sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Jean Seberg, New York Herald Tribune

 
 
Faz agora 60 anos que "À bout de souffle", de Jean-Luc Godard, inaugurava novos ventos para o cinema europeu. Nesse sopro, há uma música inesquecível que faz levitar Jean Seberg pelos boulevards de Paris. Para Martial Solal, um dos maiores pianistas de sempre ainda vivo, nome sem qual o piano jazz não existiria como o conhecemos, o cinema é apenas um dos muitos domínios em que pôde explorar a sua infinita curiosidade.
 
Entrevista esta sexta-feira no ípsilon
 
 

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

sizzlin' hot!





(LP Sizzlin Hot, 1981, Paradise)

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Angola




 
(LP Celebration, 1992, Bheki Mseleku)

Se algum perigo se aproximar / Proteja aquilo que te mantém vivo no ar



Marcos Valle contra a asfixia: o grande “meteorologista” da música brasileira está de volta, político e romântico, baladeiro e groovesco.
"Cinzento" no ípsilon da última sexta-feira
 
 

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020



(Cleópatra, 2007, J. Bressane)


(O Táxi nº 9297, 1927, Repórter X)

 
Grande trabalho de composição (música clássica e, sobretudo, electrónica) de Igor C. Silva na passada terça-feira, na Casa da Música, para "O Táxi nº 9297", de Repórter X - a certa altura, viam-se ele e um outro elemento do Remix Ensemble, um de cada ponta, de megafone nas mãos. Um DJ a trabalhar em real-time no scratch (um Nel'Assassin, um DJ Ride, por exemplo) só acrescentaria músculo e brilho a esta proposta.


(Big Wednesday, 1978, J. Milius)

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

notes to self

A Hidden Life (T. Malick) ●
Liberté (A. Serra) *
A Vida Invisível (K. Aïnouz) **
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Big Wednesday (1978, J. Millius) ***
O Táxi nº 9297 (1927, Repórter X) ***

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

swell





(Big Wednesday, 1978, John Milius)

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Mother's Love





(LP Éthiopiques 21: Piano Solo, 1996, Emahoy Tsegué-Mariam Guèbru)

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020



(Beduino, 2016, J. Bressane)
"A avó Baby disse que as pessoas a olhavam de alto porque tinha oito filhos de homens diferentes. Os negros e os brancos olhavam-na ambos de alto por causa disso. Os escravos não devem ter coisas agradáveis só deles (…)".

(Beloved, T. Morrison)

