quarta-feira, 30 de abril de 2014

Walsh #9 - Bátega de cinema/Casablanca (Sopa de Planos)



Ainda no À Pala de Walsh, passei também a escrever na rubrica Sopa de Planos (a origem da rubrica aqui)uma das mais estimulantes e que, pessoalmente, mais gozo me dá de exercitar. Para este mês, o plano-tema agregador escolhido foi o da chuva e o meu contributo partiu de um clássico, Casablanca (1942, Michael Curtiz), ideia que já havia sondado - muito apaixonadamente -  neste blog e que agora tive oportunidade de desenvolver (não menos apaixonadamente). Podem, então, ler a "Bátega de cinema" ali ao lado (clicar).

Uma vez que tive de fazer ligeiros cortes ao texto original, deixo aqui a versão completa.


Costuma dizer-se, mais optimista do que realisticamente, que a água lava tudo (ou que, e adulterando um título cinematográfico não menos clássico que Casablanca, “tudo a água leva”). Há quem, inclusive, aprecie o Inverno por ser a estação do ano que, graças às suas crónicas chuvas, permite “lavar” as tristezas e as mágoas vividas nos restantes dias do ano. O que não deixa de ser irónico quando tão frequentemente associamos a chuva à tristeza e à melancolia (rainy days…) – como pode uma tristeza lavar outra tristeza?

Em Casablanca, porém, o adágio de que a água lava tudo não podia ter contrapeso maior: na verdade, para o amor de Rick e Ilsa, ou, sendo mais exacto, para Rick, a água não lava coisa nenhuma. Numa noite em que chove copiosamente – melhor: em que o céu “chora”, como que antecipando o que se passará a seguir –, Rick aguarda ansiosamente, como combinado, por Ilsa na estação donde deverão apanhar o comboio que os levará para Marselha, evitando, assim, a iminente chegada dos nazis. A chuva, intensa e ruidosa, só acentua a sensação de incómodo e urgência em abandonar Paris (mesmo para aqueles que will always have it…).
Ilsa, porém, nunca aparecerá. O único – e, então aparentemente, último – sinal que Rick terá seu é o bilhete que lhe deixou no hotel, e que lhe é trazido por Sam. Encharcado, e esquecendo-se, por momentos, da chuva, Rick lerá, com um soco do tamanho do mundo no estômago, esse bilhete, momento em que Michael Curtiz já nos comoveu com um plano subjectivo sobre as palavras escritas por Ilsa. A água não lava nada: não lava aquele que é, sabemos nós e sabe-o Rick, um amor para a vida/um amor de uma vida, ao qual Rick continuará irremediavelmente preso. A água não lava nada: a água borrata, sim, a tinta das palavras, fazendo com que esta se espalhe como uma mancha (de amor, de sangue) que aumenta, alastra, ameaçadoramente, no que plasticamente sugere o paradoxo que é o do amor ganhar ainda mais força (ao menos num sentido trágico) nos momentos de ruptura abrupta em que uma das partes fica “sem pé”. Simultaneamente, porém, personificado nessa tinta sangrenta, o amor escorre do papel, esvai-se, foge-lhe (a Rick) por entre os dedos. É esta a duplicidade confusa, pungente, que a chuva gera: por um lado, nada lavando, indicia o amour fou a que Rick ficará agarrado para a vida, mas, por outro, é ela que faz desaparecer o último sinal de vida de Ilsa, desbotando as suas palavras para um qualquer ralo de esgoto. A chuva dá e tira.

Chove por todo o lado – e todos chovem/choram: o céu, a carta, Rick (quem se atreve a distinguir no seu rosto o que é água da chuva e o que são lágrimas?) e, advinhamos, Ilsa.

terça-feira, 29 de abril de 2014

Walsh #8 - Crítica "Trial on the Road" (Raridades)


Trial on the Road (1971), Aleksei German.

Cheguei a Aleksei German (falecido em Fevereiro último) através de um artigo, "O Último Filme Soviético?", publicado há tempos na Atual (15-02-2014), que dava conta do furor que o seu último filme, Hard To Be a God (2013), havia causado no Festival de Roterdão. Do artigo aos seus filmes foi um passo e o resultado está na crítica (rubrica Raridades) que este mês assino no À Pala de Walsh sobre o seu filme Trial on the Road (1971). Censurado pelas autoridades soviéticas e pouco conhecido no Ocidente, German é um dos mais subvalorizados cineastas modernos - colocado pela crítica russa ao lado de Tarkovsky, um dos meus dilectos - que importa urgentemente (re)descobrir. Comecem, então, por Trial on the Road - a minha crítica aqui ao lado (clicar).

