domingo, 30 de dezembro de 2012

só um capricho


La Baie des Anges (1963), Jacques Demy.

Há uma cena, em La Baie des Anges, que define, de um só jorro, toda a personagem de Jackie (Jeanne Moreau, femme fatale platinada, bela-decadente até aos ossos - permitam-me a remissão quiçá despropositada): após uma tarde em que, juntamente com Jean (Claude Mann), sai endinheirada do casino, diz-lhe, num desejo hollywodesco próprio de uma star que nunca foi (e é sabida a admiração de Demy pelo firmamento da indústria cinematográfica americana, circunstância que a escolha do nome "Jackie", de algum modo, indicia), querer jantar num sítio caro, com boa comida, música ao vivo e vista para o mar. O dinheiro - ou o vício, o do jogo, que o gera - assim o permite. Terminado o jantar, e num ímpeto que faz das mulheres belas seres capazes de tudo poderem, pede a Jean que a acompanhe num passo de dança, o que ele, num primeiro momento, recusa (a eterna desculpa masculina da "falta de jeito"), acabando, depois, por ceder perante a insistência da volúpia feita mulher que tem pela frente. Dançam - mas a dança nem um minuto dura. É um instante de graça, com o mar de Nice ali tão perto (cujo ruído e cheiro, se não sentimos, pressentimos), mas não mais do que isso, um instante: Jackie desiste (farta-se, entedia-se) e senta-se novamente, estouvada, já de copo na mão. Surpreendido com tão súbita paragem, com tão súbita mudança de humor, Jean pergunta-lhe a razão para, afinal, ter querido dançar. Com a mesma leveza com que acabara de se mover sob a ponta dos pés ao som da música, Jackie sorri e, despreocupadamente, passando-lhe a mão pelo rosto, diz-lhe: "Foi só um capricho". Touché: o tédio, a desolação, a permanente insatisfação na ânsia de tudo querer, a ausência de sentido para alguém que vive numa ordem social em que não se encaixa, a efemeridade das coisas (o que há de mais efémero do que o dinheiro que se ganha num casino e o bem-estar que ele proporciona?), tudo o que esta mulher carrega desvela-se, assim, de chofre, num misto de delicadeza, violência e honestidade (e humor, já agora).

Depois, o Demy acaba o filme daquela maneira e tudo o que fazia de Jackie este fascinante ser-à-deriva desvanece-se, numa  inusitada e incompreensível demonstração de incoerência. O mesmo é dizer que, com esse final, a personagem de Jackie perde todo o interesse, justamente porque se entrega - incompreensivelmente, insista-se - a uma ordem a que não pertence, cuja natureza jamais se imaginaria poder enquadrar-se com a sua. Jackie interessa-nos (atrai-nos) por ser como é: desalinhada, infantil, docemente "fora-da-lei". Quando Demy fecha o filme, Jackie deixa de ser uma criatura de "outro" mundo e passa a ser do "nosso" - infinitamente menos caótico e, por isso, menos apaixonante também.

sábado, 29 de dezembro de 2012

tácticas de sobrevivência


"Survival tactics" (c/ Capital STEEZ), EP 1999 (2012). Joey Bada$$.

Vamos precisar muito disto para o ano que aí vem: survival tactics. De resto, o Joey Bada$$, um puto de Brooklyn com apenas 17 anos, é só a melhor coisa que aconteceu ao hip-hop nos últimos 10 anos. Bom 2013.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

um complexo com um nome grego qualquer

Mulheres cujas conversas ao telefone com os namorados não se distinguem daquelas que as mães - certas mães, vá - têm com um filho de 8 anos (tom, afectação, expressões faciais, etc.).

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

conto de Natal

Aos meus olhos, sempre foi uma mulher peculiar. Por exemplo, na madrugada de dia 25, perguntei-lhe, ao telefone, como havia sido o Natal. Respondeu-me: "Estupendo". Estupendo.

domingo, 23 de dezembro de 2012

Garbo


Rainha Cristina (1933), Rouben Mamoulian.

"Garbo pertence ainda a essa fase do cinema em que a percepção do rosto humano lançava a maior perturbação no meio das multidões, em que as pessoas se sentiam literalmente perdidas numa imagem humana como num filtro, em que o rosto constituía uma espécie de estado absoluto da carne, que não podia ser atingido nem abandonado.
(...)
Trata-se, indubitavelmente, de um admirável rosto-objecto; na Rainha Cristina (...), a caracterização tem a espessura de uma camada de neve, como se fosse uma máscara; não é um rosto pintado, é um rosto de gesso, defendido pela superfície da cor e não pelas suas linhas; por sobre toda esta neve, ao mesmo tempo frágil e compacta, só os olhos, negros como uma polpa bizarra, mas de maneira nenhuma expressivos, são como duas nódoas pouco trémulas.
(...).
Ora, a tentação da máscara total (a máscara antiga, por exemplo) implica talvez não tanto o tema do oculto (caso das mascarilhas italianas) como o de um arquétipo do rosto humano. Garbo dava a ver uma espécie de ideia platónica da criatura, e é isso que explica que o seu rosto seja quase assexuado, sem todavia ser ambíguo. (...) O seu apelido de Divina visava, sem dúvida, menos a expressão de um estado superlativo da beleza do que a essência da pessoa corpórea, caída de um céu em que as coisas são criadas e acabadas nas claridades.
(...)
Enquanto momento de transição, o rosto da Garbo concilia duas idades iconográficas, assegura a passagem do terror ao encanto. Como se sabe, encontramo-nos hoje no outro pólo desta evolução: o rosto de Audrey Hepburn, por exemplo, é individualizado, não só pela sua temática particular (a mulher infantil, a mulher felina), mas também pela sua própria pessoa, por uma especificação quase única do rosto, que nada mais tem de essencial, mas é constituído por uma complexidade infinita de funções morfológicas. Como linguagem, a singularidade da Garbo era de natureza conceptual, a de Audrey Hepburn de natureza substancial. O rosto de Garbo é a encarnação da Ideia, o de Hepburn a do Acontecimento".

