quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

2015




It's love that really counts. Bom ano.

quem é que falou em "neorealismo"?!



Europa '51 (1952), Rossellini.

Walsh #21 Neve: branco mais branco (não) há/Essential Killing (Sopa de Planos)



O À pala de Walsh despede-se de 2014 com mais uma criativa, e agora branquíssima, sopa de planos ("sopa de neve" é coisa que não ficava mal no cardápio de um restaurante). O meu contributo a partir do Essential Killing (Skolimowski). Para ler ali ao lado (clicar).


Há muitos e belos planos com neve em Essential Killing (2011), de Jerzy Skolimowski. Aliás, a neve não é estranha a outros filmes da sua carreira; penso na cena esplêndida de Deep End (1970) em que Susan procura o seu anel de noivado: como então escrevemos, “um anel perdido na neve – só a imagem mental é arrebatadora”. Mas, dizíamos, em grande parte do filme, a neve é o décor da alucinante fuga de Vincent Gallo, e, se a brancura (da neve, da sua roupa, do cavalo que, a páginas tantas, encontra) é o tom predominante (embora, aqui, a “brancura” não evoque paz ou apaziguamento, antes uma paisagem adversa e inóspita à sobrevivência do ser humano), são também muitas as ocasiões em que o contraste cromático – sobretudo o vermelho do sangue de Gallo – é gerador de imagens lindíssimas, próximas de sonhos (como aqueles que Gallo tem dos seus familiares). É tingida desse vermelho que Skolimowski filma aquela que foi, para nós, como então elogiámos, a melhor cena do ano cinematográfico de 2011: literalmente quase a morrer à fome (entre feridas, cansaço, frio), Gallo cruza-se, inesperadamente, com uma mulher que transporta consigo o seu bebé. Vemo-lo, então, de revólver apontado à mulher, os olhos esbugalhados, momentaneamente nos passando pela cabeça a ideia de uma eventual violação pronta a consumar-se (o sexo como outra “fome”, outro instinto, por saciar pelo Gallo-animal). Mas não: Gallo ordena-lhe que destape um dos seios e, sôfrego, com a sua cabeça ao lado da do bebé (que mama do outro seio), mama o leite materno, poderosíssima ilustração da “animalização” para que Gallo tende ao longo do filme. Aqui, como no resto do filme, Gallo não pronuncia uma palavra; ao contrário, porém, do resto do filme, nesta cena, Gallo não “mata para viver” (o título em português): deixa viver e, com isso, ele próprio (sobre)vive (e, não matando aquela mulher e aquele novo ser, afasta a sua total “animalização”, conservando intacta a sua humanidade mais profunda). Aqui como quando veio ao mundo, a personagem de Gallo tem no alimento de uma mulher o meio indispensável à sua sobrevivência, tal e qual aquele bebé. Essential killingEssential living.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

síndrome de antonioni

Desço pela Igreja da Lapa, passo a Praça da República e aproximo-me do centro da confusão. Começo a pensar que o Porto me parece estranho esta noite, mas, em pouco mais de dois, três segundos, que é quanto dura a ilusão comigo próprio, interrompo este raciocínio, pois sei bem quem e o quê que estão estranhos. A paisagem, e sua aparente transformação, são só o eco disso. Houve um homem que filmou isto tudo; chamava-se Antonioni. 

2014 em filmes



A lista dos melhores filmes de 2014 para o À pala de Walsh já está disponível, bem como as listas individuais (acompanhadas de um textinho explicativo) de cada um dos Colaboradores - tudo ali ao lado (clicar). A minha seriação:

  1. Ida de Pawel Pawlikowski
  2. Boyhood de Richard Linklater  ex aequo com Heimat: A Chronicle of Germany de Edgar Reitz
  3. Bai ri yan huo de Diao Yinan
  4. La jalousie de Philip Garrel
  5. Ilo Ilo de Anthony Chen
  6. Interstellar de Christopher Nolan
  7. Gone Girl de David Fincher ex aequo Map to the Stars de David Cronenberg
  8. Ninphomaniac (Vol. I & II) de Lar von Trier
  9. Jeune & jolie de François Ozon
  10. Her de Spike Jonze


sábado, 27 de dezembro de 2014

contas e fantasmas



3 Corações: um filme sobre contas e fantasmas. Contas: Marc, o fiscal garante das contas públicas, "arruma as contas", as da empresa e as afectivas, de Sophie, mas "baralha as contas" daquela família, daquela unidade de três vértices (mãe e filhas), dessa contradição resultando o cardíaco "ajuste de contas" final (fatal).  Fantasmas: Sylvie diz a Marc que a sua cidade, a província, é um fantasma (há ainda um outro diálogo em que o termo "fantasmas" é referido muito a propósito); serão eles os fantasmas um do outro e, não por acaso, será sempre no escuro que "assomarão" ao outro e se amarão em segredo. A cena final ("e se...") talvez seja também só isso mesmo, um fantasma.

Água do Bongo



"Pobre de Mim" (instrumental: Pedro, o Mau), EP Água do Bongo (2014). Nerve.


