quinta-feira, 31 de julho de 2014

o peso do sujeito na noção de objecto

"Tinha já vivido o suficiente para suspeitar daquilo que, colado ao nariz de todos, se lhes escapa com maior frequência: o peso do sujeito na noção de objecto. A Maga era das poucas pessoas que nunca se esqueciam de que a cara de um tipo influía sempre na ideia que se de poderia fazer do comunismo ou da civilização cretomicénica, e que a forma das mãos estava presente em tudo aquilo que o dono delas pudesse sentir diante de Ghirlandaio ou Dostoievksy. Era por isso que Oliveira admitia que o seu grupo sanguíneo, o facto de ter passado a infância cercado de tios imponentes, uns amores contrariados na adolescência e uma queda para a astenia podiam ser factores de primeira ordem na sua visão do universo. Era de classe média, era portenõ, era colegio nacional, e isso não são coisas que se remedeiem assim de um momento para o outro. O problema é que, à força de temer a excessiva localização dos pontos de vista, tinha acabado por pesar e até aceitar demasiado o sim e o não de tudo, a olhar do fiel os pratos da balança".

Julio Cortázar, O jogo do mundo (Rayuela), Cavalo de Ferro, 2008, p. 34.

quarta-feira, 30 de julho de 2014

despedimento por inadaptação

Era um homem simples mas curioso. Farto da rotina e dos dias sempre iguais, definiu para si um objectivo: teria que descobrir, diariamente, um pormenor novo no trajecto de casa para o escritório que percorria todos os dias da semana sem excepção. No primeiro dia, reparou que, nas costas do prédio dos escritórios onde trabalhava, se podia avistar, da mesa do café onde intervalava o trabalho com revistas do que calhava, uma enorme cruz de cristo da igreja mais próxima. No segundo dia, deu conta que uma rapariguita que, de fugida, havia passado por si nessa manhã era, afinal, a mesma por quem passava todos os dias quando saía de casa pela manhã e voltava para o almoço. Ao terceiro dia, apesar do esforço tenaz na descoberta de algo inusitado ou fora do sítio, o seu olhar não foi capaz de se fixar em nada que fosse realmente novo. Tinha sido um dia difícil e, ao contrário dos anteriores, em que a missão havia sido cumprida ora logo de manhã, ora à hora do almoço, desta feita, nem no percurso de regresso a casa ao final do dia a novidade irrompeu. Quando estava a chegar a casa, insatisfeito, sentiu um tremelique na mão direita. Largou a pasta, que se aninhou num recanto de erva daninha e papel de chupa-chupa. Fez o trajecto inverso e voltou ao escritório. No momento em que se preparava para se despedir perante o seu superior, reparou que este estava com o rosto mais reservado, menos inflexível, do que o habitual. Quando se preparava para dizer claramente ao que vinha (ou ao que partia), viu-lhe escorrer uma lágrima gorda do olho. Inexplicavelmente, escorreu como as lágrimas pretas borratadas da maquilhagem que os palhaços pintam pelo meio do rosto, e não pelo canto dos olhos. Tudo aquilo era uma novidade, e bem que poderia contar para a sua contabilidade diária. Mas já era tarde. Despediu-se. Ao chegar à rua, sentiu como era triste arranjar motivos de distracção inovadores para cada dia. Pôs-se a caminho, confuso.

domingo, 27 de julho de 2014

voltas



"Distante" (Prod. Sam the Kid), EP Sem Censura (2014). Grognation.


"Por menos voltas que dês, a vida dá voltas
Sem te aperceberes se partes, não sabes se voltas
Vi-me a ceder mais cedo, topas?, ao filme do amor"

sexta-feira, 25 de julho de 2014

ciclos de porcelanas



"Oportunidades" (com DJ Score e produção de Keso), não editado. Minus.

"Oportunidades" é nome do novo tema solto de Minus - sobre o qual tive a oportunidade de escrever aqui e entrevistar acolá - que serve de aperitivo para o seu muito aguardado álbum (o primeiro, depois de um EP) deste ano. Deliciem-se com um dos mais poéticos nomes do hip-hop português - entre outras coisas, os meus ouvidos fixaram-se, desde a primeira audição, neste singelo trecho: ciclos de porcelanas.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

there's poetry in strippers




"DanceDance", álbum Beautiful Pimp (2013). Rome Fortune.

flashing lights

Há muitas noites em que chego à rua de minha casa e, ainda cá em baixo, antes de entrar no prédio, levanto a cabeça e olho para a sala do meu vizinho, pela janela. Está invariavelmente escura e, por isso, apenas vejo reflectidos no tecto em madeira os clarões, brancos e azulados, dos filmes que, àquela hora da noite, por gosto ou por insónia, ele vê, recluso deitado no sofá, como gosto de imaginar. Não foi nestes clarões assombrados, fantasmáticos, carregando o ar de psicadelismo, que nasceu o meu amor pelo cinema, mas gostava de poder dizer que sim.

ralenti

Quando o amor dos amigos acaba, o nosso braço já começou a desenhar a trajectória em direcção ao ombro, sem rancores nem cobranças. Numa espécie de ralenti.

segunda-feira, 14 de julho de 2014

that's all you care about

"The Venice conclusion is masquerading as a simplistic ending, and today feels like an outgrowth of what the movie's implying for a lot of its run time: it takes some blinders to love, some dumb luck to make it through middle age, and some willed ignorance to avoid imploding from the realization that things don't get easier when you're older. You never feel that much wiser, and that when something hurts, it just hurts, and that's all you know about it. When it feels good, it feels good, and that’s all you care about". 

Nathan Gelgud, "A later look at love: Blume in Love", in New York Film Review, February 23, 2007 (disponível aqui).