Roland Barthes, "O Rosto de Garbo", in Mitologias, Edições 70, 2007, pp. 124-126.

sábado, 22 de dezembro de 2012

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

BIEN





Tout Va Bien (1972), Jean-Luc Godard.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

desire



"Desire", álbum The Dreamer (2008). José James.

sábado, 15 de dezembro de 2012

como é que sentes



"Como é que sentes", faixa extra de UniVersos (2012), Virtus.

"Como é que sentes" - faixa agora revelada por Virtus que confirma a marca autoral das suas composições: o cruzamento do realismo com a poesia, a construção de imagens do quotidiano pontuadas por alusões universais (em jeito de sinédoque) e metafóricas que o transcendem, como se a poesia fosse o único modo de amenizar as agruras do real. Uma das faixas que talvez se oiçam, logo à noite, no Hard Club.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

isto não passa (2)


Zabriskie Point (1970), Michelangelo Antonioni.

Voltei ao local do crime. A sensação é a mesma: a de que nunca ninguém no cinema conseguiu filmar, como Antonioni, a mais bela das Utopias: a do Amor como forma - única forma - de começarmos com isto tudo (o mundo, as relações humanas, enfim, a civilização) outra vez. Uma segunda oportunidade para nós, homens, voltarmos às raízes e construirmos tudo de novo, sem os erros do passado. Do ponto de vista visual, esse ressuscitar, representado pelas cenas filmadas no deserto, está alinhado com a paisagem (sempre a paisagem como condicionador psicológico das personagens, em Antonioni), cuja aridez reclama, como pão para a boca, que alguém a insemine, a injecte, a plante de vida (a água como "fonte de vida"). E não constituirá uma mera curiosidade que Zabriskie Point se situe num lugar chamado vale da... Morte ("Death Valley"), pois é à morte que se seguirá o... renascimento.
Que no Amor - e na liberdade, na ternura, no desejo, na carnalidade que lhe estão associados - resida a derradeira hipótese de sobrevivência, ou melhor, desse tal renascimento, é, apesar de tudo, uma demonstração de esperança na humanidade e na sua natureza. Natureza que, nas cenas filmadas no deserto, nos comove pela leitura rousseauniana de que é objecto, isto é, do homem como sendo, na sua primitiva existência, um bom selvagem, livre e amistoso. É esse o testemunho de Antonioni quando filma aqueles seres fazendo amor, brincando, envolvendo-se na poeira como crianças que nunca deixarão de o ser: um eterno e inabalável acto de fé na humanidade no seu estado mais puro e virtuoso.
Escusado será dizer que filmar e sugerir tudo isto sem cair na ingenuidade, no ridículo e no mau-gosto (cumulativa ou disjuntivamente)  é coisa quase impossível de fazer. Esse tipo de feitos só está ao alcance dos maiores dos maiores e, como sabemos, Antonioni foi um deles.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

atalhos (2)

Até ao dia em que adoptamos a primeira pessoa e eu sou "eu" e tu és "tu". Existirá, então, um passado e um presente, e o futuro será novamente um atalho.

convite



Uma vez mais, o Cineclube da Faculdade de Direito da UP oferece uma sessão dupla, em espírito natalício, a todos os que vierem por bem, e com um lanche pelo meio. Dois filmes de luxo e um bolo de chocolate mais luxuoso ainda.
 
É esta terça-feira, às 18h, na sala 0.01. Entrada gratuita, com margem para derrapagens orçamentais.

Se eu fosse

Se Eu Fosse... (2012) é o título do novo álbum, composto exclusivamente por instrumentais, de Virtus. A minha crítica na rdb, as usual.
 
"O grande ponto de interrogação sempre residiu em saber se o dito hip-hop instrumental valia, por si só, como música, isto é, como género autónomo. E se esta dúvida pouco sentido faz no que respeita ao hip-hop instrumental mais experimental (o tal de Flying Lotus) – já que, aqui, de facto, há um organismo vivo que respira por si mesmo –, o certo é que, muitas das vezes, no hip-hop instrumental mais clássico (samples e loops), fica sempre aquela sensação de insatisfação, de que falta alguma coisa: então e o rap? Felizmente, não é isso que sentimos em Se Eu Fosse… (2012), o novo álbum de instrumentais de Virtus".

domingo, 2 de dezembro de 2012

Diversitates

Publiquei um artigo, intitulado "«M», de Memória", no vol. 4, n.º 2, pp. 34-40, da  Diversitates, uma revista académica internacional, de carácter interdisciplinar, cujo olhar se demora em temas como os direitos humanos, o pluralismo de valores, justiça e inclusão social.

O meu artigo arranca de um filme - M (1931), do Fritz Lang - e de uma estética cinematográfica - o expressionismo alemão -  para abordar temas caros às ditaduras do século XX: o controlo social, a repressão, a emergência de modelos de justiça privada e sua "psicologização" pelos indivíduos, etc.. Podem lê-lo mesmo aqui ao lado.

ERRATA
Na p. 37, deve ler-se:
"Note-se como os mendigos, esses improvisados mandatários contratados pelos mafiosos, dirigem  uma caça ao homem paralela à da polícia, o que representa  – novamente, mas agora sob outra perspectiva – a emergência de um sistema – paralelo ao do Estado, tido por ineficiente – de justiça privada, onde os cidadãos fazem justiça “pelas próprias mãos”, à boa maneira de Talião".

sábado, 1 de dezembro de 2012

who are we?

"Acting is going in, searching for yourself - everything else is bullshit. (...) Creating a character is not creating exactly, it is looking for yourself and being there. And when an actor gathers the point of being there, it doesn't matter what they are saying.
We [the audience] are so thirsty; it's the best position to be in - you're not directly involved, you can judge, evaluate, understand. But to be an actor - being there and watching yourself - nobody is in a perfect position to understand. Playing a criminal is not about trying to imagine how a criminal would be, it's about how you would commit murder. This was why I was happy to assume the mantle of Flaubert's famous quote about Madame Bovary, «C'est moi». There's also Pirandello's novel One, No One and One Hundred Thousand, about a character who discovers one day that the way he thinks about himself, his secret self, is radically different from the personas that everyone who knows him have constructed for him. This was the question: who are we?"

Cristi Puiu, em entrevista (uma das melhores que li nos últimos anos - e isto inclui todo o tipo de pessoas e respectivas idiossincrasias), a propósito do filme Aurora (2010), à Sight & Sound, December 2012, Volume 22, Issue 12.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

a jura e o beijo



 "A jura e o beijo", com Luanda Cozetti (produção Sam the Kid), álbum Em Nosso Nome (2012). Sir Scratch. 