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020



"Não sei se se recordam de uma estátua em mármore branco, homenagem a Eça de Queiroz, com a inscrição “Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia”, que havia no Largo Barão de Quintela, à Rua do Alecrim. Foi retirada em 2001 e substituída por uma cópia em bronze porque era sistematicamente vandalizada. Obra de Teixeira Lopes de 1903, figurativa e alegórica, sempre me surpreendeu a violência da sua sistemática vandalização, desde as mãos decepadas, o sexo da musa objecto de inscrições obscenas, tudo o que a boçalidade pode inventar. (…) Donde, a questão da vandalização não reside na maior ou menor componente manual, na modernidade da solução estética e no seu hipotético hermetismo, mas numa cultura de agressividade em relação ao que não parece ter outro propósito senão a fruição pública. Enfim, uma lacuna cívica que, não podendo ser combatida, só pode ser anulada pelo paciente e reiterado restauro.
(…)
1. A arte nas cidades tem sido historicamente inerente à própria noção de espaço público, isto é, de espaço que é fruído colectivamente. A arte no espaço público, ao contrário da arte que se encontra nos museus, não requer uma vontade específica por parte dos seus usufrutuários de ser visitada. Quando vamos a um museu vemos arte porque assim escolhemos. As obras são enquadradas por um contexto que é o do lugar dedicado à sua apreciação, com processos de mediação. (…) Quando somos confrontados com arte no espaço público, as obras atravessam-se à nossa frente e não temos outro contexto para a sua apreciação senão a nossa sensibilidade, o que nelas reconhecemos ou, nos casos mais pobres, a metáfora que nos propõem.
2. A arte no espaço público é, por isso, ingrata. Não pede autorização e atravessa-se no nosso caminho, umas vezes incómoda, outras vezes impositiva. Não tem mediação, nem tradução — pode ser uma proposta de reenquadramento da paisagem, uma evocação ou memento. No caso da obra de Cabrita Reis é um enquadramento da paisagem, uma estrutura rígida e branca e vertical que se contrapõe à mobilidade e horizontalidade da linha do horizonte do mar. Faz aquilo que a arte da paisagem sempre fez: propõe uma visão estruturada do nosso campo visual, faz ver o já visto através de uma outra estrutura perceptiva, recorta-se contra o campo da visão na distância. Pode-se tocar, porque está lá, no espaço público e torna o campo visual mais consciente para o espectador. Por outras palavras, amplifica a experiência do campo visual porque, para quem se disponibilizar para tal, propõe uma ordem diversa em relação ao horizonte.
(…)
3. (…) A arte no espaço público precisa de tempo para estabelecer cumplicidades com os habitantes. Frequentemente demora até ser integrada nos afectos colectivos, até encontrar o seu lugar de pertença. Há um enorme historial de obras que são recusadas no momento em que são edificadas e, posteriormente, vêm a encontrar um afecto que as assimila. O que é compreensível, mas é preciso dar tempo ao tempo, deixar que se instaurem relações, que os passeantes por ela passem, que nela encontrem os seus usos. E, entretanto, cuidar das obras que, apesar do seu aspecto massivo, são criaturas frágeis, sujeitas à intempérie e aos populistas que pretendem que tudo deve ser assimilado instantaneamente. O tempo da fruição artística não é o mesmo do tempo de fruição de outras manifestações de entretenimento, sobretudo no caso em que os seus destinatários são indiferenciados e os processos de mediação inexistentes.
4. Claro que existem sempre vozes que clamam por um qualquer mínimo denominador comum estético, uma ficção de estética universalmente agregadora que, sendo instantaneamente reconhecida, não suscitaria qualquer atrito porque mergulharia no comum. Só que este comum não existe na diversidade do mundo moderno. A linguagem artística do consenso é uma caricatura de um qualquer neo-classicismo, refeito e macerado até não se compreender de que contexto cultural, político, criativo e colectivo emana até perder qualquer relação com o seu tempo e, portanto, qualquer tipo de oportunidade. Não precisamos para nada de obras de arte que mimetizem a arte do passado, não porque a arte do passado e os seus tópicos de representação, simbolismo ou competência técnica sejam despiciendos, mas precisamente porque, sendo poderosos, sobreviveram e podemos fruí-la.
5. A história da arte dos últimos 120 anos tem vindo a espelhar o atrito inerente ao mundo, mas também a colocar uma permanente interrogação sobre a relação da arte com a própria materialidade das coisas porque o não-artístico foi invadindo progressivamente o campo tradicional da arte: o vernáculo na literatura, o gesto quotidiano na dança, o ruído na música, o objecto e a imagem comuns nas artes visuais. Este esborratamento de fronteiras dificilmente pode ser considerado elitista, mas por vezes dificulta o reconhecimento do Artístico — sim, desse A grande e hierárquico que fundamentou a academia e estabeleceu fascinantes e complexos sistemas de significação na arte desde o Renascimento.
(…)
6. As vozes que encontram uma justificação para a vandalização da obra de Cabrita Reis numa estranheza da arte moderna e contemporânea tentam, portanto, justificar o injustificável. Pretender que um sentimento de incompreensão permite a agressão, equivale a justificar toda a violência em relação ao que não se compreende. Por outras palavras, justifica a violência face a qualquer estranheza. É dentro deste quadro intelectual que surgem as justificações piedosas da violência em relação ao outro, qualquer que ele seja. É, por isso, um mau argumento. A arte no espaço público vive de contradições que são inerentes ao seu estatuto: se, por um lado, pretende propor um reenquadramento (perceptivo, cultural) de um determinado contexto urbano, é-lhe confiada também a tarefa de evocar, unir e referenciar colectivamente. A conciliação entre estas funções contraditórias só se pode exercer no tempo, por um processo de absorção, umas vezes mais pacífico, outras mais ácido".
 
