não sei se, como li há tempos sobre uma exposição em lisboa cuja referência não consigo agora encontrar, se ouvia melhor "quando se tinha tempo para ouvir música" (nao confundir com ouvir "melhor música"…). o impulso nostálgico é irreprimível. com a pandemia, passámos decididamente a ter mais tempo e, porém, tenho dúvidas sobre se o passámos a fazer "melhor". sei, pelo menos, que o espírito de descoberta, de adentrar pelo desconhecido, já teve inegavelmente outro sabor - desde logo, porque ele implicava uma relação com o exterior, fora de nós, de casa, do nosso computador. obrigava a sair à rua, estávamos unicamente à nossa mercê numa loja, num bar, numa discoteca a ouvir música que desconhecíamos, a tactear capas de CD e vinil, não nos podíamos valer do conforto do rato do computador. nem sequer foi assim há tanto tempo, mas parece já, contudo, outra vida. 15 anos atrás e ainda era possível esse maravilhamento silencioso, anónimo - numa inesquecível estadia em barcelona onde ficámos hospedados no quarto de uma espanhola conhecida de uma amiga portuguesa (nunca chegámos a conhecer a Irene!, um nome e uma fotografia apenas a quem deixamos a nossa mais esforçada retribuição), ao visitar uma loja de discos, vêm-me parar às mãos os discos de Frank T, histórico 'rapero' da arqui-rival Madrid (traria comigo "Los Pájaros No Pueden Vivir En El Agua Porque No Son Peces", "Frankattack" e "90 Kilos"). o hip-hop ainda não estava em todo o lado e, apesar de os canais de partilha e divulgação serem então incomparavelmente menores (ou talvez por causa disso), era muito mais idiossincrático, as particularidades de um país e suas regiões sobressaíam imediatamente (sabíamos menos, a informação não transbordava; saboreávamos mais). outra felicidade dessa tarde: os discos que vieram para o porto da dupla holandesa Pete Philly and Perquisite, e que viria a tocar, muitos anos mais tarde, num programa de rádio que tive por um breve período...
Da minha janela vejo o Bósforo todos os dias: divisões e correntes, agitações e marés. Tal como no homem, tal como no mundo.
sexta-feira, 30 de julho de 2021
sexta-feira, 23 de julho de 2021
terça-feira, 20 de julho de 2021
Fuck your ethnicity
sexta-feira, 16 de julho de 2021
while you see a chance
"The song has often been regarded as an inspirational song, but one of the lines says, ‘While you see a chance take it, find romance, fake it’, which seems negative, Jennings explained, “Well the next line explains it: ‘Because it’s all on you.’ There’s an old English expression called ‘Fake it till you make it.’ If you don’t have romance in your life, meaning in the broader sense, really, something to make life interesting, just imagine it until it’s there". (fonte: While You See A Chance (Steve Winwood) – Jon Kutner)
terça-feira, 13 de julho de 2021
ninguém sabe o que ele diz
sexta-feira, 9 de julho de 2021
quinta-feira, 8 de julho de 2021
quarta-feira, 7 de julho de 2021
notes to self
Higiene Social *
Prazer, Camaradas! **
A Quiet Place **
Miss Marx **
O Movimento das Coisas **
O Último Banho **
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Days of Being Wild (1990) ****
Anna (1967) ***
Ladri di Biciclette (1948) ****
Beau Travail (1999) ***
O Passo Suspenso da Cegonha (1991) *****
Timbuktu (2014) ****
Se As Montanhas Se Afastam (2015) ***
segunda-feira, 5 de julho de 2021
25 anos FDUP e o mundo em três décadas: o fim da História que nunca chegou
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Areia e aprumo
por: João Sousa Cardoso
Timbuktu do cineasta mauritano Abderrahmane Sissako (2014) abre com o travelling mudo de um antílope fêmea que foge nas areias do deserto e encerra com o da pequena Toya, a criança agora órfã, a correr, frontalmente, na nossa direção. Ambas as sequências enunciam o fundamento do terrorismo, que resumidamente é o domínio pelo medo, a perseguição incessante, a ameaça da morte desferida a qualquer momento.
O filme, rodado na República Islâmica da Mauritânia, numa co-produção com França, estabelece a justa distinção entre o Al-Corão, Alá e o Islamismo do oportunismo sanguinário das fações radicalizadas, mesmo que a história das civilizações sempre tenha um avesso de barbárie, como lembra Walter Benjamin. E talvez, por este motivo, o filme evoca uma das cidades culturalmente mais desenvolvidas do Mali. Em Timbuktu encontra-se sediada a prestigiada universidade corânica de Sancoré que desempenhou um papel capital na islamização da África Ocidental; e personagens como Amade Baba – um dos mais brilhantes estudantes e mestre da universidade de Sancoré, escritor, erudito e político medieval, considerado o mujjadid (a encarnação da religião) do século XVI, terminando os seus dias no exílio, em Marrocos – são presenças vivas da história do Sudão ainda hoje celebradas; além da admirável arquitetura em Timbuktu, feita de argila, que tem vindo a sofrer com o Harmatão, o vento – bruma seca, como lhe chamam em Cabo Verde - carregado de poeira e areias do Sahara. Timbuktu, foi, durante séculos, habitada por muçulmanos, cristãos e judeus transformando-se num centro cosmopolita, cidade assente na cohanitação multicultural, exemplo do entendimento étnico e religioso.