Novíssimo disco de Sir Scratch, um dos artistas mais interessantes do hip-hop português. Crítica work in process.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

a sensação do costume


Tout Va Bien (1972), Jean-Luc Godard.

Continuo a achar que 70% dos que escrevem sobre os filmes do Godard não compreendem 70% dos mesmos. Não quer isto dizer - desenganem-se se já achavam que eu me estava a dar ares - que eu os compreenda nessa mesma proporção . O que, de resto, é uma pena.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

um dia




Martha (1974), Rainer Werner Fassbinder.

Podem dizer aos senhores dos pacotinhos de açúcar fofinhos para acrescentar outra frasezinha ao espólio: "Um dia, escrevo um tratado sobre aquele plano do Fassbinder".

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

e não é só no cinema


Os Chapéus de Chuva de Cherburgo (1964), Jacques Demy.

sábado, 17 de novembro de 2012

Martha


Martha (1974), Rainer Werner Fassbinder.

"Given the hints here of this emotional bond on her part, there's something awry with her subsequent reaction to her father's death when she phones her mother from the German embassy: she's far more concerned with the theft of her bag, she veers wildly between outward calm and hysterical outbursts, and — most significantly perhaps — she cadges her first cigarette off an embassy official, that traditional cinematic image (think, as Fassbinder surely was doing, of all the male-female playing with cigarettes in old Hollywood films) of freedom and sexual promise.
(...)
Or there's the scene where Martha sits alone at home, listening to the music prescribed by Helmut, memorizing his engineering textbook, starts to light a cigarette and — suddenly realizing what she is doing — scurries off to the verandah. It's comic, but simultaneously horrifying too.
(...)
Not that Martha's submission is complete. Accommodations to Helmut's program (and his violent sexuality) alternate with hysterical acts of resistance, acts that by the end of the film have spilled over into paranoiac fantasy. There's a question mark over how "real" the man who disconnects the phone may be, especially as, in retrospect, it would appear that his appearance in the park with Helmut, which we experience with — and through — Martha, does not in fact take place. Certainly it is clear that in the climactic car crash at the end of the film Martha is completely fantasizing that Helmut is in the pursuing car behind".

Ian Johnston, "Martha, Interrupted", in Bright Lights Film Journal.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Há mar e mar, há ir e voltar



Hoje, amanhã e sábado, realiza-se, na Faculdade de Direito da UP, a conferência internacional 30 anos da assinatura da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar: protecção do ambiente e o futuro do Direito do Mar, a cuja organização me encontro ligado.
 
Fica o convite aos interessados e curiosos pelas matérias tratadas - o programa completo pode ser consultado ali.

regresso ao futuro (2)



Depois da entrevista, a crítica a Regresso ao Futuro (2012, Meifumado Fonogramas), o último disco dos Mind da Gap - bom proveito.

sábado, 10 de novembro de 2012

uma música para todas as estações

If summer breaks your heart, don't wait for winter.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

dois anúncios

Mal escrevi o último post, senti que tinha duas coisas a anunciar. A primeira é a de que este blog é, com uma valente dose de certeza, um dos maiores amontoados que por aí anda contendo coisas (repito, "coisas") desconexas, incoerentes, desprezando qualquer linha editorial (todo o blog(ger) que se preze tem uma). A segunda é a de que, feliz ou infelizmente (estou a inclinar-me para a segunda, muito sinceramente), nada há a fazer quanto a isto.

mudar de vida

Resolveu muitas angústias na sua vida quando baniu o termo "normal" do seu vocabulário e o substituiu por "natural". E isso porque, como se sabe, para os que carregam cruzes, a bondade associada à pureza e inevitabilidade da natureza sempre primou sobre qualquer (artificial) conceito construído socialmente, isto é, pelos homens.

J'ai dit extra extra larges?



"Hip-Hop?" (com The Procussions), álbum 73 Touches" (2005). Hocus Pocus.
Teledisco realizado por Arthur King.

Os Hocus Pocus são franceses e tocam hip-hop, jazz, soul, funk, etc. Também são boas pessoas.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

apaixonou-se por ele

Apaixonou-se por ele porque, quando o ouvia falar, com ela ou com outras pessoas (e como gostava de o ouvir falar com outras pessoas), sentia que não compreendia totalmente o que dizia, que não alcançava o sentido último e particular das suas ideias. Sofria com ele quando o via desesperar por não conseguir explicar o que pensava a alguém, e, nesses instantes, imaginava como lhe saberia bem pousar a sua mão sobre a dele.
Passado pouco tempo, concluiu que a atracção pelos homens se lhe tinha revelado sob a forma da impossibilidade da comunicação plena. O seu amor por ele era, portanto, o fascínio pelo mistério da linguagem, pela dificuldade e esforço em fazer dela a correia de transmissão das ideias. Claro que também o considerava um homem bonito, mas isso só relevava, ou relevava sobretudo, na exacta medida em que acentuava essa incapacidade, terna e rebelde, em se fazer compreender: por exemplo, quando baixava a cabeça e passava os dedos pelo cabelo, fazendo-os descer pela nuca e pelo pescoço até chegar à barba que lhe cobria o queixo.

domingo, 4 de novembro de 2012

regresso ao futuro



Hora e meia de conversa com aqueles que foram os pioneiros a fazer hip-hop em Portugal e em português - os Mind da Gap. Uma entrevista com um significado muito especial, ou não tivessem sido eles a proporcionar-me esse momento feérico em que o meu mundo, protegido e calculado até então, levou um abanão (hoje, dir-se-ia qualquer coisa como um "choque multicultural").
O pretexto foi o seu novo álbum (Regresso ao Futuro), mas a coisa estendeu-se, e muito, como era de prever. É tudo conferível ali.

