Há dias, estava a rever ao almoço um episódio do Dragon Ball Z, saga "Bubu", fase morfo-psicológica "Gordo e bonacheirão" (uma entre muitas), quando dois momentos curiosos me chamaram a atenção. O primeiro, de que já não me recordava, era o absolutamente inusitado hábito da SIC em colocar a pronúncia portuense numa série de personagens. Quais? Personagens anódinas e sem destaque, frequentemente labregas e simplórias, como civis a fugirem da cidade a meio de uma catástrofe. Depois não admira que todo um país de Coimbra para baixo cresça a utilizar expressões - essas, sim, labregas e simplórias - como "o pessoal lá de cima", "lá no Norte", próprias de um esquema mental e cultural do país assente numa chaveta com dois únicos vectores: Lisboa e "o resto lá em cima".
O outro, não menos inusitado mas bem mais simbólico (e escatológico), diz respeito a toda uma sequência que começa com Bubu elevado no céu (porque as personagens voavam quase todas, as boas e as más) a inspirar profundamente e, depois, numa demonstração da sua avassaladora força, a expirar uma espécie de tornado que racha uma série de edifícios ao meio, colocando a população em pânico. Depois disto, Bubu desce até ao chão e contempla, naquele seu ar simultaneamente inocente e maquiavélico, o rasto de destruição causado pela sua brincadeira pulmonar. Não satisfeito, decide fazer uma corridinha, acelerando contra tudo o que vê à frente e aumentando o saldo de edifícios desfeitos.
Neste passo, já não se vêem praticamente pessoas (quase nunca se viam mortos ou feridos civis na série, simplesmente eclipsavam-se, espécie de pudor que reservava a mutilação e o sangue para as personagens principais); sobra, apenas, uma rapariguita, vistosa e de pernas e ombros destapados. Bubu, de sorriso glutão, aproxima-se dela, agora visivelmente com outras intenções que não a de a matar: ela no chão, em pânico, ele de pé, Bela e o Monstro versão urbano-apocalíptica. Bubu ensaia um tête-à-tête com ela, inclusivamente tentando dar-lhe um beijo (esticando extraordinariamente a sua boca elástica), mas ela não acede. Nisto, Bubu repara numa revista caída ao lado da rapariga, na qual pega e vê a imagem de um rapaz bonito e em forma. "É de rapazes magros que tu gostas?", pergunta-lhe, após o que esfrega a cara e ganha, magicamente, um rosto franzino. Tenta, então, novamente o beijo e leva com nova recusa. Ofendido e impaciente, decide logo o que fazer em alternativa: não podendo "comer" a rapariga como quer, transforma-a num saboroso e domesticável caramelo que, num ápice, deglute a seu bel-prazer, celebrando o banquete com uma série de piruetas de contentamento.
O que é engraçado aqui, além dessa dupla noção de comestibilidade (e onde o canibalismo está implícito, ainda que imperfeito: Bubu não é um ser humano), é o modo como o problema do sexo é ultrapassado: provavelmente, Bubu não sabe exactamente o que isso (o sexo) é (se soubesse, talvez o passo lógico imediato fosse a violação), pelo que a forma que encontra para substituir o seu voraz apetite sexual é transformar a mulher em comida, dessa forma se pondo - e sobrepondo - em cena dois instintos primários (o sexo e a fome) - ou, se quisermos, duas "fomes": a "alimentícia" e a sexual -, duas pulsões animais capazes de se compensar mutuamente, enfim, dois prazeres que, desde os romanos, andam de mão dadas. Ao fazê-lo, porém, Bubu acaba por concretizar aquilo a que, num primeiro momento, renunciara, i.e., matar a rapariga. Como elemento de desejo, e se tivesse correspondido à fome sexual de Bubu, a rapariga sobreviveria; recusando esse papel e passando a ser percepcionada por Bubu como um alimento em sentido literal, a rapariga receberá o destino - o castigo - fatal. Sexo, alimentação, morte - constelação essencial à qual, para estar completa, só faltaria o último e definitivo golpe escatológico, a defecação (que tipo de excrementos se geraria a partir de um caramelo... "humano"?!).
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