Não somos videntes para o futuro. Portanto, a nossa existência é assim: andamos de costas para o futuro, sempre a ver o passado. E na idade de Manoel de Oliveira há muito mais para trás do que à frente. E reparemos na velocidade a que as coisas passam [em 'Viagem ao Princípio do Mundo']: o carro da câmara vai numa velocidade, o outro carro vai na outra e parece que tudo passa mais rápido. Imaginamos, porque ainda não chegamos lá, que o passado seja assim à medida que nos vamos aproximando do limite do futuro. Ele faz depois um movimento de câmara absolutamente genial, onde aprofunda ou clarifica ainda mais este modo grego de ver. Na realidade, nós não andamos de costas. Andamos de frente mas à nossa frente só existe nevoeiro: vemos para trás, andamos para a frente e à frente há nevoeiro. O que ele faz é mudar a posição da câmara e passamos a ver o retrovisor a mostrar o que vemos atrás; à volta do retrovisor está tudo desfocado, é nevoeiro".
(Paulo José Miranda em entrevista à LER, no. 156, Inverno 2019-2020)