"Há um dado prévio a esta entrevista que não podemos deixar de assinalar. O nosso primeiro contacto, feérico e chocante, com o hip-hop, aí com uns 12 ou 13 anos, coincide com o primeiro contacto com os Mind da Gap (MDG), mais precisamente com um concerto seu. Ou seja, no momento da criação do mundo, foram os beats austeros (hoje, muito mais melífluos) de Serial e as rimas lúcidas e destemidas de Serial e Presto que nos mergulharam num género musical (numa cultura ou movimento, para os mais militantes) pelo qual nos apaixonámos, por mais que Portugal fosse, à data, um País perfeitamente ignorante em relação a uma cultura que, nos EUA, já tinha ganho o respeito da comunidade artística, circunstância que, muitas das vezes, nos fez sentir um alien entre semelhantes. Vê-los chegar à entrevista exactamente com o mesmo aparato (as roupas largas, entretanto trocadas pela moda hipsterindie e não sei o que mais) com que os vimos nesse remoto concerto é motivo para acreditar que, afinal, essa coisa da “integridade artística” talvez exista mesmo".

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

uma comparação possível

O amor é, por esta altura, como o pós-modernismo: as grandes narrativas esmoreceram e o que se procura é redescobrir, sem resvalar em arcaísmos, as tradições e os gestos frugais, puros.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Oh Mãe, porque é que eu não sou baptizado?

Passamos a infância a querer ser "normais" para depois passarmos o resto da vida a querer ser diferentes.

MGS dixit.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Maybe one day



"Maybe one day" (feat. Black Spade), álbum Give Me My Flowers While I Can Smell Them (2012). Blu & Exile. Teledisco realizado por Jerome D.


"Sunshine, what a day to take a walk in the rain
Wash the thoughts on your brain dry
Get lost for a change
Was hitting up? for some change just to cope with my lame life
Putting rings on queens that I wouldn't wife
Pushing dreams on fiends with this wooden mic
And it seemed so extreme to be free
So I just adjusted to being me, truly"

Minus



"Antes da música", EP Distracções (2012). Minus.

Depois da crítica, a entrevista - ali.

resistir

"Vamos cozinhar uma omeleta, eu e as minhas filhas. É preciso desfiar os filetes de salmão que sobraram de ontem, para depois misturar o peixe com os ovos mexidos. Ponho Bach a tocar na cozinha. Desfiamos o salmão e batemos os ovos ao som de Bach. Isto é resistir. Porque nesta meia hora assim passada na cozinha, os que nos querem triturar dissipam-se, eclipsam-se, deixam de nos ocupar o espírito. (...) Se nos querem servir angústia para o jantar, afastarmos a angústia para longe, nem que seja só por um bocadinho, é um forma de resistência. Será alienação? A alienação é sinónimo de alheamento, e eu sei perfeitamente o que estou a fazer e digo-os às minhas filhas, explico-lhes o sentido dos nossos gestos: estamos a levar a cabo uma cerimónia de resistência ao vazio, estamos a erguer um dique contra as invasões bárbaras.
Não permitir que todas as coisas se banalizem é resistir. Não deixar que o hábito nos embote a indignação ante o que é infame e o júbilo ante o que é grandioso também é resistir. Não deixar de executar o gestos banais com a paixão das primeiras vezes é resistir. Partir os ovos devagarinho, tirar as espinhas do peixe uma a uma e não apressar a preparação da omeleta, fazendo coincidir o momento em que apagamos o lume do fogão com o final do concerto de Bach e convertendo tudo isto numa cerimónia familiar é resistir. Porque as cerimónias de trazer por casa são uma barreira contra o caos e o arbitrário, e o que nos querem ver pelas costas trazem o caos e o arbitrário para dentro das nossas casas e para dentro das nossas vidas".

Paulo Faria, "Resistência", in Ípsilon, 19 de Outubro de 2012, p. 39.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

no tempo do "Sol Música"



"No Future", EP Flexogravity (1996). Mind da Gap e Blind Zero.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

um paradigma

Numa gruta, dois homens conversam. É uma gruta dos nossos tempos, onde a claridade impera e se superaram alegorias - julgam os homens, que não estes dois - ultrapassadas. Um deles diz ao outro: creio poder dizer que o paradigma intelectual da nossa era - e, só para que não haja confusões, a era destes homens é a nossa -, e cuja verbalização tão boa aparência causa nas mais variadas esferas, é o de que "mudar de ideias é sinal de inteligência". O outro concorda, acenando vivamente. Mas cedo mudará de ideias.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

uma hipótese

Houve um dia em que todas as mulheres do mundo se juntaram numa desabitada ágora que, para o bem da humanidade, nunca havia conhecido as botas dos arqueólogos. Numa grande assembleia, perguntavam umas às outras: o que é que ela tem que eu não tenho?

domingo, 21 de outubro de 2012

um organismo vivo

É muito comum que pessoas amigas que, por uma razão ou por outra, se tenham afastado se interpelem - frequentemente em ocasiões passageiras - lamentando mutuamente o facto de que  "dizemos sempre que depois combinamos qualquer coisa e nunca o fazemos", para logo de seguida salvaguardar, olhos francos, que "não é por falta de vontade, não é mesmo, mas o tempo passa e esqueci-me".
Ora, isto (o facto de o reencontro não se dever à "falta de vontade") é, muitas das vezes, convém dizê-lo, falso. Geralmente, lembramo-nos desse encontro fortuito e dessa conversa mais "séria" e prolongada apalavrada para a "próxima semana". Só que, pura e simplesmente, não pegamos no telefone, não enviamos o email, não escrevemos uma mensagem com menos de vinte caracteres.
Esta atitude não traduz, contudo, qualquer hipocrisia, sonsice, cinismo, o que seja. Simplesmente, há momentos na vida em que as relações - as que interessam - precisam de respirar de modo próprio, livre, dilatando espaços, datas, encontros, gestos. E isso porque, ganhando vida, se autonomizam, em parte, dos seus autores, passando a gravitar numa esfera particular, com regras e códigos (de sedução, de tolerância, de dependência) próprios. O facto de uma relação conhecer este tipo de atribulações ("fases", em português escorreito) não revela nenhuma perversa "funcionalidade" ou "instrumentalidade"; não, apenas atesta a sua  genuinidade e robustez. Em lado nenhum está escrito que as amizades, aquelas que o tempo não contabiliza - novamente: as que interessam -, devam viver sempre em esfuziante piloto automático: intensas, plenas, prolixas.
As relações, as amizades, são como um organismo vivo: alimentam-se, exercitam-se, respiram, repousam, renovam-se, reencontram-se. Forçar ou violentar qualquer uma destas funções vitais, ainda que num aparente ímpeto de bonomia, é desrespeitar a natureza das coisas. A nossa e a dessa esfera particular que só aos afectos pertence.

sábado, 20 de outubro de 2012

KL


"Rigamortis", álbum Section. 80 (2011). Kendrick Lamar.