Delfim Sardo, "Violência e estranheza" in Público/ípsilon, 17-01-2020.

ser solidário




(O Mandarim, 1995, J. Bressane)

 
ponto-de-vista, vista-de-um-ponto: “Sabe, Mário, mais difícil do que a solidariedade de um homem por outro homem é a solidariedade de um homem pelo seu passado”.




"How are you doing? You guys... Take care of my son". (2014)

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020





(Tabu, 1982, Júlio Bressane)

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

notes to self

Dolemite Is My Name (C. Brewer) **
The Farewell (L. Wang) *
Uncut Gems (J. e B. Safdie) ****
J'accuse (R. Polanski) ***
Little Women (G. Gerwig) **
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Kiss Me, Stupid (1964, B. Wilder) ****

A nossa mulher fatal

"A conflitualidade gaulesa desenvolve-se a partir de dois eixos que se mantêm até hoje. Em primeiro lugar, um nacionalismo que atravessa todo o espectro ideológico e que, alimentado por une certaine idée de la France, tanto se manifesta na politique de grandeur do general De Gaulle como na force tranquille de Mitterrand (que, em 1985, encomendou a construção de uma estátua de Dreyfus, provocando algumas reacções nos meios militares), na visão de uma Joana d’Arc racista e xenófoba difundida pelo clã Le Pen, pai e filha, até aos protestos antiamericanos e antiglobalização que levaram à vandalização de restaurantes McDonald’s pelos agricultores vindos do pays réel, capitaneados por Joseph Bové, um sindicalista de cachimbo nos lábios e fartos bigodes à Astérix. França é dos países em que a vida política e o debate público mais gravitam em torno da frustrada (e frustrante) tentativa de resposta à famosa pergunta de Renan, o que é uma nação?, e, mais precisamente, à pergunta eterna, sempre insatisfeita, sobre o que é a nação francesa e qual o seu destino.
 
A indagação conduz a resultados próximos de um transtorno bipolar, com alternância de estados eufóricos (o culto dos grandes heróis, as grandes celebrações patrióticas, a exaltação da língua e da cultura francesas, da excelência culinária e do requinte da moda, as vitórias no futebol) e de momentos de depressão profunda ou vergonha autopunitiva (a dominação colonial racista, o colaboracionismo de Vichy, o drama dos pieds noirs, os atentados terroristas em Paris, o drama da “integração” de minorias cada vez mais numerosas). Entre os pólos extremados da euforia e da vergonha, prevalece de permeio um sentimento pardacento, crepuscular, o ennui acinzentado nascido da autoconsciência da indisfarçável derrocada — da França e da Europa —, o que já deu azo ao surgimento de uma disciplina a que chamam “declinismo” e que, com cambiantes vários, tem numerosos cultores, desde pensadores profissionais como Marcel Gauchet a escritores pseudomalditos como Michel Houellebecq.
 
O segundo eixo revelado ou potenciado pelo caso Dreyfus relaciona-se com o estatuto dos intelectuais ou, talvez melhor, com a intelectualização de toda a vida nacional, pública e privada. França é um país em que uma vulgar conversa de um casal ou um diálogo corriqueiro entre pais e filhos facilmente resvalam num interminável debate filosófico, com argumentos mais do que racionais de ambos os lados, expostos com rigor cartesiano e limpidez cristalina, para no final todos regressarem confortavelmente às suas posições de origem, perfeitas e inamovíveis. Na esfera pública, os intelectuais têm uma aura profética e quase sacral, que noutras paragens é reservada às celebridades pop (…).
 
