terça-feira, 30 de março de 2010

sei como é



[primeiríssima cena de 8 e 1/2 (1963), de Felinni]

segunda-feira, 29 de março de 2010

a dois



(Gato Preto, Gato Branco; 1998; Emir Kusturica)

quarta-feira, 24 de março de 2010

Que fazes tu aqui a estas horas, rapaz?
É que não durmo, senhor.
Passas as noites em claro?
Pior, senhor.
Acordas e adormeces acordas e adormeces?
Antes fosse, senhor.
Então? São as costas que te doem?
Também, senhor, mas com as costas já posso eu bem… já me acostumei.
É a cabeça latejando?
Sim! Sim, senhor, sim o raio da meloa.
Passa-lhe um pano molhado com água fria, verás que a noite será mais fácil.
Mas não é isso, senhor…
Não é isso o quê? Ousas dizer-me que é mais, que eventualmente terás pecado?
Não, senhor… até costumam dizer que não faço mal a uma formiga.
A uma mosca, rapaz.
Ou isso, senhor. Acredite-me que nem moscas nem formigas.
Vejo que sim. Pois bem, rapaz.
mas caralho do velho que não vê que não percebe, que eu aqui à rasca, um palmo e meio de respiração em suspenso e o caralho do velho que não vê que não percebe, mas como se a sotaina ondula de cada vez que o ar entrecortado me sai dos pulmões, até tusso, mas então não me ia ajudar o cabrão do velho, está bem que é tarde e não venho a calhar mas quer dizer, a calhar também não me vêm as costas e bem que ando com elas, não sei quantos ossos não sei quanta carne a cair-me em cima
Senhor…
Diz-me, rapaz.
Não durmo, senhor… são
Sim? São?
São
Fala, rapaz!
São dias em claro, senhor.

sábado, 20 de março de 2010

superlativo

O escritor percebeu como a frase
“até aos vinte anos não se pode dizer que o homem conhece a infelicidade”
podia ser tão bela e universal como a frase
“durante toda a sua vida, desde o primeiro dia em que sacode os pezinhos e encolhe o luzidio pescoço, o homem conhece a tristeza mais profunda”.
Quando o percebeu, o escritor reteu a invencível maleabilidade de um poema, de um verso, de um aforismo. Abriu as mãos e contemplou a densidade brutal de um estado de espírito vertido em palavras, observou a volta que uma máxima literária universal - o mesmo é dizer, uma sentença humana (aparentemente) absoluta - pode sofrer quando as palavras e as sensações são outras, e a forma como aparecem, se articulam e formam um sentido, são diferentes das que até então em nós se impunham de um modo insuperável pela profundidade do seu alcance e beleza.
Nisto, o escritor apercebeu-se que havia chegado a uma conclusão gigantesca, talvez a maior de todas, e por isso sentiu medo em continuar a escrever. Por algum tempo ficou suspenso no tempo, mirando as folhas e a caneta ao de longe, como se de objectos mágicos flutuando no ar se tratassem; ou como camisas, calças, meias, presas por molas a um cordão fantasmagórico; ou ainda como fotografias penduradas no escuro, revelando mais uma cor, mais uma sombra, à medida que secam. Só lhes voltou a tocar quando aceitou, ainda que sem grande agrado, como que convencido por uma força opressiva, a tal maleabilidade de que se faz a carne dos mais poderosos pensamentos e frases. Algo derrotado, inconformadamente conformado, e interiorizando para si que uma vez lhe revelada aquela conclusão, havia feito enfim uma espécie de pacto de anuência – Sim, Eu declaro aceitar as complexas contingências das palavras -, decidiu que a única forma de se resolver consigo próprio e com elas, era nada mais nada menos que fazer isso mesmo: moldá-las, trocá-las, contradizê-las, virá-las ao contrário. Compreendeu finalmente que teria que viver com esse paradoxo, pois que a inversão das coisas, o sim e o não, o branco e o preto, o feliz e o infeliz, sempre foi o motor da palavra escrita e o motor da sobrevivência para quando um homem sente estar fatalmente, exclusivamente, num não, num preto, num infeliz. Ou para quando um homem se ilude perigosamente, docemente, com o pensamento de que tudo é vontade afirmativa, de que tudo é luz, de que tudo é feliz.