"E se o filme foi censurado (...) é porque os censores soviéticos não eram estúpidos de todo (...). É que um visionamento mais apressado do filme poderia sugerir a personificação do “herói soviético” (...) em Lazarev, ao menos a partir do momento em que este retorna às tropas soviéticas. Mas o filme não pretende, de todo, concorrer para essa visão das coisas; pelo contrário, em momento algum, Lazarev, homem de poucas palavras e que parece carregar o peso do mundo nos ombros, invoca o “socialismo”, o “bolchevismo” ou o “Partido” para tentar fazer crer na sua lealdade. Não, Lazarev é só um homem comum (era taxista antes da guerra, um “trabalho normal: girava o volante e juntava as gorjetas”, como conta a Inga) que, como tantos outros, perante a morte iminente, optou por sobreviver (há um gesto de carinho por estas “pessoas comuns”, na senda da declaração de amor explícita que German lhes dedica na cena inicial de My Friend Lapshin, de 1984)".

(Excerto)

domingo, 27 de abril de 2014

Et Dieu créa la femme



Isto dito, forçoso é concluir que o Roger Vadim devia ter esperado uns anos antes de filmar. Entretanto, além de se confirmar o que já se sabia, é curioso, sinistro e impressionante como a Marine Vacht da "vida real" (é percorrer o google imagens ou ver esta entrevista) parece transportar no rosto a mesma atitude indiferente, quase-autista, misteriosíssima e vagamente desafiante que a sua personagem transmite neste notável Jeune & Jolie. Para além de tudo isto (i) mulher mais bonita do planeta; ii) similitude no e fora do cinema), importa sublinhar o mais importante: ganhou-se uma admirável actriz (em trânsito do mundo da moda) que, nem de propósito, contracena, naquele final assombroso, com uma das mulheres mais bonitas e talentosas da sua geração (a Rampling, claro).

sexta-feira, 25 de abril de 2014

25 de Abril



"Inquietação", LP Ser Solidário (1982). José Mário Branco.

Inquietação: ponto onde o colectivo e o meu individual se encontram. Um, dois, três vivas a este dia e à Liberdade.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

O (meu reflexo do) Espelho



"Para dizer a verdade, coloco-me naquela categoria de pessoas que são mais aptas a dar forma às suas ideias através da polémica - coloco-me inteiramente do lado daqueles para quem só se chega à verdade por intermédio do debate. Quando tenho de analisar sozinho uma determinada questão, a minha tendência é cair num estado contemplativo que se ajusta muito bem à tendência metafísica da minha personalidade, mas que não propicia um processo de criação ágil e vigoroso, uma vez que resulta apenas em material emocional para a elaboração - mais ou menos harmoniosa - de um arcabouço para as minhas ideias e concepções".

Andrei Tarkovski, Esculpir o tempo, 3.ª ed., Martins Martins Fontes, São Paulo, 2010, p. 7 (das melhores aquisições feitas no Rio de Janeiro).

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Crítica - "5-30"



Como tinha prometido há uns dias, a minha crítica ao álbum dos 5-30 (com título homónimo) foi agora publicada, podendo ser lida aqui ao lado (clicar). Como sempre acontece nestas coisas, já depois de ter o texto pronto, apanhei um sem-número de pormenores deliciosos avulsos ao longo do álbum de que não me tinha apercebido nas - e foram muitas, mesmo assim! - audições anteriores. É o que acontece com os versos do Sam the Kid na "Placas", uns por serem autênticos blocos de pedra que só o tempo ajuda a partir (i.e., versos sobrepostos em que a a métrica, a dicção e a fonética são a tal ponto trabalhadas e sofisticadas que só audições várias e atentas permitem decifrar, em pleno, o texto), outros por serem, digamos, e passe o palavrão, "intra-diegéticos"/auto-referenciais [a um deles faço referência no texto: «(...) e, sobretudo, de “Dou-lhe Com A Alma” (1995) e “3º Capítulo” (1997), este último o tal “álbum da palma” (conferir respectiva artwork) para o qual Sam the Kid diz ter gravado por já então lhe dar “com a alma”, passagem genial (apetece dizer: “intra-diegética”) que se ouve em «Placas», uma das melhores faixas de “5-30″»].

Bom, fica o convite: à música e à crítica (aqui).


