terça-feira, 30 de julho de 2013

Time to meet the devil




Só Deus Perdoa (2013), Nicolas Winding Refn.

Em Só Deus Perdoa, sentimentos interiores de violência extrema permanecem recalcados na grande maioria das personagens (sobretudo Julian e Chang), como se todas elas fossem sanguinárias em potência, pelas mais diversas razões. Como se essa violência, de certo modo "natural" nos homens (e não só na sua primitiva existência animal, pois mesmo a Razão não impediu nem impede que a guerra, enquanto violência organizada, continue a ser uma realidade), fosse reprimida pelas convenções, de que o acto de Billy poderá ser visto como a radical e provocatória emancipação (com toda a gratuitidade que "time to meet the devil", dito por Billy antes da chacina, comporta). Esse recalcamento generalizado, essa base do icebergue (foi Freud quem situou as motivações violentas do lado inconsciente da mente humana), contrasta com o seu cume, ou seja, com aquilo que mais transparece à superfície: a aparente normalidade de todos (o polícia que garante a ordem; o dono que gere um clube de boxe) e mesmo a bondade ou "humanidade" dos seus afectos/gestos (o polícia "bom" que conta histórias à filha; o Julian que não consegue matar uma criança ou que aceita a "justiça" do assassínio do seu irmão).

Figuração perfeita desta violência em estado latente (adormecida mas capaz de acordar a qualquer instante) é a fornecida pelos numerosos planos das mãos de Julian. Muitas vezes filmadas em close picados, as mãos sobre as quais Julian silenciosamente medita acentuam a sua incapacidade e inquietação em domar o seu instinto de violência (daí a oscilação entre deixar vivo o assassino do seu irmão e a agressão inexplicável, sem mais, de dois homens num bar). Mãos estendidas e cheias de nada - mãos suplicantes, dirigidas a Deus, pedindo misericórdia (o forgiveness do título do filme) e rumo espiritual na vida terrena - que, volta e meia, se fecham em punhos simbolizadores de violência (de que o boxe é o produto "normalizado" socialmente aceite).

Mas, mais importante, são essas mãos que, outrora, se pintaram de vermelho-sangue, no crime edipidiano cometido por Julian ("he killed his father with his own hands", revelará a sua mãe), não sendo este um pormenor de somenos: são essas mesmas mãos, afinal, com que, ao longo de todo o filme, Julian tem alucinações/sonhos/delírios em as ver serem cortadas, como que se de um acto de justiça - "familiar" - se tratasse: são mãos que pecaram (que não estritamente no sentido religioso) e que, por isso, devem ser cortadas. Nesses delírios, é Chang que, amiúde, surge a cortá-las, assim se montando um intrincado e ambíguo sistema de "compensações": Julian, que deveria honrar a morte do seu irmão matando Chang, serve-se, afinal, deste último para sofrer a justa paga pela morte que provocou a seu pai. 

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Na hora do terror, tentava consolá-la. Eis senão quando, estupidamente, depois de improvisar alguns conselhos - genuínos mas a que a ocasião sempre atribui um tom de conveniência barata -, digo, como forma de mitigar o que de ingénuo eles eventualmente transpareçam: "mas, claro, tu sabes bem mais da vida do que eu...". Nesse preciso momento, vi o estranhamento um tanto revoltado nos seus olhos surpresos: que lhe interessava ouvir ou saber, naquela hora, que eu era menos vivido do que ela e que, por isso, os meus conselhos eventualmente teriam o seu quê de ingénuo ou fossem mesmo ineficazes? Que lhe interessava, naquela hora, saber mais da vida do que eu? Há maturidade que valha ante a dor extrema que sentimos por alguém que parte definitivamente? Não há: somos todos virgens, homens e mulheres desamparadas que se aconselham ao primeiro abraço.

quarta-feira, 24 de julho de 2013




Camille Claudel, 1915 (2013), Bruno Dumont.

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Cineclube FDUP

A minha despedida do Cineclube FDUP está aqui ao lado. Muita coisa ficou por dizer, mas, para além desse amor pessoal pelo Cinema, retenho, com muita claridade, o indeclinável papel cultural que um Cineclube pode e deve desempenhar em qualquer comunidade, enquanto lugar de reflexão e debate sobre a Arte e a cidadania (para quem, como eu, acredita em cidadãos, e não em assépticos "consumidores") - sobretudo em tempos como os nossos, em que a cinética (para usar um temo caro ao Peter Sloterdijk) acelerada das redes sociais e afins obnubilou a fundamentalidade do pensar sobre o que nos rodeia (e somos muitos os que estão preocupados com isto, por mais que a massificação do gosto e da "informação" o tente apagar) . Até sempre, meu querido Cineclube.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

anúncio para a morte


Paixão (2012), Brian de Palma.

