segunda-feira, 15 de novembro de 2021


A descoroçoante cena final de O Menino da Ama (1955, Tomotaka Tasaka) bem joga com a dualidade que o filme, subtilmente, vai estabelecendo entre campo/cidade (num filme pretensamente "político" feito hoje, seria algo da ordem do grito, maniqueísta e demagógico). Na cidade, Hatsu, a Ama, chega para ser, como a sua boca não se cansa de articular, “criada”, “para servir”. E, porém, durante largos minutos, não consegue entrar na casa-fortaleza dos patrões (algum humor aqui, esboço de uma comédia de enganos malgré tout...). É rejeitada, as portas não se lhe abrem; desprezo, indiferença, ofensa são os cartões de visita (o miúdo cumprimenta-a com um tiro de fisga...). Veio para servir e, todavia, não lho permitem, retorcida proibição de vassalagem que só a prepotência concede. Mais tarde, quando o miúdo parte em busca da Ama até à sua distante e agreste aldeia (Akita), as portas estão escancaradas de carinho e atenção (ainda a vassalagem, o culto da tradição e da hierarquia, extensível, como é sabido, às relações de trabalho no arquétipo da empresa japonesa do pós-guerra). As diferenças de uma e outro no acto de penetração em território desconhecido fica por demais evidente (isto é, resultam da mise-en-scène, nunca são “ditas”, outra das qualidades que um filme de hoje em dia não tem inteligência para exercitar). E não só: na cidade, pais desatentos, distantes, e seus filhos mimados, a figura masculina dominante; em Akita, o clã sob tutela matriarcal (contrariando-se a ideia do urbano como lugar “progressista” de uma maior igualdade entre homens e mulheres), miúdos e graúdos em franca cumplicidade.
… Nessa última visita ao miúdo na escola, Hatsu não lhe diz ao que vem. Não se despede. O miúdo, depois de tudo o que viveu com e por ela, não se abstém de a destratar. Novamente. “Se não tinhas nada de especial para dizer, não valia a pena teres vindo”. A classe exploradora (a patroa, tacanha, não se abstém de tirar o mais que consegue da criada pagando-lhe o menos possível) não muda; ou melhor, e como já ouvimos noutros filmes, é preciso que as coisas mudem para que tudo fique na mesma. Uma tomada de consciência, um desencanto resignado com a torpeza das relações humanas naquele pátio de escola árido, vazio do buliço das crianças. Mas, em verdade, não apenas isso (ou não apenas a classe exploradora que não muda...): também o reconhecimento de uma certa dose de responsabilidade da Ama – da “Vítima” – na perpetuação do status quo, visível no modo perfeitamente inexplicável, perfeitamente absurdo, como se abstém de esclarecer o motivo para o casaco do marido da patroa estar no armário do seu quarto (facto que a patroa toma como roubo).
Mas ainda sobre o miúdo na escola… Talvez não... Quiçá tenha justamente pressentido (ou ouvido das conversas dos pais) que se tratava da derradeira despedida e, em negação, finge, "representa" o seu papel (o que lhe cabe na hierarquia social), joga o jogo para ignorar a realidade… Como se, resgatando a sua original posição de superioridade e subjugação, enfim dissesse: Não, não te autorizo a partir, preciso de ti...

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