A questão, todavia, é mais funda e não se circunscreve aos mandarins da academia ou aos escritores que todas as noites monologam nas televisões em horário nobre. A questão é digamos assim, de intelectualização de toda a sociedade, de cima a baixo, já que a noção de “intelectual” se vulgarizou e democratizou ao extremo: em cada francês há um intelectual público em potência, ávido de auditório e plateia, com as velhas azedas das pracetas ou os empregados de café a adorarem arvorar-se em savants com opiniões definitivas e inquestionáveis sobre tudo e mais algo coisa, tendo o irritantíssimo hábito de as expressarem mesmo quando não lhas pedimos, e, pior ainda, como se proferissem verdades últimas e revelações proféticas. França, país sem emenda, terra orgulhosa, insuportável. Mas é por isso, e muito mais, que a amamos tanto, assim perdidamente. A nossa mulher fatal (…)".
 
 
 António Araújo, "O caso Dreyfus, manual de operações" in Público/ípsilon, 31-01-2020.

a ondular

"(...) e, subitamente, lá estava Sweet Home a ondular, a ondular, a ondular perante os seus olhos; e, embora não existisse naquela plantação uma única folha que não lhe desse vontade de gritar, Sweet Home desenrolava-se à sua frente com uma beleza desenvergonhada. Na verdade, nunca parecia tão terrível como de facto era, e levava-a a perguntar-se se o inferno não seria também um local bonito. Teria fogo e enxofre é claro, mas escondidos em matagais rendados. Rapazes pendurados dos mais belos sicómoros do mundo. Envergonha-se por isso, por se recordar das belas árvores sussurrantes mais do que dos filhos. Por mais arduamente que tentasse, os sicómoros venciam sempre as crianças e não podia perdoar a sua memória por isso".
 
(Beloved, Toni Morrison)

terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Are you sleeping?




(LP The Point!, 1970, Harry Nilsson)


"Are you sleeping? Can you hear me?
Do you know if I am by your side?
Does it matter if you hear me?
When the morning comes I'll be there by your side
And in the morning when I wake up
She may be telling me goodbye, la la la la
And in the evening if we break up
I'm wondering why, I'm wondering why
There was a time, we had a time
There was a time, we had a time
There was a time, there was a time
When you were mine"

Me and My Arrow



 
 
(LP The Point!, 1970, Harry Nilsson)
 
 
"Me and my arrow
Straighter than narrow
Wherever we go, everyone knows
It's me and my arrow
Me and my arrow
Taking the high road
Wherever we go, everyone knows
It's me and my arrow

And in the morning when I wake up
She may be gone
I don't know
And if we make up just to break up
I'll carry on
Oh yes I will"

diamonds are a girl's best friend




(Uncut Gems, 2019, B. e J. Safdie)

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Everybody's gotta live


Não há tempo para despedidas: o primeiro (último?) álbum póstumo de Mac Miller, luminoso apesar de melancólico (como era seu timbre), é demasiado belo para isso.

"Circles" no ípsilon da última sexta-feira

Link: https://www.publico.pt/2020/01/31/culturaipsilon/critica/desenhar-circulo-perfeito-1901557


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Como desenhar um círculo perfeito
 
Porque os afectos e a idealização de uma intimidade partilhada por público e artista sempre tendem a toldar a apreciação de um tipo de objecto por natureza votado à aclamação acrítica como é o caso de um objecto póstumo, talvez importe começar pelo fim: o que faz de Circles, primeiro álbum póstumo de Malcolm James McCormick (não se sabe se o último, pois que, além de eventual trabalho adicional em nome próprio, falou-se já de um EP “MacLib” com Madlib), uma vera obra prima não é o facto de ser “um álbum póstumo de Mac Miller”. Em rigor, o espanto de disco que Circles é (e que, muito curiosamente, não deixa de evocar “Perfect Circle”, canção de GO:OD AM, 2015) afirma-se por direito próprio, tivesse aparecido agora ou quando Miller, diabrete franzino, fazia videoclips com os amigos no Blue Slide Park da sua Pittsburgh natal (esse onde a sua família se pronunciou, numa rara aparição pública, aquando da vigília organizada pelos fãs e cujo rebaptismo aguarda ainda pelas diligências do City Council local – entretanto, a Google e a Apple anteciparam-se e é agora “Mac Miller's Blue Slide Park" o nome do parque que se pode encontrar à face da Beechwood Blvd).
 