Antes de mais, o filme de Abderrahmane Sissako examina subtilmente as relações antropológicas e religa os fenómenos entre si, expondo os nexos, os contextos, as contradições sociais, as subjetividades em que participa o fundamentalismo religioso e o fenómeno terrorista. Os jihadistas que ocupam a cidade e impõem a "xaria" - um código rígido de comportamentos e interditos à população local - sustentando todas as decisões no Islão e no poder de que se afirmam investidos por Alá, são aqui tratadas como personagens na sua individualidade, nas suas aspirações e nos seus limites. A coloração chaplinesca do jihadista que aprende a conduzir uma pickup são disso um divertido exemplo; ou, na belíssima sequência do tufo de erva entre as dunas avistado pelo mesmo jihadista encantado pelo encontro com Satima, a sublimação do desejo recalcado com uma patética rajada de metralhadora sobre o vazio da paisagem.
Timbuktu nunca escolhe a via da esquematização ou do maniqueísmo e tratando da violência armada, da humilhação de um povo ocupado pela brutalidade de uma milícia, observa sobretudo as questões transculturais das paixões, da justiça e da morte; a linhagem de sangue, o direito à terra, a propriedade, os limites da lei e a dignidade cultural; numa meditação sobre o espaço de vida que resta entre o discernimento e a selvajaria. Assim, o imã explica aos jihadistas que na mesquita devemos descalçar-nos e usar a cabeça; Samita lembra a Kidane que usava uma arma antes de ter uma filha; Kidane, encarcerado, quer compreender as razões do amigo de infância entretanto radicalizado, a quem reconhece pelo olhar.
Este filme sublinha particularmente a importância das mulheres nos movimentos de resistência cultural e política: a primeira vendedora de peixe que se recua a calçar luvas e oferece a faca, estendendo os pulsos; Satima que lava os cabelos e se recusa a cobri-los (“ela tem muita força interior” lembra o aprendiz ao experimentado jihadista) como no final salta para uma mota para defender o marido condenado à morte; a feiticeira e a sua gargalhada que encarna a sábia, a pária e a maldita, em contacto com saberes de uma ordem que afronta a violência armada com o espetáculo do seu teatro e com ela negoceia para a educar (o jihadista a quem ofereceu um amuleto de trapos, achando-se só, dançará, belo, potente, os pés nús a baterem na areia... tomado de uma memória cultural anterior às armas que transporta consigo); ou, por último, a mulher sentenciada com 40 chicotadas que, na execução da sentença, enquanto chora canta. O canto, a música e a dança vão irrompendo no filme, aliás, como forças de ligação social contra os rompimentos da violência. E a extraordinária rêverie da partida de futebol com uma cabra que cruza o campo enquanto os jogadores correm atrás de uma bola imaginária - posto que como a música, o canto e a dança, o desporto é proibido pela “xária” - lembra, mais do que a mímica do jogo de ténis em Blow Up de Michaelangelo Antonioni, sobretudo do onirismo das competições desportivas em A Missa Acabou ou Habemus Papam de Nanni Moretti, na figuração da alegria dos corpos, coletivamente reencontrada, vencendo a estrita secura das regras e do compêndio ideológico.
Ao longo do filme, as figuras emergem e desaparecem nas dunas como os elementos vegetais brotam da terra ou o gado submerge nas águas do rio o que desencadeará o acidente com as redes do pescador. Será a primeira morte do filme, a de uma vaca chamada GPS, a que se seguirão outras, com uma notável economia expressiva, nas águas ou na areia, acidentais ou assassinas (como o casal condenado por envolvimento sexual fora do casamento, enterrado até à cabeça e apedrejado até à morte).
Não conheço a Mauritânia e ao Mali só o avistei da fronteira, na região de Kédougou, nos confins orientais do Senegal. Ao ver este filme, lembrei-me da vitalidade das aldeias do Senegal, da importância das crianças, da coabitação entre o humano, os animais e a antiguidade das árvores, da elegância ancestral das mulheres nas ruas e nos mercados, vestidas de panejamentos e turbantes que impressionaram Matisse, como uma aristocracia que não esqueceu o aprumo que se deve; da sabedoria que alia os vivos e os mortos e a todos integra na vida ritual da comunidade; e como sociedades na história global, estas sociedades do centro-africano guardam marcas evidentes do colonialismo europeu (francês na história do Senegal, do Mali e da Mauritânia, ligação que a economia e a língua perpetuam por via da cooperação e do tráfico de imaginários como no filme os jihadista discutem Zidane e a seleção francesa no mundial de futebol), sincretismos culturais e apropriações surpreendentes – ao nosso olhar de ocidentais – com um vibrante sentido estético e uma relação constante com a transcendência. O plano de Toya sentada nas areias do deserto, erguendo o telemóvel contra o céu e o sol, procurando - num gesto arquetípico – sinal de rede, devolve-nos às nossas próprias relações enfeitiçadas com os objetos e o mundo. E quando, no final, Toya corre para nós, devolve-nos à nossa responsabilidade.