Ainda não é desta. Há tempos, anunciava aqui a colecção de sobras que Nerve disponibilizava ao mundo antes do seu come back discográfico. Parece, contudo, que isso só acontecerá em 2015. Até lá, temos Água do Bongo (título genial que não deixa de apontar, novamente, para a ideia de "restos", de "excrescência"), de que "Pobre de mim" é a minha predilecta. Download gratuito ali ao lado.

Tu foste parte minha. Quando foste, parte minha levaste. E assim, sem essa minha parte, fiquei só parte de mim. Metade de mim. Fiquei pobre. Pobre de mim.  

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

proto-conformista


Um Verão Violento (1959), Valerio Zurlini.

Parece-me que ninguém viu no Carlo (Jean-Louis Trintignant) de Um Verão Violento um aspecto (uma associação, mais precisamente) muito interessante. Como o próprio expressamente afirma, ele prefere seguir a manada, abstém-se de se rebelar, chegando mesmo a dizer do seu Pai (um fascista encartado), aquando da ocupação das propriedades dos homens do regime pela população, que ele "é que tinha razão" (Carlo escapa-se à guerra não por uma posição política específica, mas simplesmente pelos contactos do Pai). Carlo é, por tudo e em tudo isto, o proto-conformista do filme que Bertolucci viria a realizar onze anos depois, protagonizado, justamente, pelo mesmo Trintignant (O Conformista). Mais velho e devidamente inserido no "aparelho", mas igualmente triste, soturno. Um autêntico tecnocrata avant la lettre. É como se fosse um raccord entre os dois filmes e, simultaneamente, uma espécie de suspensão no tempo, bastando, para o efeito, imaginar que o regime do Duce não cai no filme de Zurlini e se prolonga pelos anos que dura a vida adulta de Carlo (ou... Marcello).

sábado, 20 de dezembro de 2014

faina fluvial



André Bazin terá dito que ficara incomodado - no melhor sentido possível - com alguns planos, a seus olhos estranhos, insondáveis, de Douro Faina Fluvial (1931), e a estranheza tem razão de ser. Não sei se apenas pela composição do plano em si, senão também favorecida pela montagem ruttmaniana.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

black messiah



"Really love", álbum Black Messiah (2014). D'Angelo.
 
Ao contrário do que tenho ouvido dizer, não acho que o som de D'Angelo tenha mudado com Black Messiah. Ele, sim, está algo diferente, mais político, mas na linha poética de um Curtis Mayfield, aquela que, pessoalmente, mais me interessa. Portanto, dizia, o som é, com umas nuances rock aqui ou ali, sensivelmente o mesmo. O que, no caso, só é bom. Black is back.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Walsh #20 Crítica "Odete" (Noutras Salas)



No âmbito do ciclo "Harvard na Gulbenkian", com o qual o À pala de Walsh estabeleceu uma parceria, a Fundação Calouste Gulbenkian exibe, hoje, Odete (2005), a segunda longa-metragem de João Pedro Rodrigues e, quanto a mim, um dos grandes filmes do cinema português. A minha crítica, que me deu mesmo muito gosto de escrever, pode ser lida no local do costume - ali (clicar).


O primeiro beijo de Odete, o mesmo é dizer, o primeiro (grande) plano do filme, é tão belo quanto o beijo que Audrey Hepburn e Paul Varjak, os dois pingando à chuva, imortalizaram na última cena de Breakfast at Tiffany’s (1961, Boneca de Luxo), de Blake Edwards. Podíamos ficar por aqui, porque já teríamos dito muito, talvez o essencial, da segunda longa-metragem de João Pedro Rodrigues (...). A citação (a nossa e a que o filme explicitamente lhe faz) não é por acaso – Odete é matéria puramente cinéfila, e num duplo sentido: intradiegeticamente, na medida em que as personagens assistem, efectivamente, ao filme de Edwards (é “o” filme do casal de Odete, Pedro e Rui); mas, mais importante, extradiegeticamente, no sentido em que, com essa citação, o filme projecta a carne de que é feito: a recuperação, a reabilitação, enfim, o exercício de fazer renascer os mortos, os fantasmas, aqueles que já partiram.

(Excerto)

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Didn't I




"Didn't I", álbum Let My People Go (2006). Darondo.

sábado, 6 de dezembro de 2014

Naomi



Passei as últimas noites a tentar acabar Naomi, de Jun'ichirō Tanizaki, como se me estivessem a torturar - aliás, como se Naomi, além de Jōji, me torturasse a mim também. Acabei o livro ontem, no comboio, e a primeira imagem em que pensei depois de o fechar foi neste plano da Rosamund Pike no Gone Girl. Mais do que o perfil psicótico e manipulador de ambas as mulheres (Naomi e Amy), o que verdadeiramente liga o livro com o filme é o seu mórbido, horroroso final: em ambos os casos, a relação do casal não termina, mantém-se, mesmo depois de todas as provas dadas do que de errado, doentio, sinistro, ela comporta. O perverso nesse final é o que de pacificador ele carrega: depois do tumulto (a separação de Naomi e consequente desespero de Jōji; o reaparecimento de Amy), tudo volta ao "normal", que, no caso, significa a conformação, a resignação, a podridão do que algum dia já se pôde chamar amor e a certeza de que, dali para a frente, o inferno é condição tacita e mutuamente aceite.

