sexta-feira, 30 de maio de 2014

Walsh #11 - Das imagens floridas/Wolke 9 (Sopa de Planos)


Wolke 9 (2008), Andreas Dresen.

A nova Sopa de Planos do À Pala de Walsh está aí, desta feita dedicada às... flores. Demorei algum tempo a encontrar o plano adequado, mas, pessoalmente, fiquei muito satisfeito com o resultado (mais do que o meu texto, com o plano escolhido). Não deixem de ler e... cheirar. Neste jardim aqui ao lado (clicar).

O título do filme de Andreas Dresen terá baralhado muita gente: “Wolke 9 (Cloud 9, em inglês)? Porquê? Nuvem nove?!”. Para os americanos, a expressão (being oncloud 9 significa um estado extremo de alegria ou euforia, ou seja, e em bom português, “estar nas nuvens” (tudo porque, na classificação científica das nuvens, que a há, a nona categoria corresponde à cumulonimbus, a nuvem que mais alto se consegue elevar). O que não deixa de ser curioso, uma vez que a alusão às nuvens tanto serve este sentido (de alegria), como o diametralmente oposto (alguém que vive com “nuvens na cabeça”; os dias serem “nuvens cinzentas”). Certo é que, não por acaso, neste plano, nenhuma nuvem – das últimas, as tristes e amargas – pontua o céu: o céu está limpo e a sua tonalidade ligeiramente violeta faz um dégradé lindíssimo com o vermelho exuberante da imensidão de flores que, em profundidade, nos leva até aos dois vultos que vemos, ao fundo, montados numa bicicleta. À frente vai Karl; no seu encalço, Inge, uma mulher na casa dos sessenta que, casada há mais de 30 anos com Werner, encontra em Karl uma renovada fonte de amor, de carinho e desejo. Tal como acontece com as flores, Inge desabrocha nesta Primavera (é a “Primavera da sua vida”, por oposição ao seu outonal/invernoso casamento), estação, aqui, de um vermelho primário (o das flores e o da própria Inge, que, como se costuma dizer, ganha outra cor), em sintonia com o “primitivismo” do seu amor por Karl, porque, afinal, na juventude ou na velhice, o amor faz-se de passeios de bicicleta, de piqueniques à beira-rio, de cumplicidades tolas. Na juventude ou na velhice, o amor é estar na… wolke 9.


segunda-feira, 26 de maio de 2014

Say I wanna know




"Say I Wanna Know", álbum Time's All Gone (2012). Nick Waterhouse.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

I was checkin' out she was chekin' in

 
"I Was Checkin' Out She Was Checkin' In", álbum Super Dude I (1973). Don Covay.
 
É, provavelmente, a melhor canção sobre traição que já ouvi. No entanto, tenho para mim que seria ainda mais bela - e a verdade é que a letra permite essa leitura -  se as personagens envolvidas não fossem marido e mulher, mas sim antigos amantes  ("amantes" não no sentido de escapadela, mas de namorados ou companheiros de um amor assolapado) que, tendo-se separado e desaparecido do mapa um do outro há muito tempo, se encontram, como descreve a letra, no parque de estacionamento de um hotel.
 
An all of a sudden another car
pulled up on the parkin' lot
But I couldn't believe my eyes
'Cause the woman that was sitting
in the front seat beside another dude
Turned out to be my old lady

