Há dias, usei "45 RPM" para me referir a 45 Anos. No último número de Janeiro do Artes Entre As Letras, tento explicar melhor o porquê. Escrevo também sobre o último filme do Benoit Jacquot.
Diário de Uma Criada de Quarto (2015), Benoît Jacquot ★★
A
sensação com que se fica depois de sair da sala é a mesma de 3 Corações (2014), o filme anterior de
Jacquot: a de que o francês, partindo para o filme com matéria interessante
q.b., desbarata o que tem nas mãos e desorienta-se, traduzindo-se o saldo final
num filme desequilibrado, desconexo e com demasiadas pontas soltas (a
personagem do Capitão, a gravidez da criada, a morte da criança), às quais não
é dado qualquer seguimento substancial e parecendo existir apenas como sugestão
de algo narrativamente interessante que nunca chega, afinal, a concretizar-se
(os flashbacks estéreis – que nada
acrescentam à composição da personagem principal – para quê?). Ou talvez essas
pontas sejam, de um outro prisma, o reflexo de uma adaptação algo canhestra à
obra original de Octave Mirbeau, já trabalhada no cinema por gente como Renoir
e Buñuel. E é pena, desde logo pelas presenças de Léa Seydoux (Célestine, cujos
murmúrios parecem, a certa altura, indiciar uma brechtiana queda da “quarta
parede”, como se fôssemos cúmplices do seu rancor aos patrões) e de Vincent
London (Joseph), demasiado “grandes” para o filme. Depois, porque, reconheça-se,
Jacquot sabe o que faz com a câmara (e com a música), algo visível nos zoom in intensos com que se aproxima das
personagens, o que confere às cenas um tom algo surrealista, condizente com os
“crimes e escapadelas” macabros que perpassam as relações de força entre
patrões e empregados, exploradores e explorados, conquanto estes últimos não
sejam maniqueistamente pintados como integralmente “bons” (os empregados que
inicialmente destratam Célestine por ela ser, apesar de empregada, uma
“parisiense”; o anti-semitismo de Joseph). Um filme desperdiçado, portanto (que
falta fazem o requinte e a perversidade do Buñuel de Viridiana ou do Chabrol de A
Cerimónia), e do qual se salva a interpretação irrepreensível de Seydoux, a
confirmá-la como uma das grandes actrizes francesas da sua geração (e inclusivamente
de, digamos, “prestígio mundial”, como a sua chamada para bond girl no último 007 o comprova).
45
Anos
(2015), Andrew Haigh ★★★
Num
filme em que a música (e que música) está tão presente, com uma função
intra-diegética tão poderosa, talvez não seja descabido olhar para o título e
vê-lo não como significando apenas uma data, um conjunto de anos, mas também
como um conjunto de… rotações. 45 RPM,
então: é a este ritmo, maduro e bem vivido, próprio de um single tão velho
quanto maravilhoso como o “Smoke Get In Your Eyes” (dos saudosos The Platters)
a rodar no gira-discos, que Kate e Geoff (Charlotte Rampling e Tom Courtenay,
ambos estupendos) vivem o seu casamento na velhice, entre livros (e talvez a
insistência de Geoff em voltar a Kierkegaard indicie algo do que virá…),
passeios pelo campo e cups of tea, até
que uma inesperada carta lhes chega a casa, isto a uma semana de celebrarem a
festa dos 45 anos do seu casamento. Haigh filma com uma serenidade e uma
elegância que quase passam despercebidas, como se fosse fácil, mas não é; há um
perfeito sentido de mise en scène, ao
qual ajuda, é certo, a experiência de Rampling e Courtenay (que, segundo
consta, apenas se reuniram no dia anterior às filmagens para ler o argumento),
mas a qual não seria suficiente para filmar, como Haigh o faz, por exemplo, Kate
a ver os slides no sótão – um grande momento de cinema em que os fantasmas vêm ao de cima, no escuro, por força
do medium fotográfico (como o
cinematográfico), espécie de projector místico do passado enquanto
matéria semi-adormecida, imprevisível,
capaz de ressuscitar questões (e pessoas) pretensamente enterradas (o problema é
também esse: Katya nunca foi enterrada, literal e metaforicamente). Momento
em que imagem (da desaparecida Katya) e som (do vento e da água das paisagens
onde se vê Katya, elementos que Haighes “cola” ao filme e à imaginação
auto-flageladora de Kate), na sua extrema sensorialidade, abanarão os sentidos
(precisamente) de Kate, a partir daí definitivamente desorientada. Tanto ou
mais que o marido, que entra numa espécie de depressão “desinteressada” e
unicamente centrada em procurar “macacos”… no sótão (nem de propósito). Naquele
que é, outrossim, um estudo sobre o modo diverso como os homens e as mulheres
lidam com os afectos (e quanta razão tem a amiga de Kate quando lhe diz que os
homens choram sempre nos grandes momentos, mesmo os mais durões), Haigh
contrapõe todo este caos privado da intimidade à normalidade que o casal aparenta
em público. O que, além de honesto (a vida não é assim?), deixa, na última e
fabulosa cena, Kate e o próprio filme em suspenso (ou será que não? aquele braço
que tomba, revoltado; o “Go now” dos The Moody Blues que se ouvira um pouco
antes…), um declarado open ending que
subtrai ao espectador o poder de julgar seja quem for (até porque, no final das
contas, o que se passou entre Geoff e Katya aconteceu antes de Kate o conhecer,
não havendo, por isso, sequer qualquer “infidelidade” em equação…). Ao
contrário daquilo que tantas vezes se diz, o passado não é passado – sobretudo quando o ciúme é a pá utilizada para o
desenterrar.
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