Isto é o tipo de coisa em que venho pensando (e sentindo) desde os meus 19, 20 anos.

domingo, 13 de julho de 2014

what the world needs now is love, sweet love



Bob & Carol & Ted & Alice (1973), Paul Mazursky.

É um dos mais belos finais que já vi no Cinema. Ponto. Fez-me acreditar, nem que fosse por momentos, em muitas das coisas que a "idade adulta" e a "sensatez" nos fazem, invariavelmente, perder. É por isso que é preciso voltar sempre atrás, nunca recusar por completo as boas intenções mais utópicas que associamos à nossa juventude mais pueril, por mais ingénuas ou imaturas que se afigurem. Não para as ter necessariamente como padrões de acção, mas, pelo menos, como balizas, firmes, do que somos e do modo como nos queremos relacionar com quem amamos.

Bom, entretanto, aproveito a ocasião para dizer que ando a fazer um ciclo caseiro dos filmes do Paul Mazursky e que o resultado estará visível mais lá para o fim do mês, no meu artigo n'A Pala de Walsh.

a rua é nóiz



"Hino Vira-Lata", álbum O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve Aqui (2013). Emicida.

Entretanto, o Emicida vem tocar à Casa da Música, esta quarta-feira. A rua é nóiz!

sábado, 12 de julho de 2014

o que há de novo


"Não posso ficar", EP Sem Censura (2014). Grognation.

A falta de tempo obriga-nos, entre outras coisas, a cometer injustiças. É isso que explica que não tenha feito as críticas que gostava de ter feito aos mais recentes trabalhos da Grognation (miúdos com rap para dar e vender, tipo Pro Era portugueses), Alcool Club e Profjam, pese embora dos últimos dois tenha vindo a deixar aqui alguns excertos.

Bom, à falta de tempo importa contrabalançar com os elogios e as recomendações de que oiçam o que de mais excitante se vem fazendo no hip-hop português, que começa, agora sim, a atingir um elevado nível de heterogeneidade, o que nos permite estar a abanar a cabeça com um boom-bap jazzy clássico para, no minuto seguinte, estarmos a salivar com uma traparia preenchida por sintetizadores e por um bass a rebentar pelas costuras. E o mesmo se poderia dizer das letras, oscilando, em igual nível de criatividade e apuro técnico, entre registos ora introspectivos e poéticos, ora festivos e destrutivos (eufemismo para egotrips, bitches, weed e afins).

Isto dito, fica uma superficialíssima - e peço-vos que dêem crédito ao superlativo - lista de sugestões para cada álbum:

1. Grognation, EP Sem Censura: "Salva de Palmas", "Casa dos 20", "Distante", "Não posso ficar";
2. Alcool Club, CLUB 120.º: "Maçã de Adão", "Sério", "Se o amanhã não chega", "Quando a minha voz", "Atlantis";
3. Profjam, The Big Banger Theory - Full Mixtape: "Frank Einstein", "Matança", "É Nossa", "Money", "Bored", "Cépticos", "Drogas & Bottles", "Fly", "Viciada".

quarta-feira, 9 de julho de 2014

round and round and round and round and round and round




"Round and Round", álbum Nate Dogg (2003). Nate Dogg.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Walsh #13 - O elevador enquanto questão de moral/Her (Sopa de Planos)



Os mais atentos já terão reparado, mas dou agora nota, com algum delay, da nova Sopa de Planos do À Pala de Walsh, desta feita tendo os elevadores como epicentro. O "meu elevador" vem do Her, do Spike Jonze. Subam ou desçam, mas não deixem de ler - ali ao lado (clicar).


Pertence a Werner Herzog, esse perscrutador dos mistérios do humano, uma das sínteses do século XXI: “A solidão humana aumentará em proporção directa ao avanço nas formas de comunicação”. Pertence a Spike Jonze, goste-se ou não do estilo, um dos filmes que melhor corporiza essa terrível promessa. Se chovemos no molhado, não nos importamos – ipadiphonetwitterfacebookwhatsappemailskype: tudo “invenções”, “maravilhas tecnológicas” e “novos descobrimentos” que, mau grado as suas inegáveis vantagens, nos fazem a todos menos curiosos, atentos, interessados (e interessantes…) e – não receio dizê-lo – inteligentes. Antes de ipads e afins, outras invenções fizeram as delícias do Progresso dos séculos XIX-XX e os elevadores foram uma delas. À sua maneira, os elevadores modernos foram um primeiro indutor dessa solidão contemporânea que é a de estar com toda a gente e não estar com ninguém ao mesmo tempo. O elevador força a convivência involuntária, obriga a que olhemos, mesmo que só por segundos, os rostos de outrem (pior se o elevador for todo espelhado, aí não há mesmo saída…), coage-nos a sentir o toque do casaco que, ao de leve, se cruza com o nosso, impõe-nos perfumes alheios, compele-nos à cordialidade de ocasião (“Bom dia/boa tarde/boa noite”) com total desinteresse pelos humores particulares de cada um. Tudo isto não seria necessariamente mau não fosse o artificialismo, a sensação de imposição e a impessoalidade envolvidas num pequeníssimo – por vezes mesmo claustrofóbico – espaço físico. Jonze junta, então, estes dois tipos de “invenções”, uma mais anciã (elevadores) que outra (um personal manager auricular que lê emails, escolhe músicas conforme o nosso estado de espírito e sumaria os gossip mediáticos do dia), para radicalizar essa ideia: todos – todos mesmo, porque a globalização é esse enquadramento (o deste plano), no mesmo espaço, de um asiático e de um ocidental – ouvem, todos conversam (com o personal manager), todos se olham, mas ninguém comunica, ao menos no genuíno sentido que o termo encerra, isto é, gregário, comunitário, enfim… humano.