"The dance between emotions and autobiography is what makes Kendrick Lamar the most exciting, original and captivating voice that mainstream hip-hop has heard in years. His debut independent album, last summer's Section. 80, was effortlessly high-concept, incredibly thrilling and invariably insightful - a true work of art. (...) Kendrick is an MC that remembers what trully matters; not just a message and a narrative, not just poetry, but a method of delivery, a mastery of craft and point-of-view, steadfast individuality and the creation of new conversations.
(...)
Kendrick is that rare breed: a thinking man's rapper and a rapper's rapper both, able to captivate with worldview and meaning while excelling as a technical tradionalist and progressive experimentalist. His bars are dense with internal rhymes and ideas folding in on themselves. He paints pictures that are at once abstract, impressionist and precisionist. He doesn't rhyme like anyone else, displaying evolving thought pathways and rhymes patterns with each song".


Kris Ex, "Family Affair", in XXL, Vol. 16, No. 6, September 2012, p. 57.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Outra vez Primeira vez



"Outra vez Primeira vez", álbum Se eu fosse... (2012). Virtus.

"Outra vez Primeira vez" é o single de estreia do álbum de instrumentais que Virtus lançará na primeira semana de Novembro para download gratuito.
Não me querendo repetir nos elogios a tão requintada composição, chamo a atenção para o lindíssimo teledisco, realizado e montado pela Joana Rodrigues.

RUN DMC - agora modelo para meninas


Loja de rua em Langkawi, Malásia.

Por desvendar, continua o mistério daquela(s) palavra(s): "'CHUPAREPUBLIC". Desconfio que não terá nada que ver com isto...

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

until the quiet comes



"Getting there" (feat. Niki Randa), álbum Until the Quiet Comes (2012). Flying Lotus. Teledisco realizado por Kahlil Joseph.


Reparem na homenagem: "J DILLA CHANGED MY LIFE" (1:17).

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

quem diz na literatura, diz no cinema, na música, etc.

"Devo dizer que o desaparecimento do crítico «influente» me parece benéfica, porque de alguma maneira libertou o juízo do seu «efeito» (sobre as vendas, sobre o «sucesso»), tornou-o menos professoral, mais descomprometido. Porém, o fim da «influência» acarreta o fim do «prestígio», e a prazo o fim da própria crítica. Hoje temos muito informação disponível, fácil acesso aos media estrangeiros, uma multidão digital opinativa, quer dizer, nunca houve tanta gente que «escreve sobre livros», e portanto o ofício um pouco «olímpico» de «crítico» parece arcaico. Mas a imprensa, ao desistir da crítica, está a abdicar da «conversa civilizacional» que é uma das funções dos jornais e revistas desde há 200 anos. Está a dar força à ideia de que em literatura todas as «opiniões» se equivalem, o que certamente será muito democrático mas é culturalmente pobre".

Pedro Mexia, "O tapete sem figura", in LER, Setembro 2012, p. 21.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

convite para um conto cruel

Design: Teresa Chow

Amanhã, dia 16 Out., pelas 18h15, o Cineclube FDUP passa aquela que foi a minha escolha pessoal para a programação deste semestre: Contos Cruéis da Juventude (1960), do Ôshima, filme precursor da Nuberu Bagu japonesa.

Todos os motivos e mais alguns são bons para acorrer a esta sessão, a começar no seu teor político (tão actual) e sexual e a terminar na forma desassombrada de fazer cinema. Ah, e esqueci-me da cor: uma paleta godardiana que parece pronta a incendiar, a derreter, a tela (os vermelhos, os vermelhos).

domingo, 7 de outubro de 2012

sobre o plano nacional de cinema

"Depois, diga-se uma evidência. Naquela altura, Portugal já estava atrasado em relação à maioria das escolas europeias e norte-americanas. Hoje, estar atrasado é uma expressão que já nem define completamente a falta que faz uma pedagogia para o olhar nas estruturas curriculares, desde o mais básico ao universitário. E finalmente não posso deixar conter a ironia pelo facto de tal plano surgir num momento em que genericamente já se estuda a curva de influência decrescente da sétima arte nos suportes de acesso ao conhecimento e à arte. Como se numa altura em que todos estivessem já virados para a “morte do cinema” e as novas tecnologias ligadas à internet, redes sociais, second life, iPads e por aí fora, o nosso sistema de ensino andasse a descobrir as virtudes do cinema… Não sei se tudo isto é mais trágico ou se, dessa discrepância histórica, possa resultar algo inesperadamente criativo. E depois, como toda a gente sabe, esta ironia é duplamente reforçada pelo facto de se tratar de uma iniciativa proposta em plena paralisação funesta do próprio cinema em Portugal. Portanto, se politicamente o timing não é o correcto (e historicamente ainda o é menos), sejamos humildes e contidos na euforia da celebração de uma iniciativa que, de tão óbvia e relevante, deveria ter sido pensada para aí a partir dos 80, pelo menos.

Agora uma outra evidência. O importante neste PNC não é obviamente mostrar filmes às crianças. Porque isso já eles fazem, em casa, com amigos, no cinema, etc. O importante é construir uma estrutura para controlar as condições de visionamento das obras escolhidas e sobretudo construir um discurso pedagógico sobre essas imagens. Esse discurso tem de integrar a importância do meio audiovisual como forma privilegiada de transmissão de informação na actualidade, mas sempre salientando que parte dessa transmissão é feita, quando ao cinema diz respeito, através de um poderoso mecanismo de distorção da lógica informativa que é o dispositivo artístico cinematográfico. Desta forma, parece incrível mas é verdade, é ainda hoje necessário combater a ideia de que, como a maioria das pessoas nasceu com esse sentido inato e orientador que é a visão, não é necessário aprender a ver.  Esse é um papel de cidadania importante destinado a transformar o consumidor de imagens em alguém que as sabe ler e por isso dotado de um sentido crítico face a estas".