Magistral plano, este (v. melhor aqui): o anúncio publicitário que, acima de Christine (como uma nuvem premonitória), e que, jogando com a altura dos edifícios em seu redor, ensombra a sua pequena silhueta (a pequenez dos homens ante a morte), prenuncia - ou, melhor dizendo, "anuncia", para isso se servindo dos suportes audio-visuais próprios da lógica televisiva e publicitária - o seu destino fatal. Ao que ajuda a disposição "angular" do enquadramento, que, afunilando Christine no vértice do ângulo agudo formado pelas "semi-rectas" traçadas pelas linhas inferiores dos dois edifícios, a inserem num espaço claustrofóbico, sem saída, como que um beco suis generis.

Na verdade, é o espectáculo ali anunciado que, mais à frente, será mostrado ao espectador em split screen paralelamente à cena do seu homicídio, servindo de álibi a Isabelle, que, alega ela em sua defesa, a ele (espectáculo) assistiu. Irresistível, por isso, convocar Hitchcock - referência tutorial, de resto, neste e noutros filmes de de Palma - para, recriando o título do seu filme Chamada para a morte (1954), falar, aqui, num anúncio para a morte, nem de propósito figurado de modo perversamente gracioso (o par executando o bailado Prélude à l’aprés-midi d’un faune, de Debussy), como que sugerindo o "crime perfeito" como obra de arte, como "obra-prima" mesmo. Ou, ainda, se quisermos, a encenação de um crime e respectivo álibi como performance artística.

terça-feira, 16 de julho de 2013

the last picture show


The Last Picture Show (1971), Peter Bogdanovich.

Um dos filmes da minha vida - e uma das mulheres "cinematográficas" (para quem acreditar que uma coisa é a vida e outra são os filmes...) da minha vida (a Cybill Shepherd) - vai passar, esta quinta-feira, no Passos Manuel, cortesia do Cineclube do Porto. Se ainda não viram, não percam a oportunidade. A minha crítica - muito apaixonada e, por isso, demasiado extensa -, nos idos de 2010, aqui.

domingo, 14 de julho de 2013

a suspensão


Os Quatrocentos Golpes (1959), François Truffaut.

"(...) surge então a pergunta: o que está exactamente a ser produzido enquanto diferença que ateste o trabalho específico das imagens da arte sobre as formas da imagética social? Era esta a questão que inspirava as considerações desencantadas de Serge Daney: as formas de crítica, de jogo e de ironia que pretendem perturbar a vulgar circulação de imagens não terão sido, todas elas, anexadas por essa mesma circulação? O cinema moderno e crítico pretendeu interromper o fluxo das imagens mediáticas e publicitárias ao suspender as conexões da narração e do sentido. A paragem na imagem que conclui o filme Os Quatrocentos Golpes, de Truffaut, foi emblemática no que toca a esta suspensão. Mas a marca assim posta na imagem serve afinal a causa da imagem de marca. Os procedimentos do corte e do humor tornaram-se eles próprios a vulgata da publicidade, o meio pelo qual esta, simultaneamente, produz a adoração dos seus ícones e a boa disposição que nasce a seu respeito a partir da própria possibilidade de ser ironizada.

É certo que o argumento não tem um valor decisivo. Por definição, o indecidível deixa-se interpretar em dois sentidos. É então também necessário recorrer discretamente aos recursos da lógica inversa. Para que a montagem ambígua suscite a liberdade do olhar crítico ou lúdico, é preciso organizar o encontro segundo a lógica do face-a-face ostensivo, re-(a)presentar as imagens publicitárias, sons disco ou séries televisivas, no espaço do museu, isoladas por trás de uma cortina em pequenas cabines escuras, que, ao deterem os fluxos da comunicação, lhes conferem a aura da obra. Ainda assim, o efeito nunca está garantido, já que é necessário colocar uma legenda à entrada que explicite ao espectador que, no espaço em que está prestes a entrar, irá reaprender a percepcionar e a distanciar-se do fluxo das mensagens mediáticas que habitualmente o subjugam".

Jacques Rancière, O destino das imagens, Orfeu Negro, 2011, pp. 41-42.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

magna capa


Álbum Magna Carta... Holy Grail (2013), Jay-Z.

Podemos não estar de acordo quanto aos méritos do mais recente álbum de Jay-Z; mas que a capa com que vem à boleia se arrisca a ser a capa do ano, tenho poucas dúvidas. Alusão ao casal Jay-Beyoncé (sleeping every night next to Mona Lisa, como se ouve em "Picasso Baby"), é um portento artístico que, sob uma gravitas mitológica e austera, remete, metaforicamente, para o reinado mediático, discográfico e comercial de dois "deuses" planetários da era em que vivemos.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

don't marry him, don't marry him



"Take a Fall For Me" (com RZA, dos Wu-Tang Clan), álbum Overgrown (2013). James Blake.

"Sex shapes the body,
Truth shapes the mind"