quarta-feira, 21 de maio de 2014

87 anos; poucos de memória

Tinha 87 anos; poucos de memória. Os suficientes para se lembrar da casa onde, até casar, havia vivido com os seus pais (curiosa a inversão, a que os médicos atribuem carácter patológico, pela qual, quando a memória fraqueja sem piedade, as primeiras memórias se nos reavivam com nitidez).
Tinha 87 anos e, por essa altura, começou a rondar com regularidade a antiga casa dos seus pais, sem saber que, hoje, essa casa era outra, que os seus pais já não faziam parte deste mundo. Procurava os pêssegos que, encavalitada nas costas do pai, arrancava dos ramos das árvores, tentava entrever a casota do cão a que a sua irmã sempre dera mais atenção que ela própria, esforçava-se por ouvir o chiar do baloiço.
Certa vez, foi a uma consulta e o marido contou à médica sobre as suas incursões. Diagnosticaram-lhe uma doença comum, essa que funde a alienação com o romantismo, a infantilidade com o idealismo, enfim, um certo renascer, tolo e belo, na velhice. A médica aconselhou o marido a não contrariar os seus ímpetos e receitou o que era devido. Por essa razão, o marido passou a acompanhá-la, diariamente, religiosamente, nessas rondas, fazendo o melhor que sabia. Numa delas, insistindo impacientemente com o marido que queria entrar em casa (se era sua, por que motivo não havia de entrar?), este não viu outra solução que não tocar à porta de casa. Um homem dos seus 30 e poucos anos assomou. O marido explicou-lhe, por meias palavras e sobrolhos embaraçados, o caricato da situação, que a sua mulher já não estava muito bem da cabeça, coitada, que pensava que aquela era a casa que em tempos fora a sua e dos seus pais. Foi tudo muito constrangedor, mas o homem acedeu e deixou-os entrar. Disse-lhe que era o carpinteiro e que o seus pais haviam saído justamente há momentos, que não sabia se voltariam tarde ou cedo, que não tinha ideia, que tinha trabalho para fazer por toda a casa. Ela estranhou o carrinho de bebé ao lado da mesa de jantar, mas não fez caso. "Bem, não o quero incomodar, os meus pais certamente não apreciariam, como saberá se trabalha nesta casa. Se não sabe quando eles voltam, diga-lhes que passei cá e que vou dar um passeio, que talvez volte mais logo à noite". Não chegou a ir ao jardim.

domingo, 18 de maio de 2014

amor/amei

Há uma dissonância essencial entre o tempo-substantivo (a passagem do tempo) e aquilo a que estamos habituados chamar de tempos verbais (tempo-verbo, neste sentido). Entre, portanto, um elemento da ordem do ontológico e outro da língua e da gramática. Podemos tentar adulterar a realidade mexendo nos tempos verbais: se quisermos acreditar que já ultrapassámos determinado acontecimento, podemos utilizar o pretérito (o perfeito para os mais convictos, o imperfeito para os titubeantes). Disse "tentar": o truque na formulação temporal do verbo não muda, na verdade, os substantivos, ou seja, a realidade. Assim é - daqui sobressai, límpida, a dissonância - precisamente porque os substantivos - novamente: a realidade - só se alteram verdadeiramente com a passagem do tempo (a dor pela perda de alguém, por exemplo). Caímos frequentemente no erro de recorrer aos tempos verbais como método artificioso de superar as tristezas, sem percebermos que o peso dos substantivos - esses, sim, o problema - deve ser combatido com outras armas.


Tabu (2012), Miguel Gomes.

sábado, 17 de maio de 2014

o contra-campo é uma questão de moral


Objective, Burma! (1945), Raoul Walsh.

O Luís Mendonça "precisou de o dizer" e disse-me muito bem:

"Face a "The Thin Red Line" ou "Flags of Our Fathers", este filme de Walsh arrisca cair numa certa visão aligeirada da guerra, mostrando, no começo, os bons soldados americanos a massacrarem os seus inimigos com um sorriso estampado no rosto, como se estivessem a desempenhar uma tarefa rotineira ou natural, para depois se lançar na mais alta indignação e sentimento de horror e ódio face à barbárie cometida pelo inimigo. O jornalista no grupo chega a deixar fugir qualquer coisa como "gente desta devia ser eliminada da face da Terra". A câmara de Walsh não promove o contra-campo, moralmente justificado, aqui, porque para ela não parece haver dúvidas de que a chacina de japoneses é "entertainment" mas a morte de americanos constitui um momento político sério, mesmo que catártico. Preciso de o dizer: este desequilíbrio moral não sabe e não soa bem hoje.

Não consigo ser cúmplice do grupo de cinéfilos para os quais tudo é cinema ou um jogo de formas e sons, porque quando entramos no domínio da definição do Humano (ou do que resta dele), lamento dizê-lo, mas o cinema não basta. O caso deste filme de Walsh não é, seguramente, o mais grave - não é um "The Birth of a Nation", onde curiosamente Walsh entra no papel do assassino de Lincoln, filme paradigmático de alguns dos problemas que se podem interpor na relação da cinefilia com o mundo, principalmente uma certa totalização da experiência pelo cinema (como se este último, de facto, bastasse para esquecermos tudo o mais...)".

sexta-feira, 16 de maio de 2014

dust




"Dust", mixtape WinterSpringSummerFall (2014). Boots. Videoclip realizado por Carey Stricker.