Carlos Natálio, n'a pala de Walsh.

futurismo



Kuala Lumpur, junto às torres Petronas.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

my rear window


Kuala Lumpur, Malásia, ontem, meio-dia.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

foi um homem



"Homem", álbum Maturidade (2008). NBC, ao vivo, no Coliseu do Porto.

Direi que vi este concerto.

domingo, 30 de setembro de 2012

Mulheres



"Mulheres", álbum Afro Disíaco (2003). NBC.

sábado, 29 de setembro de 2012

cinema na FDUP

Design: Teresa Chow

A programação do Cineclube da Faculdade de Direito da UP voltou, para o bem de todos nós. Com tão requintada oferta, sintam-se obrigados a ir. Obrigado.

terça-feira, 25 de setembro de 2012





Jerichow (2008), Christian Petzold.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

maneiras



"Maneiras (para Minus)" (não editado), Virtus (com Denise).

Um beat lindíssimo e uma letra deslumbrante (como são, sem excepção, todas as de Virtus) de amigo para amigo.

domingo, 23 de setembro de 2012

silent


Blackmail (1929), Alfred Hitchcock.


"Silent films remains the poor relation of its sophisticated offspring for many, particulary those in the media who should realise the difference. Perhaps one day soon silent cinema, to the broad mass of even the culturally aware, will at last come to be recognised for what it is - not sound film with the sound turned down but a theatrically vibrant form of cinema in its own right. As opera is to theatre, silent film is cinema with the emotions musically engaged - not a negation of reality but an emotionally enhanced version of it".

Neil Brand, "Working with Hitch", Sight & Sound, July 12, Volume 22, Issue 7, p. 36.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

literatura erótica

Se "literatura erótica" quiser dizer alguma coisa - pergunto eu, que tenho o Henry Miller como um grande e bom amigo desde os meus primeiros anos de faculdade -, o Musil - sim, o Musil - tem muita coisa para ensinar aos exploradores do género. Senão, vejam (reparem bem  - isto é delicioso - no contraste das imagens sugeridas com o assunto sobre que Ulrich perora):

"Bonadea teve de compor qualquer coisa na liga, e viu-se obrigada a olhar para Ulrich com a cabeça ligeiramente inclinada para trás, de modo que, escapando ao seu olhar, um mundo de contrastes emergiu à volta do seu joelho, feito de orlas rendadas, meias lisas, dedos tensos e o reflexo de pérola, relaxado e suave, da pele.
Ulrich apressou-se a acender outro cigarro, e continuou:
- O ser humano não é bom, é sempre bom. A diferença é enorme, compreendes? As pessoas sorriem geralmente perante esta sofística do amor-próprio, mas devíamos extrair dela a conclusão de que o ser humano é incapaz de fazer o mal, a única coisa que faz é poder produzir efeitos maus. A aceitação deste princípio pode ser o verdadeiro ponto de partida a uma moral social.
Bonadea voltou a alisar a saia com um suspiro, levantou-se e procurou acalmar-se com mais um golo do fogo de ouro pálido.
(...)
Sem saber bem como, Bonadea deixou cair um sapato. Ulrich curvou-se para o apanhar e o pé, com os seus dedos quentes como os de uma criança pequena, veio ao encontro do sapato que tinha na mão.
- Deixa lá, que eu calço! - disse Bonadea, continuando a oferecer-lhe o pé.
- Em primeiro lugar, há problemas de ordem psiquiátrica e jurídica - continuou Ulrich, implacável, enquanto da perna dela lhe subia ao nariz o odor de uma responsabilidade condicionada. (...)".

Robert Musil, O homem sem qualidades, I, Dom Quixote, 2008, p. 357.


quinta-feira, 20 de setembro de 2012

atalhos

Por transviadas conversas na terceira pessoa, falamos de nós e por nós. Até ao dia em que.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Um pai do século XXI

Então, filhinha? Já me sabes dizer a diferença entre a ginástica rítmica e a ginástica acrobática?

terça-feira, 18 de setembro de 2012

A festa

Novo artigo sobre a grande celebração do hip-hop português do passado sábado, no Coliseu do Porto - ali em baixo, na rua.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Uma boa entrevista

Esta, do Sam the Kid, ao jornal i.


"Falaste de intervenção...
Desculpa, deixa-me só alongar mais um bocadinho. Vou-te falar de uma coisa que me deixou muito frustrado. Tem a ver com vocês, quer dizer, não contigo em concreto, mas com os media. Há dois anos, os Deolinda fizeram uma música, “Que Parva Sou”, ou lá o que era, e que foi um pretexto para os jornais fazerem uma reavaliação do que é a música de intervenção. Vi as revistas e os jornais todos e, no historial que fizeram, disseram que não havia uma música de intervenção desde o “Talvez Foder”, do Pedro Abrunhosa. Eu nem sabia que essa música era de intervenção.
E nada de hip hop?
Não houve ninguém que tivesse falado. E isso magoou-me mesmo a sério. Durante anos, quando éramos entrevistados, punham-nos na caixinha da intervenção, e nós a querer mostrar que também éramos mais do que isso e que púnhamos nas nossas músicas todo o tipo de emoções. Quando chegou a altura de fazer uma retrospectiva da música de intervenção no país, não estávamos lá? Nunca mais quero que um jornalista me pergunte se o que eu faço é intervenção, porque não sei o que é isso. Mando-os falar com os Deolinda".

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

última noite




"Última noite", álbum Eu Não das Palavras Troco a Ordem (2008). Nerve.

"O problema desta cidade é que eu não vejo o horizonte"

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Não era filósofo

"Não era filósofo. Os filósofos são seres violentos que, como não dispõem de um exército ao seu serviço, dominam o mundo encerrando-o num sistema. Provavelmente está aí a explicação para o facto de, nas épocas de tirania, ter havido grandes filósofos, enquanto as fases de civilização e democracia avançadas não conseguem produzir uma filosofia convincente, pelo menos a avaliar pelo desapontamento em geral manifestado a esse respeito. Por isso se pratica hoje a uma escala tão assustadora a filosofia em pequenas doses, de tal modo que as lojas são o único lugar onde se pode comprar alguma coisa que não vem acompanhada de uma visão do mundo; já quanto à grande filosofia, reina uma indubitável desconfiança".