Desde logo porque, como insinuávamos à data do seu trágico desaparecimento, Circles vem confirmar – confirmação que nada encerra ou confina, antes uma espécie de movimento perpétuo, porta infinita que só mantém no ouvinte a ruminação sobre o que, musicalmente falando, viria a seguir – o prosseguimento da evolução do seu som, uma das mais interessantes de acompanhar na última década. The Divine Feminine (2016) havia marcado a sua guinada em relação ao hip-hop simplista (nos processos sample-based e na discursividade adolescente) dos primeiros anos de carreira (o que não impede de lá se acharem algumas belas peças, sobretudo a partir de Macadelic, 2012); Swimming (2017), mais do que confirmar essa mudança, foi um (vários, na verdade) degrau acima na construção de um som próprio (aproximado do funk, enamorado pelo indie e pela pop mais inventiva) e na exploração do canto, que, ainda com algumas arestas por limar, passava a ter o mesmo protagonismo do que o rap. Circles, fechando esse círculo perfeito, afirma-o agora definitivamente como um singer-songwriter (os trechos rappados contam-se pelos dedos de uma mão) na tradição das vozes clássicas do rock/pop/folk americanos, a ela lhe adicionando a energia e o groove da música negra (o hip-hop, o funk, o R&B).
 
Também por isso, ou justamente por isso, é que a evolução do seu som, mais do que nunca definido pelos recantos harmónicos percorridos, pelos arranjos caprichosos, pelo primor melódico, se consuma em Circles em todo o seu esplendor: digamos, para simplificar, que este é o trabalho “mais Beatles” que lhe ouvimos (“Good News”, single que anunciou o álbum e deixou meio mundo comovido, e “Everybody”, magnífica recriação do original de Arthur Lee dos Love, são pequenos monumentos a rondar a perfeição). E não só os Beatles-banda; também, ou sobretudo, o trabalho a solo dos seus membros, Lennon e Harrison à cabeça (é da autoria deste último, aliás, a raridade “Circles”, canção gravada pela banda na Índia mas que só viu a luz do dia no álbum a solo Gone Troppo, e que tem como tema central a… reencarnação). Miller que, recorde-se, tinha em Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, mas também em The Freewheelin' Bob Dylan, dois dos seus álbuns dilectos; Miller que tem espalhadas aos quatros ventos da net versões acústicas de “Lua” e “First Day Of My Life” (Bright Eyes), “Vienna” (Billy Joel) ou “Isn't she lovely?” (S. Wonder).

Citamos os exemplos deste património musical e afectivo para sublinhar uma das mais exuberantes certezas que Circles carrega: de 2016 (The Divine Feminine) a 2018, Miller vinha atravessando um notório processo de evolução e aperfeiçoamento como (multi-)instrumentista, cantor, compositor, definitivamente focado em tirar partido da sua versatilidade e do seu ouvido ágil para criar paisagens harmónicas que, aparentemente minimalistas (o tal trabalho de arranjos, “invisível” mas invariavelmente rico e minucioso), se revestem, de par com a cândida vertigem nas palavras (em que os “You” parecem ter como destinatário tanto uma amada como o ouvinte ou, sobretudo, um desdobramento dele próprio), de uma grande profundez emocional. Nesse trajecto evolutivo assumindo central protagonismo os sintetizadores (múltiplas camadas que se erguem e desmancham com a mesma suavidade), as guitarras e, acima de tudo, o piano – Miller era um grande baladista ao piano em potência (não foi por acaso que Elton John lhe prestou tributo em concerto), e as versões acústicas de "Dunno" ou "Nothing From Nothing" (outra cover, esta de Billy Preston) estão aí para o lembrar. Donde a matiz folk que, ainda ausente ou tímida em Swimming, perpassa agora “Hand Me Downs”, “That’s On Me” ou “Surf”, noutros momentos assomando lampejos de uma pop barroca ou soft rock (o piano “cantado” de Harry Nilsson; o psicadelismo lírico dos Beach Boys), da britpop dos Oasis ou do Prince de que era confesso admirador (“Hands”).
 
