quinta-feira, 29 de março de 2018

quarta-feira, 14 de março de 2018

O Despiste

 
 
("If You Wanna Be My Man", álbum Lady, 2013, Lady)
 
 
"All this time we thought you and me together
I always thought that we would be this thing forever
But you changed, and I changed
What it used to be"

segunda-feira, 12 de março de 2018

"Weather or Not" e "Dear Annie" no ípsilon

 


Um tem 41 anos, veterano da cena alternativa do hip-hop americano, é de Los Angeles e comoveu-me profundamente na primeira vez que o ouvi a rimar na “By My Side Too”, canção do seu novo e fabuloso disco. O outro tem 24 primaveras, é da mesma cidade de Joyce e traz a chanson (entre outras coisas) para o seu primeiro LP.
 
Evidence e Rejjie Snow e os seus novíssimos álbuns - "Weather or Not" e "Dear Annie", para guardar já nas colheitas de 2018 - no Ípsilon da última sexta.
 
Links para artigos:
 
 

Apontamentos sobre 3 filmes recentes

Pequenas observações sobre alguns filmes recentes que tenho deixado na rubrica Comprimidos Cinéfilos no À pala de Walsh - todos eles, curiosamente, filmes americanos e sobre a América.
 
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Brad’s Status (A Vida de Brad, 2017), de Mike White
 
Não é de agora que sabemos como Ben Stiller pode atingir grandes desempenhos. Brad’s Status (A Vida de Brad, 2017) – repare-se no jogo semântico do “B” e do “S”: ambas as letras servem tanto o título do filme como as iniciais do nome do actor… – é mais uma demonstração de como Stiller, mesmo mantendo os seus tiques e trejeitos característicos, é capaz de transitar, à velocidade da luz, entre o humor e a tragédia pessoal mais profunda, entre a gargalhada e as lágrimas (aliás, as suas gargalhadas, frequentemente picos de uma situação de inadequação ou embaraço, ocultam sempre, na verdade, um uivo lancinante) Aliás, muitas vezes, Stiller não transita sequer entre esses dois (aparentes) polos, antes os concentrando simultaneamente na mesma frase, no mesmo gesto, no mesmo rosto. Para o espectador, esse é um momento dramatúrgico poderoso, violento mesmo, e no qual sofremos com ele e por ele, tal como nos acontece com Chaplin, Keaton, Lewis, Carrey (não por acaso, Stiller integrou o nosso dossier de “palhaços notáveis”). Este é também um filme-lição sobre a diferença entre simplicidade e simplismo: sem artifícios nem pretensões por aí além, e através de uma narrativa assaz linear, Mike White imprime verdadeira densidade às personagens, jamais arquétipos de coisa alguma. Se a tradução portuguesa “A Vida de Brad” não é de desdenhar, ela não faz justiça, ainda assim, à subtileza do título original, no qual o status corresponde a esse momento de reavaliação retrospectiva das nossas vidas: quem sou? Melhor: o que é feito de mim? Deixou de existir, transformou-se, adaptou-se? E isso é bom, mau?…
 
Mas esse status tem ainda outro sentido, reverberando toda a frustração (e é mesmo muita…) de Brad com o seu “lugar” económico e social; reverberando, afinal, a frustração da grande parte da América que não cabe no one percent a que se refere a sua mulher. Num filme em que tudo começa onde acaba (Brad, à noite, na cama, abraços com uma insónia), a passagem da Morte (a conversa sinistra, mas simultaneamente cómica, com a mulher sobre a morte dos sogros como uma forma de, enfim, enriquecer) para a Vida (?) faz-se nesse derradeiro monólogo: “My son: he’s here. We still have years together… We’re still alive. I’m alive”. Mas, como facilmente nos apercebemos, não há aqui happy end algum, antes a necessidade de acreditar que: Brad não se resolveu, muito longe disso, e o que se seguirá na sua vida é uma incógnita. Dead or alive.
 
 
Suburbicon (2017), de George Clooney
 
A certa altura, quando o tumulto racista já se desenrola em todo o seu esplendor na rua, o agente de seguros – o sempre brilhante Oscar Isaac [quem o viu na série Show Me a Hero (2015) não esquece, e o cinema ainda não lhe deu um papel equivalente à altura] – toca à campainha, cumprindo a promessa de que voltaria à noite para falar com Gardner que fizera à sua cunhada Margaret [Julianne Moore, mulher que “vive duas vezes”, ou até três, na verdade, não fosse ela a versão cinquentista e “pré pós-moderna” da Carol White de Safe (Seguro, 1995) de Todd Haynes, também ela habitando um subúrbio branco da classe alta americana]. Bud (Isaac) – e nunca saberemos se a proposta-twist que faz a Gardner é, de facto, genuína (mérito da sua performance, novamente) – senta-se à beira da janela para iniciar a conversa com Gardner, já munido de todos os elementos que monstruosamente incriminam aquele maquiavélico casal que agora sua em bica (irão matá-lo também a ele?…). E eis que, nesse preciso momento, quando os gritos, o fogo e a turba eclodem just on the other side of the street, quando uma não menor monstruosidade se vê mesmo ali da janela, Gardner pede, nervoso, ao agente de seguros: “Espere, espere, deixe-me fechar só a cortina, não é preciso que a vizinhança saiba”.
 