No lançamento do recente “G I R L” (2014), Pharrell Williams justificou, repetidamente, a importância do álbum para o rebate da “misoginia” que muitos lhes apontaram pelo vídeo («Blurred Lines») em que, acompanhado de Robin Thicke e T.I., cortejava as maminhas de umas quantas giraças (como se isso fosse algo de novo para esta malta, mas adiante). Os 5-30, num caminho diferente, foram bem mais honestos: como já disseram em entrevistas, este é um álbum de “homens” e não de meninos, pelo que aqui as coisas são ditas como elas são, sem paninhos quentes ou moralismos de conveniência. Isso não faz de 5-30 um álbum misógino, mas sim um álbum que, “chamando os bois pelos nomes”, olha as coisas de frente e fala com verdade (aquela verdade que talvez só o hip-hop, na sua oralidade instantânea e esmagadora, alcança) sobre o que os olhos vêem: drogas, mulheres, homens, dinheiro, amor, sexo, vícios (como muito acertadamente já referiu Carlão em entrevista, em «Pitas Querem Guito», por exemplo, o homem fica tão mal na fotografia como a mulher).

(Excerto)

quinta-feira, 17 de abril de 2014

quem cala não consente






Cronaca di un amore (1950), Michelangelo Antonioni.

Escândalo de amor é o título do filme em português e, como escrevi então na minha crítica (que podem ler aqui), "parece-nos, por uma vez, que a tradução do original se revelou, se bem que não fiel, muitíssimo justa, sendo um destes casos em que, fazendo mais jus ao filme do que o próprio original, permite entreabrir outras portas interpretativas. É que o escândalo, aqui, é não só o do amor em si mesmo (enquanto coisa “escandalosa”, i.é, absoluta, arrebatadora, catártica), mas, outrossim, das suas concretas reverberações – escândalo, portanto, social (o amor entre ricos e pobres) e moral (à parte o facto de Paola ser casada, avulta, sobretudo, a morte de Giovanna como fantasma punitivo desse amour fou)".

Revisitei esta cena e "escandalizei-me" novamente: com o amor trágico que une estes dois seres, com o permanente e ameaçador fatum que os cobre, com o modo, já tão antoniano (1950, primeira longa), de filmar o espaço e a coreografia elegante, ainda que frágil, dos corpos, enfim, com essa trémula música que impõe a sensação de que as coisas não podem correr bem



quarta-feira, 16 de abril de 2014

drowning, sea, tears, water



"Drowning In The Sea of Love", álbum Joe Simon (1972). Joe Simon.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

cinema e liberdade em Guimarães


Fugiu um Condenado à Morte (1956), Robert Bresson.

O Cineclube de Guimarães, dos mais activos e interessantes no panorama cineclubístico português, inicia, na próxima semana, 15 de Abril, o Ciclo "Liberdade", por ocasião da celebração da Revolução de 25 de Abril, com o filme Chove em Santiago (1984), de Helvio Soto.

Através de um simpático convite, escrevi a folha de sala do filme com que o ciclo fechará, a 17 de Maio: Fugiu um Condenado à Morte (1956), do Bresson. No tempo devido, publicarei por aqui esse texto; até lá, não há desculpa melhor para visitar o C. C. Vila Flor e, sobretudo, uma cidade tão singular como Guimarães. Bons filmes.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

outras coisas

Não tenho por hábito fazer aqui menção das coisas que publico ligadas à minha formação e profissão, isto é, ligadas ao Direito. Abro agora, no entanto, uma excepção, por se tratar de um artigo que, não obstante o seu ponto de vista eminentemente jurídico, possui ressonâncias além-Direito, já que incide sobre os "cortes" sociais (compressão dos chamados "direitos adquiridos") e sua contextualização na actual crise económica, assim como as repercussões desta última no plano jurídico-constitucional, jurídico-obrigacional e jurídico-político. Para os interessados, o artigo intitula-se "A erosão do contrato social e os perigos para o pacta sunt servanda: estaremos dispostos a arcar com todas as consequências?" e está publicado no recentemente editado número nono da Revista de Direito Público, Janeiro-Junho 2013, pela Almedina (v. ali).

sexta-feira, 4 de abril de 2014

o Bresson que há em mim


Au Hasard Balthazar (1966), Robert Bresson.

Nunca tinha pensado nisto, mas agora que ando a escrever - e a recuperar algumas ideias, com o tempo desbotadas - sobre o Bresson, dei-me conta que este meu post é muito bressoniano - ou melhor, que essa coisa da obsessão por um rosto que é uma folha em branco escancarada para as coisas e para as palavras, o mistério e a neutralidade límpida reflectores de serenidade e de um certo desligamento solipsista em relação ao mundo tem muito da filosofia dos "modèles" (curiosamente, certos modelos, entenda-se das passerelle, não deixam de ostentar um rosto rigidamente blanche, neutro, como, creio, o Bresson apreciaria). Não é que seja relevante, mas não sei exactamente o que isso diz de mim.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Darling




"Darlin", álbum E&J (2014). Dag Savage.

Das mãos de um dos mais elegantes produtores (Exile) da actualidade só podia sair uma preciosidade assim. E&J ainda há pouco saiu e já temos a certeza de que é um dos álbuns de hip-hop do ano. Cheers.