Num segundo momento, quando visualizei Jōji completamente submisso às mordomias e caprichos (todos e mais alguns) e aos amantes (... todos e mais alguns, também) de Naomi, foi de Martha que me lembrei (escrevi sobre o filme aqui), encarcerada ("entrevada" nunca fez tanto sentido), no final do filme, numa cadeira de rodas, e, por isso, definitivamente presa na masmorra barroca tutelada por Helmut.



Conversas à Pala no Porto #2 Porto Post Doc

A segunda edição das Conversas à Pala, que teve como objecto o festival Porto Post Doc e convidado o Director Dario Oliveira, já pode ser vista e ouvida - ali (clicar). Bom festival.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

"ir às vistas"

Oiço, de passagem, na RTP Memória, um senhor muito velhinho, médico vetusto, dizer que, no tempo dele (anos 20, 30), ele e os amigos tinham o hábito compulsivo de "ir às vistas". Fico curioso e, quando me aproximo da televisão, vejo umas cenas dos filmes do Chaplin a passar. Ir ao cinema, portanto. Ir às vistas: como se de uma paisagem se tratasse, pela qual o olhar se demora, contempla, perde... Cinefilia em estado puro.

boyhood



Saí do Boyhood como pude. Isto é, queria ficar até ao fim dos créditos, mas, mal começaram a rolar, não quis passar vergonhas, por isso levantei-me como um fósforo e saí, lá está, como pude, cambaleando, canhestro. Mas nem por isso o acaso me foi gentil quando eu mais precisava e, portanto, as portas automáticas do estacionamento não funcionaram. Com uma mão a tapar a cara de uma luz que não existia, pedi ao segurança, de longe, que resolvesse o problema. Meti-me no carro. Mandei mensagens a duas ou três pessoas da minha vida e deitei-me com a certeza de que finalmente tinha percebido o meu Pai quando diz que, às vezes, mais vale não ir ao cinema (a outra certeza, que já não é de agora, é que o Ethan Hawke é o melhor actor do mundo, sobretudo a ser desvalorizado e, culpa do próprio, a escolher alguns dos filmes em que se mete).

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Walsh #19 As escadas que nos descem/Strangers on a Train (Sopa de Planos)



Grande caldeirada, esta, em torno das escadas, topos cinematográfico por excelência. Tive dificuldade em decidir-me (acontece-me sempre isto: lembro-me de uma série de planos, que já abordei em filmes sobre os quais escrevi crítica, sobre o objecto em causa, e faço um esforço olímpico para me aventurar por outras paragens), mas eis Bruno, esse psicopata charmoso que só Hitchcock saberia fabricar. Leiam tudo aqui (clicar).


Se pensarmos em escadas e terror no Cinema, rapidamente nos virão à memória cenas óbvias de filmes de Hitchcock, Lang, Brian De Palma, Dario Argento, Kubrick, Polanski. Na grande maioria das vezes, a utilização das escadas serve como uma ferramenta de construção do suspense intra e extradiegeticamente, i.e., de indução de ansiedade nas próprias personagens e no espectador: é o ruído do pisar das escadas (muitas vezes fatal), é o vulto que fugidiamente passa de um patamar para o outro sem que o possamos (nós e as personagens) identificar, é a “subida” que as escadas potenciam para a descoberta de uma verdade, um segredo, um crime cruel, que habitam no topo da casa (mormente, no “sótão”, mito dos mitos habitacionais). Ora, em Strangers on a Train (O Desconhecido do Norte-Expresso, 1951), encontramos aquelas que são das escadas mais assustadoras que nos lembramos de ver no Cinema sem o recurso, curiosamente, a todos esses engenhosos artifícios, porque o efeito, aqui, é outro. A imensidão das escadas (linhas horizontais), conjugada com a monumentalidade das colunas (linhas verticais) sobre elas apoiadas, porque desajustada da escala humana, cria uma perfeita sensação de esmagamento, brutalidade, de “diminuição” ou apagamento do indivíduo (não é por acaso que as grandes ditaduras, sobretudo o fascismo italiano, usaram e abusaram de opções arquitectónicas nesta linha). Mas agora veja-se o paradoxo: nessa realidade desajustada da escala humana, vemos, ao longe, um ponto, um vulto: trata-se de Bruno, com quem Guy, numa “strange” viagem de comboio, acertou um duplo perfect murder. Ao contrário do que seria de supor pelo que escrevemos atrás, a figura de Bruno não está “diminuída”, não é “insignificante”, não é, enfim, um ponto minúsculo na paisagem. Bem ao invés, e porque neste momento do filme Guy se sente já profundamente aterrorizado pela perseguição constante de Bruno, que parece “estar em todo o lado” (ilustra-o, além desta, a cena nas bancadas da partida de ténis), Bruno, pese embora a paisagem colossal em que se encontra enquadrado, parece que “cresce”, que se agiganta, qual stalker omnipresente – “He sticks so close he’s beginning to grow on me – like a fungus”, dirá Guy.