É, provavelmente, na sua subtileza, na sua imensa inteligência, o melhor momento de todo este coeniano filme (escrito pelos ditos cujos, aliás) no modo como sintetiza a dualidade indivíduo/colectivo, individualismo e sentido de comunidade, essa que o filme vai desenvolvendo desde o início – de modo explícito, até (através da montagem paralela) –, só em pontuais momentos fazendo sobrepor os dois lados da moeda (aliás, uma vez que o filme se inicia in medias res, chega a haver a insinuação, também muito inteligente, de que o homicídio é consequência para o facto de a mãe de Nicky ter deixado os dois miúdos, um branco e outro negro, brincarem juntos). E é aqui que bate o ponto: um e outro são lados da mesmíssima moeda – só vivemos felizes se o formos connosco próprios e com-os-outros –, mas isso é coisa que a América nunca interiorizará, assente que está num mito fundador egoístico e solipsista. Esse momento em Suburbicon (2017) – em si mesmo um avatar do mito bíblico, com não menos fundas raízes no viver e no sentir americanos, da City upon a Hill – dá a mortífera bicada: até num momento apocalíptico, quando a civilização está prestes a ruir, até quando os seus concidadãos (brancos, negros, isso agora nem interessa, o egoísmo é tanto!) podem estar na iminência de serem mortos ou brutalizados, o americano fecha a janela, não quer saber dos “problemas da sociedade” (i.é, do colectivo); o que o preocupa é a sua casa e os seus assuntos (dinheiro, sucesso, bem-estar). Family First – Mo Money Mo Problems (como rappou um dia o americano Notorious B.I.G.) – Make America Great Again – PIM!
 
 
Three Billboards Outside Ebbing, Missouri (Três Cartazes à Beira da estrada, 2017), de Martin McDonagh
 
Poucos minutos depois de Mildred (Frances McDormand) tomar a resolução mental que dá título e mote ao filme de Martin McDonagh, e já no escritório da agência publicitária, dá-se um momento de enorme simbolismo. Enquanto Mildred e o publicitário afinam, com humor, a “legalidade” das palavras a projectar nos cartazes, um grande plano (subjectivo, de Mildred) abate-se sobre um insecto que, no parapeito da janela, esperneando, se tenta desesperadamente virar ao contrário e retomar o seu caminho. A sua pequenez e fragilidade, de um lado; o olhar do gigante humano, do outro. Assim que fica definido o conteúdo e o pagamento dos cartazes, Mildred aproxima-se da janela e dá uma pequena ajuda ao insecto, virando-o. Nesse preciso momento, o publicitário diz-lhe que o dia combinado para a afixação dos cartazes corresponde ao Domingo de Páscoa. “Melhor ainda”, responde Mildred. Num filme que se inicia in medias res, depois de um assassinato do qual nunca temos, inteligentemente, vislumbre algum (resistindo a essa tentação de construir flashbacks detectivescos) – e o filme só ficaria a ganhar ainda mais em tensão se ao espectador não fosse dado nunca a ver o rosto da vítima –, a cena acima descrita, uma das primeiras, estabelece, desde logo, um jogo entre vida e morte, entre fortes e fracos, abusadores e abusados. Entre passividade e solidariedade. Mildred não mata o insecto, tão-pouco – note-se – o ignora: ajuda-o a sobreviver, ao mesmo tempo que rejubila por ser no dia da ressurreição de Cristo que verá o caso da sua filha, bem assim, ressuscitado (e a partir do momento em que decide afixar os cartazes, ela própria, Mildred, também “ressuscita”, emocional e civicamente). Ela sabe que, só com aquela “acção directa” (a afixação dos cartazes), poderá, se não trazer efectivamente a sua filha do mundo dos mortos para o dos vivos, reavivar a investigação do seu homicídio, dar vida a um assunto esquecido, morto.
 
É esse o acto que espoletará a convulsão total desta vilória de uma América só pretensamente “rural” e “interior”, pois que os problemas (racismo, misoginia, homofobia, abuso policial, violência doméstica) que nela persistem são, afinal, os mesmíssimos da América urbana e sofisticada. A imagem perfeitamente anódina e a banda-sonora perfeitamente tenebrosa (tanto na sua omnipresença como na escolha das composições propriamente ditas) não chegam, felizmente, a ter força suficiente para apagar o que de melhor Three Billboards Outside Ebbing, Missouri carrega – desde logo, um genuíno e impressionante cuidado com a elaboração das personagens, homens e mulheres de carne e osso, cheios de cinzentos e cruzes, capazes de nos arrancarem uma gargalhada para, logo a seguir, nos fazerem sentir o maior desprezo. Ainda: não deixa de ser irónico que o padre – a Igreja Católica – seja liminarmente posto fora de cena (literalmente, não mais o vemos) num filme que lida, do princípio ao fim, com um topos vincadamente cristão: o perdão. Não tanto a redenção, porquanto esta envolve, sobretudo, uma busca interior, eu-comigo-mesmo. Antes o perdão, relação hetero-subjectiva, de alteridade, eu-e-o-outro – a mãe da vítima que perdoa o chefe da polícia incompetente; a mulher que perdoa o marido violento; o publicitário que perdoa o polícia abusador; o polícia que perdoa a mulher que quase o matou (ainda que involuntariamente) no fogo posto na esquadra. Muitos foram os que se lembraram de Unforgiven (Imperdoável, 1992), de Clint Eastwood, a propósito deste filme, mas é precisamente o oposto aquilo de que ele trata… Forgiveness.