Robert Musil, O homem sem qualidades, I, Dom Quixote, 2008, p. 346.


Apetece dizer: já nem nas lojas, já nem nas lojas... (a não ser para aqueles que não vejam no capitalismo uma filosofia - se isso fosse possível!)

terça-feira, 11 de setembro de 2012

stay


"Stay", álbum Life is Good (2012). Nas.

love and death



Elena (2011), Andrey Zvyagintsev.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Para acabar com a cultura de um país

Lêssemos todos nós estes um, dois, três textinhos, e amanhã começaríamos tudo de novo. Pela cultura, claro.

reabilitar

"(...) a reabilitação urbana não salva um país, desde logo porque é mais cara. Há uma reabilitação que pega no edifício e lhe trata das mazelas, mudando a rede eléctrica e as canalizações, mas, se se mexe na estrutura, cai tudo. Isso acontece sobretudo em Lisboa, onde a construção do final do século XIX é muito má. E é proibido mexer na fachada, o que é um absurdo económico. Porque há uma reabilitação low-cost e outras naturalmente mais profundas. Além disso, o que dá unidade não são as fachadas todas iguais, na medida em que, ao longo dos tempos, sempre houve misturas, edifícios semelhantes e outros que se destacam. O que dá unidade é a qualidade do espaço público que as ordena, a sucessão de ruas, largos e praças. E perdeu-se essa cultura, que é mais importante do que os edifícios parecerem todos iguais, certinhos, como foram feitos. É muito mais importante que as ruas se prolonguem com a mesma qualidade.
(...)

(...) uma rua é tão importante como um edifício. E essa força pode vir só de um alinhamento de árvores, que, às vezes, tem uma papel semelhante à sequência de fachadas. Concluindo: o espaço tem forma e desenho, daí o erro de Corbusier, quando atacou a rua. Os limites entre rua e edifício são ambíguos. Um enforma o outro. Mas um precede o outro. Tudo ao mesmo tempo é excepção. E tal como os edifícios, as ruas também têm programa, que responde a necessidades colectivas que não podem ser resolvidas nos edifícios".

Nuno Portas, em conversa com Siza Vieira, Jornal de Letras, Ano XXXII, n.º 1093, 22 Agosto a 4 Setembro 2012, p. 7 e 8.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

A culpa

Sob um dilúvio memorável, a nação, vergastando-se copiosamente sob o olhar atento de Deus, pergunta-se: porquê que o Cristiano está triste? Que mal Te fizemos, Senhor?

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

e a humanidade avança, calmamente, para a skypezação (2)

"Na sua prisão, o pobre homem não podia sonhar que aquele coração, curvado sobre a roupa interior de Diotima, batia por ele. A casa do director-geral Tuzzi não era muito longe do tribunal. De um telhado a outro, uma águia precisaria apenas de bater asas poucas vezes; mas para a alma moderna, que cruza sem qualquer esforço continentes e mares, nada é mais impossível do que encontrar a ligação com as almas que vivem ao virar da esquina".

Robert Musil, O homem sem qualidades, I, Dom Quixote, 2008, p. 304.

domingo, 2 de setembro de 2012

"My Gosh! Those opening chords are flooring me every time!" (youtube dictum)



"Risin' to the Top", álbum Changes (1982). Keni Burke.


Depois disto, também é obrigatório ouvir:



"Take You There", álbum The Main Ingredient (1994). Pete Rock & CL Smooth.




sábado, 1 de setembro de 2012

o melhor do filme da Delpy

2 Dias em Nova Iorque (2012), Julie Delpy.

É, il va sans dire, a Alexia Landeau (e este fotograma, em particular).

e a humanidade avança, calmamente, para a skypezação

4:44 Last Day on Earth (2011), Abel Ferrara.

Hoje, senti-me um pouco como o Cisco do filme do Ferrara.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Keso



No seguimento deste post, escrevi um artigo que, se, inicialmente, pretendia incidir exclusivamente sobre o álbum O Revólver Entre as Flores (2011), acabou por se estender, em boa verdade, a todo o percurso artístico do Keso. É, enfim, a a habitual prolixidade de que se padece quando se escreve sobre algo de que realmente se gosta.

 O artigo pode ser lido ali.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Skye



4:44 Last Day on Earth (2011), Abel Ferrara.

"The Dark Knight Rises is a Proto-Fascist Movie"




Artigo obrigatório. Está (quase) tudo lá.


"A note for clarity: I’m going to be using the words fascism and fascist a lot in this review. Since, as Orwell warned us, those terms have come to be used as synonyms for “stuff I don’t like”, I should pin down the sense in which I use them here. Fascism is a political ideology fixated on authoritarianism, militaristic imagery and action, and the use of authoritarian force against internal and external Others who are defined as threats to the continued existence of society. Fixations on nationalism and national or racial purity and unity are also common. Fascism is a phenomenon of the political right, and has always been fanatically anti-communist, communism being what happens when the political left gets equally douchey.
(...)
Bane’s agenda is that of the Occupy movement as seen by people who don’t know anything about the Occupy movement. (Google “Dark Knight Rises” + “Occupy Wall Street” and prepare to sigh deeply.) He overcomes the current strongman of Gotham City and imprisons its police, thereby successfully taking over the city. This only makes any sense at all if we assume that government is solely comprised of a strongman and his enforcement apparatus, which… well, that’s a little fascist, isn’t it? The enforcement apparatus removed, the economic status quo is reversed, with rich people being turned out of their homes so the poor can take their stuff.