Por mim, o videoclip ficava pelo segundo plano-sequência. Mas também não está mal assim.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Walsh #10 - Crítica "The Servant" (Noutras Salas)

 
O Cineclube de Joane (Famalicão) exibe mais logo, pelas 21h30, a obra-prima The Servant (1963), de Joseph Losey. A minha crítica  (e total deslumbramento) no À Pala de Walsh, para ler aqui (clicar).
 
Esta confusão – deliberadamente induzida no espectador, insista-se – de personagens, estatutos e "lugares sociais” é desde logo crucial num filme em que as relações entre criado e patrão se inverterão e perverterão, adquirindo um subtil, mas indisfarçável, traço homoerótico, numa sugestão, que podia ser de um Fassbinder, das relações afectivas/amorosas/eróticas como relações hierárquicas ou de subordinação, tal qual uma relação de trabalho entre patrão e empregado. Não interessa tanto a Losey, no entanto, a questão da “luta de classes” [como, por exemplo, no Chabrol de La Cérémonie (A Cerimónia, 1995)], mas, sim, a psicologia subjacente à referida subordinação, i.e., as linhas ténues que separam os que mandam e os que são mandados e o modo como factores de ordem externa (a atracção, o sexo, a possessão, a solidão) podem alterar os equilíbrios socialmente instituídos e reformular os jogos de forças. É, por isso, o psicológico, mais que o social, que Losey investiga nesta obra-prima que é, simultaneamente, um psicodrama, um noir e um thriller.
 
(Excerto)

quarta-feira, 7 de maio de 2014

voyeur

Das vezes que ela mais me vinha à cabeça era quando caminhava na rua e, do passeio, conseguia entrever, no interior de um carro parado nos semáforos, a mão da mulher repousando na mão do homem, os joelhos alinhados, ambos olhando em frente.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

declaração de amor aos que já não se amam

Um por um, todos os namoros da faculdade terminam. Já não resta quase nenhum. Folhas que caiem; restam os cheiros e as cores. Os homens dizem quase todos o mesmo do fim. Elas, quase sempre as responsáveis pela última palavra (isto tem muito de enganador, porque o último a falar, ou a balbuciar, ou seja, o homem, é, na verdade, o que leva o golpe), não sei.
Tudo isto não me deixa de provocar uma enorme tristeza, por associar os meus tempos da faculdade, ou por também os associar, a esses namoros (inclusive o meu, naturalmente), a essas pessoas, a esses encontros de almas improváveis, seduções todas iguais na forma como floresceram (e não é por isso que são menos bonitas) mas certamente únicas na intimidade que nunca presenciei. Um livro trocado numa sala de aula (lembro-me de uma aula, todos cabeças descaídas, em que éramos uma fila inteira a ler a "grande literatura universal", de Joyce a Kafka, García Marquez ou Orwell), um encontro casual na mesma estação de comboios no regresso a casa, uma piada atabalhoada que desperta, subitamente, o interesse de alguém. Banalidades, trivialidades que juntaram os mais parecidos e os mais diferentes, os mais tímidos com os mais tímidos, os mais expansivos com os mais expansivos, os mais tímidos com os mais expansivos. Os mais bonitos com os mais bonitos, os mais feios com os mais feios, os mais bonitos com os mais feios. Quem encontrou o seu "outro lado" nesses tempos de faculdade - é isso que, por essa altura, procuramos, sem saber, nesse amor por alguém, a auto-descoberta-descobrindo-o-outro - foi, não tenho dúvidas, mais feliz dos que tiveram o azar - ou que o não quiseram, é bem possível - de não o encontrar. Há algo de doce, doce mesmo de sabor e não de metáfora, nesses amores. A minha boca enche-se de saliva quando penso e escrevo isto como quando penso num doce. Fico, como se costuma dizer, com água na boca e nos cantos da boca. Eventualmente, uma gota ou duas também no canto dos olhos.
Amores que duraram e duraram. Anos. Muitos. Ilusões viradas certezas, certezas viradas ilusões. Já não temos livros-para-trocar, horas-e-meia-para-almoçar, cineclubes-para-programar, debates-para-organizar, jornais-para-redigir. Foi-se (vai-se, aos poucos) um bocado grande de mim quando vocês, namorados valentes, caíram. Folhas que caiem, folhas que caíram.

Depois. Depois, há a Primavera e o Verão. Outros tempos, outras faculdades. Mas não sinto o doce na boca. Paladar: cinco sentidos menos um.