 

segunda-feira, 5 de março de 2018

tempos


 

 
 
Summer of 42 é, como todo o cinema puro, um filme sobre a passagem do tempo (e o tempo, como se sabe, é, ontologicamente, um topos cinematográfico em si mesmo). Descendo mais à terra: um filme sobre velhos e novos, maturidade e inocência, experiência e aventura (num certo sentido, é um “filme de aventuras”). Uns querem descobrir tudo; outros lamentam-se por já tudo terem descoberto. Uns vivem no frémito de poder aceder aos Segredos (as “Choses secrètes”, então – sobretudo, o sexo, claro); outros sabem já (ou julgam que sabem...) que a vida, ao fim ao cabo, poucos segredos guarda (o tempo, de volta a ele, é um deles… “O tempo pergunta ao tempo quanto temp…”). A cena dos dois amigos com as raparigas na sala de cinema (conhecem-se mesmo ali, na fila para os bilhetes, flirt talvez impossível nos dias de hoje) é um bom resumo disto tudo. Mas, antes disso, Hermie havia já encontrado Dorothy a sair do cinema, sozinha, momento em que Mulligan aproveita para apanhar os cartazes dos filmes “em sala”. Um deles é Now, Voyager (já escrevi sobre ele por acaso: http://www.apaladewalsh.com/…/now-voyager-1942-de-irving-r…/), aquele, aliás, cujo cartaz Mulligan mais insistentemente filma e que os miúdos (não) vão ver (Dorothy acabara de o ver minutos antes).
 
Na sala de cinema, então: o contraste-súmula entre o amor carnal, iniciático, de uns (os miúdos que tentam colocar a mão no peito das amigas no escuro da sala, chegando até a confundi-lo com o… ombro), e o amor maduro, na verdade platónico ("Oh Jerry, don't let's ask for the moon, we have the stars…”, a famosa linha que os miúdos ouvem nesse momento, é código para uma relação que, doravante, não deverá galgar os limites da comunhão espiritual), de outros. Os primeiros (os miúdos) não compreendem os segundos (as personagens de Now, Voyager), velhos e novos, preto-e-branco e cores púberes, os vivos não compreendem os mortos, há uma incomunicação total naquela sala de cinema – mas compreenderão mais tarde, quando crescerem (quer queiram, quer não). Vida e ecrã, vai-e-vem (seria a essa reciprocidade que aludia, afinal, o título do filme de César Monteiro?), como sempre. A incomunicação é de tal ordem que Hermie, posteriormente, querendo convidar Dorothy para o cinema, diz-lhe não se importar de ver Now, Voyager novamente – porque, na verdade, não compreendeu nada (aliás, mal o viu, preocupado que estava em aproximar-se da miúda), não percebeu a gravitas que ele carrega. "Vamos ver o filme outra vez?". Ela, mais adulta, mais madura (justamente...), sorri ternamente (não deixa de haver condescendência nesse esgar, próprio de quem já está “uns anos à frente”). "No, thanks": ela já consegue "comunicar" com aquele filme, sabe do que ele trata, percebe como ele é incómodo, sobretudo quando o foi ver sozinha. O escuro é escape, o escuro não é o mesmo das terríveis noites da guerra em que morrerá o seu marido (estamos conversados quanto à guerra e à força: “U.S. ARMY” é a t-shirt que veste o amigo de Hermie, miúdo boçal, grosseiro, animalesco – sim, ainda é só um miúdo, mas…).
 
Tudo se joga nesta ideia de (in)comunicação, de (in)compreensão de afectos, experiências, prazeres. A capacidade (dela) e a incapacidade (dele) para ver, com-olhos-de-ver (sempre o olhar, claro), Now, Voyager - só a maturidade (isso, o tempo) permite apreendê-lo (e não esquecer o facto de o filme de Irving Rapper ser, todo um ele, um filme sobre o desejo e a libertação). Na carta final de Dorothy, o tempo novamente, sempre ele, agora a servir de almofada, de ampara-quedas (e Dorothy precisará bem mais dele do que o próprio Hermie…): "Dear Hermie, I must go home now. I'm sure you'll UNDERSTAND. There's much I have to do. I won't try and EXPLAIN what happened last night because I know that, IN TIME, you'll find a proper way in which to remember it". Ou outra forma de dizer: "Don't let's ask for the moon, we have the stars"…