E se a angústia, a paranóia, a morte estão tão presentes em Swimming como agora em Circles (tendo a produção de ambos os discos arrancado no mesmo período, muito do que se ouve no segundo foi já composto posteriormente ao lançamento do primeiro), elas nunca são, porém, miserabilistas; é sempre uma melancolia luminosa, impossivelmente optimista, que, no final do dia, permanece (como o Blue Slide Park: “blue” mas simultaneamente destino de brincadeiras...). Miller assim figurando, provavelmente, como o “músico deprimido” mais positivo da música popular americana recente. Neste particular, Circles (que, em comunicado oficial, foi apresentado como tendo sido idealizado por Miller como um “irmão” do álbum anterior, donde resulta essa curiosa, algo sinistra também, ideia de Swimming inCircles), embora partilhando sensivelmente do mesmo estado de espírito, parece vindo de alguém menos reactivo, menos efusivo também, agora aparentemente pacificado ou, pelo menos, resignado com a ideia de que o mal de vivre é coisa que vai e vem conforme a onda, de que um mantra modesto como o de “That’s On Me” (“I'll let it go / I'll cut the strings / Today I'm fine / I don't know where I've been lately, but I've been alright / I said good morning this morning and I'll say good night”) é paradigmático (e por falar em circles, “círculos” ou “voltas”, vem-nos à memória uma frase batida…: “Pouco a pouco o passo / Faz-se vagabundo / Dá-se a volta ao medo / Dá-se a volta ao mundo”).
 
Miller era um músico de espírito curioso, atento, entusiasmado, quase até de uma forma infantil, pelos sons em volta, e pouco ou nada disciplinado pelos canônes ou as ideias-feitas sobre a música popular. Se uma qualquer retro-futurologia se afigura, nestes assuntos, pura perda de tempo, como não efabular, ainda assim, sobre o tipo de experiências que poderiam advir se Miller, em vez de criar no ninho (Pittsburgh, Los Angeles) que tanta matéria prima lhe deu, se decidisse, a dada altura, a passar uma temporada no Mali, no Japão, na Índia (vem-nos à cabeça o Wonderwall Music de Harrison)? Por onde poderia Miller evoluir na escrita – capaz ainda de ser burilada, assim como a sua extensão vocal – quando se visse num período de maior estabilidade e conseguisse sair “fora” de si mesmo e observar o mundo de outros prismas?
 
Numa das escassas entrevistas sobre o novo álbum, Jon Brion – veterano produtor com quem Miller tinha trabalhado já em Swimming – acaba, emocionado, a dizer que tinha uma pilha de instrumentos propositadamente de lado para Miller utilizar num futuro próximo, que há muito não se sentia tão entusiasmado por trabalhar com alguém. “Circles” é, como “Congratulations” e “Come Back To Earth” o eram, a terceira faixa inaugural em três discos que se faz despida de qualquer percussão, a voz protagonista de Miller embalada numa envolvência de grande apuro melódico e as suas palavras centrais para o entendimento do universo do disco: terá ido Miller a tempo de assim definir o alinhamento do disco? Ou terá sido de Brion a intuição semelhante à nossa? Certo é que, também nesta aparente coincidência, o círculo se completa, perfeitamente.
 
Naquela funesta madrugada, Miller havia feito, horas antes, uma publicação no “Twitter” confessando que, para o final de “So It Goes”, última faixa de Swimming, havia pedido a Jon Brion que a tocasse como se fosse uma “ascension into heaven”. É difícil não estremecer quando, logo no primeiro verso de Circles, lhe ouvimos: “Well, this is what it look like right before you fall”. A vida dá muitas voltas e a de Mac Miller, escandalosamente curta, foi das mais vibrantes e intensas da música americana da última década. Mas bom, “No matter where life takes me / Find me with a smile”, responderia ele.