Há tempos, lia aqui, a propósito do cinema de Michael Haneke, que o seu ponto de vista era o de que "a fronteira entre civilização e barbárie depende, apenas e só, das circunstâncias", e que "Essas circunstâncias não são excepcionais. Pelo contrário. Nas suas diversas modulações, surgem com frequência no quotidiano". Vale a pena ler o resto.
Há dias, confortavelmente sentado no sofá depois do almoço, via o telejornal na RTP. Pelo meio da torrente noticiosa, é exibida uma peça, que só apanhei já a meio. Era sobre um grupo de mulheres que, em vésperas de Natal e num acto de solidariedade, se havia deslocado a um hospital frequentado por doentes em estado muito débil (terminal, em alguns casos) e lhes proporcionavam, por umas horas, uma tarde alternativa com danças, teatros, etc.. Vi as imagens: as mulheres faziam tudo aquilo muito genuinamente, não apenas com o sorriso próprio de quem tem por missão agradar (que também era o caso), mas, por vezes, até com o rosto sério, compenetrado, prova do esforço em fazer bem o que se praticou anteriormente, em fazer bem aquilo que se pensou para o público, em, afinal, fazer bem ao público muito especial que está na assistência. Passado um bocado, a repórter entrevista algumas dessas mulheres. Eram presidiárias de longa data, mulheres com penas de quinze, vinte anos, certamente por crimes hediondos, e que, naquela tarde, gozavam de umas horas fora dos muros da cadeia. Vi as imagens: rostos iguais aos de toda a gente, as mesmas inflexões nas vozes, os mesmos gesticulares, os mesmos embaraços momentâneos. O que lhes aconteceu? O que fizeram? Porquê que o fizeram? Porquê que sou eu que as estou a ver na televisão e não elas a mim? Felizmente, a repórter não fez estas perguntas, pudor que, quero acreditar, tem latente essa consciência de que, de facto, as circunstâncias, as terríveis circunstâncias que não escolhemos ["não se escolhem, mas constroem-se", dirão aqueles que esquecem que o simples sítio onde nascemos pode bem ser uma sina e implicar um esforço de orientação na vida que muito boa gente nunca seria capaz de o fazer, não porque seja displicente (como dizem dos visados), mas simplesmente porque é um esforço demasiado hercúleo], podem deitar - e ditar - tudo a perder.
Sem comentários:
Enviar um comentário