This is a key point: Bane keeps talking about The People, but the people of Gotham City do not appear in this film.
The People are entirely absent. Everyone we see dragging rich folks out of their homes, everyone we see freeing the men imprisoned under the Harvey Dent Act, everyone we see fighting the police in the big authority-vs.-rebellion showdown at the end, they’re all Bane’s staff members. The only character with a speaking part who expresses any support for Bane’s agenda and isn’t a known supervillain or paid-up member of the League of Shadows is Selina Kyle’s girlfriend Holly. It’s one of her three lines. Nobody got a SAG card playing a Gotham citizen in this movie; their only role was to cheer Batman in crowd scenes.
This is important: if the people of Gotham are present, then when the enforcement mechanism of the current power structure is removed, the people immediately rise up and overthrow the system. This would imply that Gotham citizens are so oppressed that only brutal enforcement keeps them from naturally rising against this oppression, which makes Bane the good guy. However, the people are not present; only Bane’s thugs rise against the rich. The people are so absent from this movie that, in every single vehicle scene, there are no civilian vehicles on the road. Everything on the road in every scene belongs to either Batman, the cops, or Bane, resulting in some rather odd-looking chase scenes down completely unused urban streets.
(...)
Bane’s “power to the nonexistent people” schtick is designed to echo vague impressions of Soviet communism, with its empty stores, kangaroo courts, and a lingering shot of a breadline, something American audiences have been conditioned to believe was solely a Soviet phenomenon. A similarly lingering shot of a tattered and torn American flag under Bane’s regime is there for people too slow to pick up on the other symbols.
In the end, of course, the police and the Batman triumph and order is restored by force, thus freeing the nonexistent people of Gotham to enjoy their existing system where the police can lock you up without parole at will.
All this would not be too bad, except for the little matter of cultural context.
Americans live in a society right now where fascism is trendy. We are more militarized, by money spent, than the entire rest of the world put together, and one of the men running for president has promised to increase that spending. We have more people imprisoned per capita, than any society in human history, including China, apartheid-era South Africa, and the Soviet Union. These are facts. They reflect a status quo in which fascist solutions for society’s ills are considered good ones by a portion of the populace, and it is to that demographic, the American political right, that The Dark Knight Rises is explicitly pitched. The entire film is peppered with conceptual catchphrases, like “peacetime”, “appeasement strategy”, “those who have too much”, and so on, designed to appeal to the worldview of people who think Fox News does journalism. A deliberate caricature of the imagined opposition is created, and then duly punched into submission in accordance with superheroic genre convention.
(...)
Fascism may not always be palatable or pleasant, the film tells us, but it is necessary and it works. At no point in the movie do fascist solutions fail, except in cases where they are not fascist enough. The strongmen who Do What Must Be Done, the classic excuse of the fascist, are always right. When the Gotham police are led into a trap, it is under the command of Gordon’s successor, who is shown to be a cowardly quisling who only redeems himself by putting on a uniform and shooting scruffy people.
In short, The Dark Knight Rises posits a conflict between the form of fascism some Americans currently favor, and a strawman version of their imagined opponents, and places the center of moral good firmly on the pro-fascist side. This isn’t even subtext, it’s just text in context. I’m sorry if this ruins the movie for anyone".


sobes e desces



"Sobes e desces" (com Virtus), EP Distracções (2012). Minus.


Minus, compagnon de route de Virtus. Outro mago dos beats e dos versos. Mais aqui.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

HHP Magazine #3, Agosto 2012





HIPHOPulsação Magazine está de volta - infelizmente, pela última vez. O número de Agosto 2012 será o último e, por esse motivo, cessará, também, a minha colaboração com a revista. A revista pode ser lida gratuitamente aqui.

O meu artigo opinião, intitulado "O hip-hop entre o modernismo e o pós-modernismo", consta da rubrica Rapensar, páginas 41-43. É uma reflexão sobre o lugar que o hip-hop, enquanto género musical e, mais latamente, artístico, ocupa nos caminhos que a Arte tomou no século XX. Aqui fica um (extenso) excerto:

"O hip-hop, na sua composição nuclear, parte de uma premissa clara: a de que é possível e, mais importante, belo, colar e sobrepor diversos géneros e sensibilidades musicais – essa a essência do sampling. Ao misturar as batidas dos sound system jamaicanos com as sonoridades dos monstros sagrados do jazz e da soul, os jovens do Bronx mostravam ao mundo um dos rostos mais visíveis da revolução igualitária na Arte: a sua dessacralização e, consequentemente, o caminhar rumo à fusão, ao experimentalismo, enfim, a uma espécie de “vale tudo”, no qual um sample de Ray Charles deixa de ser uma peça grave e solene para se metamorfosear num elemento mais na composição de um beatNeste particular, o hip-hop, como género musical, afirma-se, pois, como profundamente modernista.
(...)
Todavia, o que há de particular no hip-hop é o facto de ele não se resumir a um modernismo puro, antes convocando, também, algumas das notas típicas da era que se lhe seguiu: o pós-modernismo. No domínio artístico, o pós-modernismo assentou numa reabilitação do passado, isto é, de alguns dos seus valores, gostos e normas. (...) É difícil, pois, não ver o que de pós-modernista o hip-hop possui, ontem como hoje. Quando Eric B. samplou, em Paid in Full (1987), nomes como James Brown, Bobby Bird ou Syl Johnson, ou quando, hoje, Kanye West sampla, em Late Registration (2005), Curtis Mayfield, Shirley Bassey ou Otis Redding, que melhor exemplo de ecletismo e revivalismo podíamos ter? Desde Grandmaster Flash (que, em The Message, 1982, samplou funk americano, rock inglês e por aí fora) que o hip-hop sempre prestou o seu tributo aos grandes artistas do passado, reconhecendo-lhes a sua musicalidade ímpar através da incorporação das suas melodias nos beats".


De resto, sobre o fecho da revista, limito-me a transcrever o que, no artigo, deixei em post scriptum:

"Tive, até esta parte, a oportunidade e felicidade de colaborar com a HIPHOPulsação Magazine, projecto levado a cabo, de forma desinteressada e apaixonada, pelos fundadores do blog que lhe deu nome: o Druco e o Sempei. Coisa rara hoje em dia, sobretudo num meio como o hip-hop, onde a competitividade nem sempre é saudável e se prefere falar mal da galinha do vizinho.
Numa altura em que, segundo sei, a continuidade desta revista está em causa, só posso agradecer o permanente entusiasmo dos coordenadores deste projecto com a minha colaboração e desejar, do fundo do meu coração, que ele não morra ou que, pelo menos, os seus timoneiros não “desistam” do hip-hop e, mais importante, de pensar o hip-hop. Em Portugal, são poucos os espaços de crítica e reflexão construtiva sobre este género musical, e o Druco e o Sempei vinham, até a esta parte, com os seus textos, críticas e entrevistas, a proporcionar um pequeno oásis nesse deserto. Só por isso, o meu muito obrigado. Word up!".